Editorial

Marçal, o retrato da decadência política

Crédito: Marina Uezima

Carlos José Marques: "Marçal é muito mais que o rompimento com o 'establishment'. A aposta nele sugere um flerte com a aventura inconsequente e irremediavelmente desestabilizadora" (Crédito: Marina Uezima)

Por Carlos José Marques

Condenado como quadrilheiro por roubo a bancos, acusado de laços obscuros com facções do PCC, sem projeto algum para a gestão da maior cidade do País e da América Latina em população (a complexa São Paulo), senhor da lacração que tenta resumir debates políticos à baixaria dos xingamentos e das falsas acusações, o extremista Pablo Marçal, que se autointitula coach milionário pelo que alega serem palestras motivacionais, encarna de forma absoluta e reveladora o retrato bem-acabado da antipolítica, da tentativa de implosão do sistema democrático a qualquer custo e da anarquia raivosa como forma de controle social. Muitos dizem ser Marçal uma cria do capitão Jair Messias Bolsonaro, que, na Presidência da República, em tempos recentes, sacudiu o coreto liderando motociatas, passeando de jet ski e nos comícios sem fim, desordenando tudo o que via pela frente até chegar à malfadada tentativa de um golpe de poder que naufragou nos detalhes. Marçal, na verdade, já mostra nos primeiros acordes de sua ruidosa campanha ser bem pior e potencialmente tão danoso quanto. Ele vai além das meras palhaçadas no picadeiro e holofotes eleitoreiros. Supera a pueril ideia do candidato pitoresco clássico e, por incrível que pareça, vem pontificando nas pesquisas com reais chances de vitória, numa escalada vertiginosa que só pode ser explicada pela habitual e conhecida decepção do eleitor, cada dia mais disposto a escolher uma opção que encarne a repulsa crescente “contra tudo que está aí”. Nessa toada, o Brasil vai quase certamente destruindo as próprias chances de se recompor e avançar. Um tiro no pé, pode-se chamar assim. É de uma tolice inominável a insistência na ideia do quanto pior, melhor. Marçal, com o seu nome inscrito nas telas das urnas eletrônicas de votação, carrega no coldre uma espécie de dinamite institucional prestes a explodir. O que ele pretende fazer? Para não dizer que não possui as chamadas cartas na manga, fala de projetos bizarros, inexequíveis, como o de um prédio de um quilômetro de altura, simbolizando o que alega ser a “mensagem de inovação” para atrair turistas. Tem de rir para não chorar. Alguém em sã consciência acredita piamente que ele irá tirar algo assim do papel? Na cartola tem mais: Marçal promete teleféricos nos moldes dos existentes em La Paz, na Bolívia. Trombeteia como prioridade “o maior programa habitacional da história”, embora não diga como irá fazer e com que dinheiro. Acalenta, na verdade, um festival de extravagâncias e sugestões estapafúrdias. E existe quem dê crédito, por mais surpreendente que seja. Marçal, ao encarnar a propalada indignação popular, vandaliza sonhos e expectativas depositadas no campo das soluções estatais que miram carências sociais — no caso, em nível municipal, frente ao terceiro maior orçamento nacional. Surgiu como mais um “Salvador da Pátria”, que se apresenta vendendo a lorota de atender e suprir o “gap” de serviços vitais, aqueles mesmos que fortalecem o sentimento de cidadania. O conteúdo do que traz e diz Marçal não se sustenta por si só. A sua política bruta corresponde à dos antigos coronéis, mandatários de currais de votos, com uma mensagem arrogante, totalitária e cínica. Ele não valoriza a gestão, muitos menos segue os mais básicos preceitos republicanos. Aposta na militância cega, quase de seita apocalíptica, que prega a desordem e traz uma certa nostalgia dos tempos ditatoriais. Marçal é muito mais que o rompimento com o “establishment”. A aposta nele sugere um flerte com a aventura inconsequente e irremediavelmente desestabilizadora. Pode ser que Marçal incorpore a representação de muitos segmentos de nosso povo. Tanto que existem aqueles que cogitam o seu nome inclusive para a eleição à Presidência da República, daqui a dois anos. Há de se dar, portanto, o benefício da dúvida no aspecto do peso relativo de apoios que ele carrega. Afinal, pode ser ainda mais amplo do que se imagina. Se assim for, é preciso uma análise mais profunda sobre os fatores que levaram os brasileiros a esse estágio de desesperança, grave por sinal. Um grito de alerta? De protesto? Que os líderes partidários, governantes em geral, atentem para o recado. Há algo de podre na terra descoberta por Cabral e não é de hoje. Existe conserto? Antes de tudo, será vital dar um basta à sem-vergonhice que se enxerga em orçamentos secretos, conchavos espúrios e na bandalheira que demonstra ter-se espalhado para todos os lados, sem distinção. Marçal, a seu modo, de um jeito ou de outro, desafia os delegatários do poder, da Justiça, parlamentares e agremiações partidárias. Consagra a mediocridade.