Editorial

A bala certeira nos EUA

Crédito: Anna Moneymaker/AFP

Carlos José Marques: "O bilionário aventureiro escapou por um triz de ser assassinado e avança direto para ocupar mais uma vez o assento mais poderoso da Terra" (Crédito: Anna Moneymaker/AFP)

Por Carlos José Marques

A velocidade com a qual os rumos políticos nos EUA vão se definindo, de forma perigosamente beligerante, consolidando o pior destino via vitória do extremismo dentro da mais poderosa nação do planeta, assusta. Agora existe uma bala em meio ao caminho da democracia. Um projétil que mirava o candidato republicano Donald Trump, que raspou a sua orelha e acabou por acertar em cheio as esperanças de barrar um projeto de poder claramente xenófobo, anárquico e autoritário. A intolerância trumpista está prestes a se consagrar, assumindo de novo o poder, liquidando de vez com as chances de sobrevivência de alguma racionalidade naquele país. Vem sendo cada dia mais difícil resistir à tempestade de ameaças do fanfarrão americano, ainda mais apresentando-se como opositor na disputa das urnas o atual titular da Casa Branca, Joe Biden, esse com sinais de uma senilidade insuperável. Todos sabem do poder de vitimização que atentados geram sobre potenciais candidatos políticos. No Brasil, a facada em Jair Bolsonaro deu no que deu. Os EUA são pródigos em episódios do tipo, na maioria deles com fins trágicos, mas a recordar, no caso de Ronald Reagan, que comandou o país nos idos de 1980 e sobreviveu ao ataque, que o acontecimento lhe trouxe um prestígio junto ao público capaz de praticamente sacramentar a sua vitória para um segundo mandato. Reagan, na ocasião, venceu de lavada o escrutínio após a agressão. O poder de comoção que Trump agora carrega frente a um opositor mentalmente debilitado, que já vinha derretendo nas pesquisas, é enorme. A oposição democrata, que peleja para manter a presidência, apela ao argumento de que tudo aconteceu pelo descontrole das leis sobre o uso de armas — uma de suas bandeiras mais caras. É a justificativa restante e de eficácia duvidosa para virar votos a favor. Já os republicanos, não há dúvida, sabem que o atentado serve como munição para liquidar qualquer ressalva que existia entre aliados e apoiadores dos impulsos notoriamente delinquenciais de Trump. A tensão e a incerteza pairam no ar do mundo inteiro ante o cenário que se desenha. Quem aposta na violência vem acertando em cheio. O uso político do crime dará o tom daqui por diante, muito embora o imperativo global seja no sentido de que a calma retorne e traga clareza de escolha aos americanos. O temerário capítulo do tiro disparado por um lobo solitário na Pensilvânia, durante comício, trouxe ingredientes explosivos ao centro do palco. Ali, Trump, sentindo o bom momento de angariar simpatizantes, sangrando no rosto, levantou-se após atingido e ergueu o punho diante dos fotógrafos e do público, tentando demonstrar força, tendo por cenário uma bandeira dos EUA que tremulava ao fundo. A dramaticidade compunha o quadro perfeito e o favorecia. Muitos dos admiradores chegaram a comentar que ali estava a repetição da icônica imagem dos fuzileiros navais americanos cravando a bandeira nacional em solo da ilha japonesa de Iwo Jima durante a Segunda Guerra Mundial. Claro exagero, mas a versão pautou e se sobrepôs aos fatos. É do jogo. Nas redes sociais, uma enxurrada de versões majoritariamente privilegiaram e enalteceram Trump na condição de herói. O republicano espera desta feita, finalmente, dar o troco da derrota sofrida lá atrás contra o mesmo cambaleante Biden. Decerto, a verdadeira face de Trump como um oportunista inveterado ficará em evidência. Quão radical ele se mostrará daqui por diante ainda é uma incógnita. Analistas defendem que ele irá moderar o tom para parecer mais afável e digerível aos olhos daqueles que ainda o rejeitam. Com a vantagem de uma bala no currículo, basta administrar o comportamento aloprado para garantir a maioria. Tá fácil. Democracias fraquejam justamente em instantes assim, quando o imponderável prevalece. A substituição de Biden na chapa da oposição poderia ajudar na resistência. Com a sua vice de opção, Kamala Harris, um novo simbolismo poderia adicionar gás à disputa. Os próximos dias e definições a respeito serão decisivos. Os EUA estão à beira do abismo. O primitivismo parece estar vencendo dentro de um ciclo sombrio que já acomete inúmeras outras partes do mundo. Trump consolida uma imagem messiânica no velho e surrado figurino populista de salvadores da pátria — que nunca são solução, embora sempre galvanizem as atenções no imaginário geral. A política vai virando, assim, o território dos golpes baixos, e a fatalidade no desfecho prevalece nesse ambiente. Só um milagre ou algo absolutamente fora do roteiro poderá salvar a alternativa Biden. Ninguém duvida mais que a vitória trumpista é iminente. O bilionário aventureiro escapou por um triz de ser assassinado e avança direto para ocupar mais uma vez o assento mais poderoso da Terra. Para a infelicidade geral.