Comportamento

Invisíveis do Brasil: sem documento de identidade, milhões somem do mapa

A falta de registro civil continua a ser um obstáculo à cidadania e ao acesso a direitos fundamentais para quase três milhões de brasileiros que vivem à margem da sociedade

Crédito: Divulgação

População do semiárido nordestino ainda sofre com a falta de conhecimento a cerca da importância do registro civil (Crédito: Divulgação )

Por Mirela Luiz

Em um País que se orgulha de sua democracia e diversidade, é alarmante saber que, em pleno século XXI, milhões de brasileiros permanecem invisíveis. Sem uma certidão de nascimento, uma pessoa não possui nome, sobrenome ou nacionalidade, tornando-se um espectro na sociedade. Esse documento, que deveria ser um direito básico, é a chave para a cidadania, permitindo o acesso à educação, saúde, casamento civil e programas sociais. No entanto, dados do Censo 2022 revelam que mais de 2,7 milhões de pessoas não possuem nenhum tipo de documento de identificação civil, evidenciando que a cidadania no Brasil é um privilégio reservado a poucos.

Esse cenário é especialmente preocupante entre as populações mais vulneráveis. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 havia mais de 87 mil crianças de até cinco anos sem registro civil.

Embora tenha havido uma queda em relação a 2010, a subnotificação ainda é alarmante, especialmente entre povos indígenas na Amazônia Legal.

• A região Norte tem a maior proporção de casos sem registro, com mais de 86% da população com até cinco anos sem registro.

Em plena era globalizada, o Brasil ainda enfrenta uma questão que deveria ter sido superada: a inclusão de todos os cidadãos no sistema civil.

As desigualdades regionais são alarmantes; enquanto no Sul apenas 0,28% da população geral está sem registro, no Norte esse número salta para 7,5%.

A importância deste se torna ainda mais evidente em contextos críticos, como a pandemia de COVID-19, onde a ausência de identificação dificultou o acesso à vacinação, expondo essa população a riscos ainda maiores.

Genalda Maria de Jesus ao lado do esposo, Romário da Conceição Souza seguram a certidão de nascimento dela e de seus três filhos (Crédito:Divulgação )

Mas o que leva milhões a essa condição de invisibilidade? A resposta frequentemente se encontra em uma combinação de desinformação, analfabetismo e isolamento comunitário.

O registro de nascimento, que é gratuito, deveria ser um processo simples, mas muitas vezes se transforma em um desafio quase intransponível em áreas remotas. “A burocracia, na maioria das vezes, impede que os indocumentados alcancem seus objetivos”, explica Fernanda da Escossia, jornalista, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora do livro Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documentos (Ed. FGV). “A síndrome do balcão, é como chamo a peregrinação dessas pessoas de um balcão do poder público a outro, durante anos, afasta esses invisíveis da dignidade. A vergonha é um sentimento recorrente entre as pessoas indocumentadas”, complementa.

As repercussões dessa falta de documentação vão muito além do cotidiano. Crianças e adolescentes sem registro civil são excluídos do sistema educacional, do Sistema Único de Saúde (SUS) e de programas sociais. Não tem acesso a benefícios sociais do Governo. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento. Não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Apenas consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas costumam exigir documentação para as matrículas.

Essa exclusão perpetua um ciclo vicioso de pobreza e desigualdade. “Ao investigar essa questão, percebi que o problema se estendia para os pais e mães dessas crianças, levando à exclusão documental toda a família. Vários fatores, como desigualdade, pobreza, falta de acesso à educação e questões geracionais, contribuem para essa situação”, alerta Escossia.

O ônibus da justiça itinerante leva seus agentes a Manaus (AM) para oferecer o serviço de registro civil (Crédito: Raphael Alves)

Acessibilidade

Desde 2003, com o aumento dos programas sociais, como o Bolsa Família, a documentação tornou-se um requisito essencial para o acesso a esses direitos. Em 2007, foi criado um programa nacional para combater o sub registro, o que trouxe melhorias significativas.

O ônibus da Justiça Itinerante oferecido pelo Conselho Nacional de Justiça, que percorre diversos estados do Brasil, é uma das iniciativas que tem contribuído para o aumento de registros no País, principalmente nas regiões mais remotas como no sertão nordestino ou comunidades ribeirinhas e indígenas da Amazônia. “A Justiça Itinerante desempenha um papel crucial na facilitação do acesso à documentação para aqueles que não têm. Esse serviço, previsto na Constituição desde 1988, visa levar a justiça até a população, especialmente em lugares onde o acesso é mais difícil”, declara Fernanda.

Mais de 2,7 milhões de pessoas não possuem nenhum tipo de documento de identificação civil

Longo caminho

Para superar as barreiras geográficas, culturais e socioeconômicas que dificultam o acesso ao registro civil, iniciativas da sociedade envolvendo ONGs, a própria comunidade e o Governo buscam a regularização dos chamados ‘sub registros’, realizando mutirões destinados à população vulnerável.

“Por deter a responsabilidade legal, no sentido de que todos os nascimentos sejam registrados, o Governo deve fomentar as políticas públicas eficazes, assegurando o acesso ao documento civil. Deve executar programas de conscientização para educar a população sobre a importância da Certidão de Nascimento. E ampliar as unidades móveis para facilitar o acesso da população vulnerável ao registro civil de nascimento”, analisa Marcio Bonilha, sócio do escritório Barcellos Tucunduva Advogados e especialista em Registros Públicos.

Um estudo do FGV Social revelou que 62,9 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais, e a situação é ainda pior para aqueles sem identidade formal. “Nos últimos 20 anos, embora a cobertura de registros civis de nascimento tenha avançado, ainda enfrentamos uma parcela da população que tem dificuldades para registrar nascimentos, como nos sertões do Nordeste e comunidades ribeirinhas”, enfatiza Bonilha.

Comunidade ribeirinha da Amazônia Legal recebe profissionais da Justiça Itinerante para tirar seus documentos (Crédito:Mauro Pimentel)

Apesar dos avanços nas últimas décadas, como a redução da taxa de sub-registro de 29,3% em 1990 para 2,6% em 2017, ainda há um longo caminho a percorrer. Iniciativas como o ‘Barco da Cidadania’ no Amazonas e o projeto ‘Eu Existo’, coordenado pelo Instituto Airton Senna, buscam alcançar as populações isoladas para promover o registro civil, através de ações em parceria com o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério dos Direitos Humanos.

“Estamos planejando várias articulações, incluindo o fortalecimento dos comitês estaduais para registro e documentação básica”, afirmou Bruno Renato Teixeira, secretário nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos.

Atuando na divisa entre Piauí e Pernambuco, a Auren Energia é um exemplo positivo de mobilização da sociedade civil, tendo realizado, com o apoio do Tribunal de Justiça do Piauí, um mutirão de documentação que beneficiou centenas de pessoas no final de 2020. “Em apenas quatro dias, conseguimos atender cerca de 300 pessoas, emitindo mais de 350 documentos”, relata Raquel Leite, Gerente de Desenvolvimento Social e Planejamento da Auren.

Genalda Maria de Jesus, uma jovem de 21 anos que viveu sem registro até 2021, é um exemplo do impacto positivo que essas iniciativas podem ter. Após obter sua certidão de nascimento, Genalda não apenas regularizou sua situação, mas também garantiu acesso à educação e saúde para seus filhos. “Aquele dia foi marcante; ao segurar os documentos, me emocionei ao perceber que era um passo importante para mudar nossas vidas.”

“A vergonha é um sentimento recorrente entre as pessoas indocumentadas”, diz Fernanda da Escossia, jornalista, professora e autora do livro Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documentos (Crédito:Divulgação )

A conscientização e a ação coletiva são fundamentais para que a luta pela cidadania se torne uma realidade para todos, assegurando que finalmente cada brasileiro tenha seu lugar à luz da legalidade e da dignidade. “A verdadeira compaixão não é apenas dar esmolas a um mendigo; é perceber que um sistema que produz mendigos precisa ser reestruturado”, já disse Martin Luther King.