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Ministro do STF Flávio Dino mostra a cara e assombra o Parlamento; entenda

Em decisão inédita que assusta o Congresso, o ministro do STF suspende o orçamento secreto e manda os órgãos de controle apontarem quem são os “padrinhos” das emendas e quais as obras beneficiadas com a farra do dinheiro público

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

''Controle e transparência promovem a eficiência da gestão pública e o combate à corrupção'', diz Flávio Dino, ministro do STF (Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Por Vasconcelo Quadros

Há seis meses no Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino não lembra em nada a político que, sem papas na língua, enfrentou e humilhou a extrema direita em frequentes embates no Congresso. Ele parou de dar entrevistas, desvia-se de conflitos e reconstrói sua vida de magistrado sóbrio e longe dos holofotes. Mas, o que ele “fala” nos autos tem ainda mais contundência, mostra como atuará e revela um novo estilo de fazer justiça no STF: desde o início de agosto, em apenas dois despachos, o ministro vem assombrando o Parlamento ao colocar um guizo nas emendas parlamentares e quebrar o sigilo sobre a parte do Orçamento federal que deputados e senadores, com total liberdade, e nenhuma transparência, vinham gerindo, numa escancarada usurpação de prerrogativas que pertenciam ao governo, mas que foram entregues de bandeja ao Centrão pelo desastrado governo de Jair Bolsonaro, em 2020.

● Dino é o único dos 11 ministros que chegou à Corte depois de militar por mais de 30 anos na política, transitando pelos mais altos cargos do Legislativo e do Executivo, e conhecendo, portanto, os atalhos usados para acessar recursos federais por quem se esforça pra não deixar rastros.

● Nos últimos cinco anos, o pagamento dos valores de emendas foi encoberto por segredos que impediram a identificação dos autores e, no caso das chamadas PIX, até o destino dado por estados e municípios é desconhecido, inclusive para onde o dinheiro é repassado.

● O ministro inverteu o ônus da prova e determinou que governo e Congresso se ajustem ao princípio da transparência na aplicação dos recursos orçamentários, o que implica em passar um pente fino nos gastos irregulares de um vasto período.

É provável que a devassa em curso, a cargo dos órgãos de controle, traga à tona um novo esquema de corrupção que Bolsonaro jogou para debaixo do tapete. Durante a campanha eleitoral de 2022, a ministra do Planejamento Simone Tebet, então candidata do MDB, afirmou que o orçamento secreto era “o maior esquema de corrupção do planeta”.

Na sua decisão, Dino dá uma pista sobre as suspeitas ao ressaltar que rastreabilidade permite um controle que “promove a eficiência da gestão pública e o combate à corrupção”.

Pacheco (Senado) e Lira (Câmara) fazem a distribuição dos recursos do orçamento sem transparência (Crédito:Wilton Junior)

No curto período em que está no STF, o ministro tem construído um perfil progressista e sem tolerância com golpistas ou corruptos. Cristão de carteirinha, contrariou a CNBB, que é Amicus Curie na causa, ao mandar para o arquivo um pedido da entidade de anulação do voto favorável da ex-ministra Rosa Weber pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

Também recusou um pedido de liberdade, via habeas corpus, ao ex-assessor de Assuntos Internacionais de Bolsonaro, Felipe Martins, votou para afastar a tutela intervencionista dos militares do artigo 142 da Constituição e manteve, como queria o CNJ, o afastamento dos desembargadores lavajatistas Thompson Flores e Leôncio Lima do TRF-4.

Devassa

Puxando a ponta desse iceberg do orçamento secreto, Dino é a pior notícia para um Congresso voltando do recesso. O ministro quer que governo e a cúpula do Legislativo apontem os autores das chamadas emendas de Comissão, uma das principais estratégias do orçamento secreto, suspendeu os pagamentos e condicionou a liberação dos recursos à apresentação dos dados sobre o uso da dinheirama.

Ele trancou a porta que permitia aos parlamentares apresentar emendas para obras em regiões fora do território em que foram eleitos – o que favorecia interesses cruzados –, obrigou ONGs e demais entidades do terceiro setor a mostrar onde os recursos foram gastos e mandou que a Controladoria Geral da União (CGU) faça auditorias para identificar os dez municípios mais beneficiados por emendas de comissão e do relator, já que duas modalidades camuflam os “padrinhos” das emendas. Determinou ainda que apresentem um relatório mostrando as obras executadas ou em execução, com respectivas análises de eficiência e de riscos. Trata-se, na verdade, de uma devassa jamais vista.

Lula não enfrentou o Centrão, mas é o principal beneficiário com a decisão do STF devolvendo o Orçamento ao Executivo (Crédito:Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

Parte de suspeitas de sucessivos desvios de recursos públicos resulta numa guinada que devolve ao Executivo a atribuição de usar o dinheiro público em obras prioritárias, indicadas por estudos conforme a necessidade da população. Embora tenha pego de surpresa os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), principal arquiteto do orçamento secreto, e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o ministro já havia antecipado as medidas logo após sua posse no STF, em abril, quando anunciou que tinha “um encontro marcado com o tema relativo à parlamentarização da elaboração orçamentária e das despesas públicas no Brasil”.

Os dados do Portal da Transparência mostram que desde 2020, o governo pagou em emendas dos congressistas algo em torno de R$ 95 bilhões, dos quais cerca da metade são originárias do orçamento secreto. Só em 2022, mais de R$ 28 bilhões foram originários das emendas de comissão e do relator apelidadas, respectivamente de RP8 e RP9, criadas por Bolsonaro.

Em 2023, refém da maioria congressista conservadora e sem condições de medir força no voto, o presidente Lula não conseguiu romper o ciclo vicioso herdado do antecessor, e mandou pagar R$ 21,91 bilhões, dos quais mais da metade via orçamento secreto.

O fenômeno se repetiu este ano com a liberação até aqui de R$ 23,15 bilhões, cuja distribuição seguiu o mesmo modelo de falta de transparência para a imensa maioria das emendas, uma farra que alimenta o caixa das campanhas políticas neste ano eleitoral.

Lira e Pacheco estudam uma reação conjunta do Congresso. Nas reuniões com o STF os representantes da Câmara e do Senado sustentaram que as emendas seguem o regimento das duas Casas e, como houve modificação na lei, a figura do parlamentar que patrocina os recursos não existe e nem há como identificá-lo.

Inconstitucional

Na quarta-feira, 7, o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, em linha com os despachos de Dino, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF pedindo a extinção das emendas PIX, sob argumento de que o sistema dribla o plano plurianual e as leis orçamentárias para se desviar de convênios, da fiscalização e é executado sem critérios. O procurador ressalta que esse tipo de emenda fere o pacto federativo e a separação dos poderes.

A Carta não dá ao Legislativo a prerrogativa de alterar o texto constitucional sem que seja através de uma PEC. O PGR pede a suspensão dos dispositivos usados pelo Congresso até o julgamento do mérito da ADI. Ele argumenta que a Constituição define o orçamento como ferramenta de execução de despesas e investimentos como iniciativa exclusiva do presidente da República, deixando aos parlamentares o poder de alterar o Orçamento via emendas desde que estas estejam de acordo com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias.

Segundo Gonet, a emenda PIX reduz o papel do Executivo e entrega dinheiro público a outros entes sem fiscalização. “A quantia passa a pertencer ao ente político beneficiado pelo ato singelo de transferência”. O volume de repasses mais que duplicou entre 2022 e 2023, saltando de R$ 3,32 bilhões para R$ 6,75 bilhões, dos quais pelo menos um terço é na modalidade de transferência especial que, em 80% dos casos, não aponta nem quem recebe o dinheiro. Gonet quer a extinção da emenda PIX e pede que a ADI seja distribuída a Flávio Dino. Como se vê, STF e PGR apertam o cerco contra as suspeitas de corrupção. Lula faz cara de paisagem.

Como surgiu a excrescência

1. Em 2019, Bolsonaro entregou parte da execução do Orçamento ao Centrão liderado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. O que era uma relação histórica baseada em apresentação de emendas individuais e das bancadas estaduais passou a receber mais duas nomenclaturas: RP8 e RP9, ou seja, emendas de comissões e do relator, espinha dorsal do orçamento secreto revelado depois pelo jornal
O Estado de S. Paulo

2. No embalo do orçamento secreto, surgiu também a emenda Pix, a RP6, denominada de transferência especial. Através desse mecanismo, parlamentares indicam estados e municípios beneficiados em operações de transferência direta que não apontam autores e nem o projeto sobre o qual se destinam os recursos públicos

3. O volume de emendas Pix duplicou de 2022 a 2023: de R$ 3,2 bilhões, saltou para R$ 6,7 bilhões. E este ano, de um total de R$ 8,2 bilhões solicitados, o governo já pagou R$ 7,6 bilhões. Um ato singelo de transferência permite ao usuário usar o dinheiro como quiser

4. Só agora, cinco anos depois, em nome da transparência, o orçamento secreto começa a ser extinto. STF e PGR sustentam que,
ao não apontar autor nem o destino final dos recursos, os mecanismos das emendas são inconstitucionais. Só em 2022 foram pagos mais de R$ 28 bilhões.

5. O governo Lula 3 herdou o orçamento secreto de seu antecessor e nada fez para acabar com o sequestro de uma prerrogativa que era do Executivo. Uma vez executada, a decisão do ministro Flávio Dino (STF) devolve o Orçamento ao governo e abre espaço para CGU, AGU e TCU esclarecerem o destino de metade dos R$ 95 bilhões pagos entre 2020 e 2024.