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Jogos Olímpicos de Paris: liberdade, fraternidade e… segurança

Diante da maior polarização política, social e religiosa de sua história recente, a França abre os Jogos Olímpicos tendo sua capital, Paris, como a cidade mais vigiada e insegura do mundo durante a competição

Crédito: Ludovic Marin

Oficiais da Brigada de Intervenção francesa fazem simulado no Rio Sena, na altura da Ponte Alexandre III, com a Torre Eiffel ao fundo (Crédito: Ludovic Marin)

Por Luiz Cesar Pimentel e Denise Mirás

Quando os Jogos Olímpicos forem oficialmente iniciados, às 19h30 (14h30 de Brasília) de sexta-feira (26), na cerimônia de abertura no rio Sena, em Paris, agentes policiais franceses terão realizado mais de um milhão de investigações administrativas. Em uma delas, na última quarta-feira, um jovem de 18 anos, membro de facção neonazista de ultra-direita da região da Alsácia, nordeste francês, foi desmobilizado do ataque que planejava a um dos portadores da tocha olímpica. Além dele, 3.570 pessoas haviam sido impedidas de entrar no perímetro onde serão disputadas as competições, área projetada para receber 9,7 milhões de espectadores até o encerramento, em 11 de agosto.

Uma série de fatores causa números de risco tão superlativos. A França é o país mais politizado do mundo, com presença efetiva nas principais organizações internacionais – é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, é atuante na União Européia e tem papéis importantes na OMC (Organização Mundial do Comércio) e na aliança militar Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). O mundo polarizado, com guerras na Ucrânia e Palestina, atentados nos EUA e Alemanha, o posicionamento francês sobre todos os conflitos e o fato de ser a nação ocidental com maior número de muçulmanos não esfriam a fervura involuntária da competição.

Somados à suspensão que ficou o mundo nas últimas semanas, com a possibilidade de o governo francês passar à extrema-direita, aos recentes ataques a professores no país e à memória do terror que o Estado Islâmico infligiu aos parisienses em 2015, quando, em operações em cafés e na casa de shows Bataclán, mataram mais de 100 pessoas, serviram para que o governo estabelecesse o maior sistema de segurança física e digital da história dos grandes eventos e aumentasse o alerta de ataque terrorista à França ao nível de alerta máximo. Que comecem os jogos.

O contingente policial francês durante a competição deixa clara a carta de intenções.

Se para os Jogos de Londres, há 12 anos, os britânicos montaram efetivo de 33 mil profissionais, em Paris o número praticamente triplicou, com quase 90 mil destacados para segurança de 11 mil atletas, 2 mil dirigentes e os quase 10 milhões de espectadores.

Serão 50 mil policiais, 20 mil seguranças privados e 18 mil militares, sendo 10 mil especializados em operações antiterroristas.

Mais 40 países ofereceram ajuda e enviarão agentes; um deles é o Brasil, que levará 18 policiais federais. Nas disputas mais recentes, em Tóquio, em 2021, o Japão utilizou 50 mil oficiais para cuidarem da proteção.

O número francês só é comparável ao da Olimpíada no Rio, em 2016, com seus 80 mil policiais e militares. Só que a estrutura da operação francesa é bem mais ampla.

Para garantir proteção à cidade, o governo francês ignorou o rígido protocolo cibernético imposto pela União Europeia e preparou ampla vigilância tecnológica baseada em Inteligência Artificial.

O Tribunal Constitucional da França aprovou legislação que permite a utilização de rede de câmeras integradas que farão a vigília de multidões, áreas públicas e emitirão alertas às autoridades sobre qualquer mínimo sinal de atividade suspeita durante o correr das competições.

Esse tipo de monitoramento vai de encontro à norma de proteção ao indivíduo imposta pela UE, que proíbe vigília biométrica, reconhecimento de emoções e policiamento preditivo, mesmo em situações do tipo.

(Julien de Rosa)
O ministro Gerald Darmanin e o chefe de polícia Laurent Nunez apresentam o perímetro com proteção extra anti-terrorista na cidade; (acima) A prefeita de Paris, Anne Hidalgo (mais ao alto), cumpre a promessa de nadar no Rio Sena; despoluição das águas consumiu US$ 1,4 bi (Crédito:Julien de Rosa)

O Parlamento autorizou em 2023 a aplicação em tempo real da análise algorítmica às imagens das câmeras, possibilitando a identificação de eventos predeterminados que possam significar ameaça à ordem pública.

O sistema é configurado para detectar ainda bagagens abandonadas. O céu parisiense será ocupado por drones, com a missão de monitoramento aéreo e para respostas mais rápidas a incidentes. Invisível mas não menos importante, a cibersegurança terá operação massiva durante a Olimpíada.

Soldado solta um drone de vigilãncia na demonstração do plano de segurança para a cidade durante a terceira Olimpíada que a capital recebe (Crédito:Aurelien Morissard)

No histórico dos Jogos Olímpicos, os números de ameaças digitais vêm dobrando a cada quatro anos.
A primeira competição com histórico de operações maliciosas foi Pequim 2008, quando se restringiam mais a golpes em vendas de ingressos e mensagens nocivas.
Já em Londres, quatro anos depois, foram contabilizados mais de 212 milhões de ataques no pouco mais de um mês que duram as disputas esportivas. Um em especial interrompeu o sistema de energia do Parque Olímpico no segundo dia de competição.
O Rio 2016 não foi um alvo especial dos grupos digitais, mas em Tóquio, em 2021, voltaram com carga total e 450 milhões de ameaças foram computadas.

“Teremos muitos desafios e riscos nos jogos de Paris, principalmente junto às redes de computadores e de Wi-Fi espalhadas pelos locais das competições, aos sistemas digitais para venda de ingressos e entradas nos eventos, aos credenciamentos das equipes e comitivas e aos sistemas que controlam as cerimônias e as cronometragens das disputas”, diz Alexandre Pinto, especialista em Tecnologia da Informação e Segurança. “Nossa maior preocupação sempre é de disponibilizar um sistema de segurança robusto de forma a manter a reputação da instituição e os serviços íntegros e operacionais”, completa da cadeira de vice-presidente de TI do clube com maior torcida do País, o Flamengo.

Abusos aos competidores

Uma das principais preocupações digitais dos organizadores dos Jogos é sobre as investidas contra atletas, com intenção de desmotivá-los às provas. Como as redes sociais são onipresentes e diretamente ligadas a esportes, o COI (Comitê Olímpico Internacional) trabalha com a perspectiva de meio bilhão de postagens vinculadas às provas e competidores.

Para desenvolver projeto de proteção aos esportistas, foi utilizada a Semana Olímpica de E-sports, em Singapura, como projeto-piloto.
Equipes analisaram 17 mil postagens públicas e identificaram 199 potencialmente abusivas, direcionadas aos 122 disputantes por 48 autores diferentes.
Foi criado, então, algoritmo que monitora milhares de contas nas principais redes sociais em 35 idiomas.
Ameaças serão sinalizadas às seções de segurança das empresas com intenção que sejam eliminadas antes que os esportistas notem o abuso.

“Sei que os atletas têm uma perspectiva única e valiosa sobre como os Jogos devem ser organizados e sobre as questões que os afetam enquanto competem. Portanto, estou muito satisfeito com o fato de a Comissão de Atletas e a Comissão Médica e Científica estarem respondendo a esse feedback por meio de iniciativas como o sistema de IA para proteger os mesmos em Paris 2024 contra abusos on-line”, justificou o presidente do COI, Thomas Bach.

“É quase certo que os partidários do Estado Islâmico (EI) e da Al-Qaeda na Europa pretendam atacar as Olimpíadas de Paris”.
Estudo da agência de inteligência Insikt Group

Até por conta própria alguns competidores tentam garantir conforto para as provas. A skatista brasileira Rayssa Leal, de 16 anos, fez pedido ao COB (Comitê Olímpico do Brasil) para que sua mãe possa acompanhá-la e durma com ela em seu alojamento na Vila Olímpica. Em sua defesa, internautas recorreram ao caso da participação do jogador de vôlei holandês Steven van de Velde, que foi condenado em 2017 pelo estupro de uma menina de 12 anos e que está confirmado em Paris. Para a atual edição, o COI abriu uma cota de credenciamento para cada delegação de Oficiais de Bem-Estar, destinada a profissionais de saúde mental.

Efeitos geopolíticos igualmente dominam a atenção dos responsáveis pela segurança na Olimpíada. A Rússia é um caso à parte, já que tem trânsito oficial negado. Primeiro, entre 2018 e 2022, foi proibida de participação competitiva por ter sido descoberto esquema de doping a atletas do país patrocinado pelo governo russo durante os Jogos de Sochi, em 2014. A punição veio somada ao impedimento consequente da invasão da Ucrânia, em 2022, que barra oficialmente competidores russos e bielorrussos.

Os 58 esportistas das duas nações viajam para a França sem representação de bandeira, hino ou cores nacionais, como Atletas Individuais Neutros (equipes são vetadas), o que não minimiza o risco de retaliações terroristas e ou protestos. Pelo contrário. Levou a agência de inteligência Insikt Group a publicar estudo onde aponta “alta probabilidade de hacktivistas causarem interrupções cibernéticas para protestar contra o apoio (francês) à Ucrânia e a Israel”. Mais: “É quase certo que os partidários do Estado Islâmico (EI) e da Al-Qaeda na Europa pretendam atacar as Olimpíadas de Paris”.

A maior jogadora de futebol da história do Brasil, Marta, participa de sua sexta Olimpíada (Crédito:Rafael Vieira)

Prevenção de atentados

“Foram presas pessoas ligadas ao Islamismo radical que planejavam atentados durante as Olimpíadas, então a inteligência francesa tem trabalhado muito na prevenção. Haverá uma série de medidas de segurança extras na cidade”, diz a historiadora Natalia Bravo, que atualmente conclui doutorado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris. “A preocupação tem a ver não só com essa conjuntura internacional de radicalizações, mas também com o crescimento de grupos de extrema direita, que planejam atentados”, completa, em referência à polarização das eleições parlamentares recentes no país.

Até mesmo conflitos de menor proporção causam preocupação aos organizadores. É o caso do envolvimento francês no conflito entre o Azerbaijão e a Armênia, que vem causando severas críticas do primeiro pela suposta parcialidade. No final do ano passado, o órgão estatal francês de vigilância digital desmobilizou campanha de desinformação que difamava os Jogos de Paris. Dois assassinatos de professores no país cometidos por islamitas radicais, um em 2023 e outro em 2020, acendem o sinal amarelo sobre a utilização da violência como forma de protesto.

Jogadora de vôlei (abaixo) veste uniforme oficial da delegação; (aqui) Rayssa Leal tentará segunda medalha olímpica aos 16 anos em Paris (Crédito:Kieran Cleeves)

“É esse tipo de ataque que pode desestabilizar o país e os Jogos. Esse crescimento do islamismo radical na França é que vulnerabiliza o país”, diz Bravo. “Não o fato de o país ter muitas pessoas de origem árabe, mas o crescimento dessa corrente extrema é que pode colocar a França em risco”, conclui.

(Buda Mendes)

Certo é que diante do cuidado imposto no decorrer da competição, é difícil imaginar que a Olimpíada repita, por exemplo, o que aconteceu em Munique, na Alemanha, durante o evento esportivo de 1972. À ocasião, um grupo radical dissidente da OLP (Organização para Libertação da Palestina), o Setembro Negro, tentou sequestrar os membros da delegação de Israel na Vila Olímpica para trocá-los por 200 presos palestinos. A ação foi desastrosa e terminou com 17 mortos, sendo seis treinadores e cinco atletas israelenses. A consequência imediata foi que os gastos com segurança para a Olimpíada seguinte, em Montreal, no Canadá, multiplicaram por quatro.

Vôlei feminino (abaixo) tentará sexto pódio, e a primeira medalhista ginasta brasileira da história busca a terceira na França, após ouro e prata em Tóquio, em 2021 (Crédito:Lionel Bonaventure)

Há sempre o risco, claro, mas na configuração de conexão digital do mundo, a ameaça maior é sempre invisível, como exemplifica Alexandre Pinto: “São diversos tipos de ataques possíveis como Ransomware (criptografar dados críticos e exigir resgate), os ataques DDoS (sobrecarregar e derrubar sistemas e sites importantes), phishing (enganar funcionários, atletas ou participantes, no credenciamento), a proteção de dados contra vazamentos, os dispositivos IoT (Internet das Coisas) onde muitos possuem vulnerabilidades e até mesmo as famosas fake news, causando desinformação e confusão, podendo afetar a organização e reputação do evento”.

(David Mareuil)

Paris realiza sua terceira edição dos Jogos e a pretensão (e esperança) é que fique marcada por feitos positivos, como as duas anteriores.

Em 1900, a capital francesa inovou com disputas nas águas do Sena e a estreia feminina nas competições, quando 19 atletas disputaram medalhas em esportes como tênis e golfe.

Há exatos 100 anos, na segunda recepção do maior evento esportivo do mundo e já consolidado como tal, a cidade estreou a cerimônia de encerramento, foi inspiração para o filme vencedor de Oscar Carruagens de Fogo e apresentou ao mundo o nadador norte-americano Johnny Weissmuller, uma espécie de Michael Phelps da época, que, após levar três ouros, tornou-se o Tarzan mais famoso da história do cinema.

Que a de 2024 entre para a história com marcas do tipo.

Mulheres superam homens na delegação brasileira

Elas superam eles em favoritismo nas provas que acontecem na França, com destaque para skate, ginástica e surfe

O Brasil inicia os Jogos Olímpicos de Paris com uma medalha de ouro feminina – pela primeira vez na história, o País terá mais atletas mulheres (153) do que homens (124) na competição.

E esportes tradicionalmente masculinos, como futebol, handebol e rúgbi, serão disputados somente por elas.

E não por eles, que irão jogar somente basquete e vôlei entre os coletivos.

Modalidades individuais, como pentatlo moderno, levantamento de peso e luta livre, só contarão com brasileiras.

“Por que esse ‘atraso’, com relação ao número delas em Olimpíadas? Vamos lembrar que por muito tempo as mulheres eram proibidas de participar de esportes e foram ainda menos respaldadas em matéria de treinamento [não havia treinos específicos para o biotipo feminino]”, diz Katia Rubio, psicóloga do Esporte e pesquisadora de Estudos Olímpicos. ”Acreditava-se que eram ‘frágeis’, ‘não podiam treinar tanto’. Quando se começou a ver esse treinamento mais digno, o que se vê é uma curva ascendente acentuada de marcas femininas. Essa curva, no caso dos homens, já está estabilizada há tempos, mas no caso das mulheres, não.”

A competição que começa na França marca, também, a primeira vez na história que em soma de todos os países o número de esportistas mulheres será igual ao de homens. “É uma pseudoequidade, mais uma estratégia política do que um fato. Porque o mundo está cobrando e o esporte depende do mercado. E o feminino no geral está em ascensão”, afirma Rubio. “Querem dar a entender que a mulher ocupa espaço, mas apenas na vitrine, porque não chega a instâncias de poder na mesma proporção dos homens. Coloca-se ela para competir , explora-se essa imagem, mas não temos equidade de poder. A imagem exposta não corresponde aos fatos”, completa.

Na mesma Paris, há 124 anos, começou a disputa delas no evento, quando participaram das provas de tênis, vela, croquet, hipismo e golfe. Do total de inscritos para a disputa, 997, apenas 22 eram mulheres.

O Brasil não teve representante feminina até 1932, quando a nadadora Maria Henk participou dos jogos. E o evento realizado no Rio de Janeiro, em 2016, foi o primeiro a ter todas as modalidades disputadas pelos dois gêneros.

As ausências brasileiras, em ambos os sexos, serão no breaking, basquete 3×3, escalada esportiva, hóquei sobre a grama, golfe, levantamento de peso, nado artístico e pólo aquático.