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Provas do crime: como o relatório da PF pode implodir futuro político de Bolsonaro

Crédito: Evaristo Sá/AFP

Ex-presidente Jair Bolsonaro: indiciamento no caso das joias se soma ao do inquérito da falsificação do cartão de vacina contra a Covid-19 (Crédito: Evaristo Sá/AFP)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• Relatório da PF devastador para o futuro político de Jair Bolsonaro exibe provas de que ele recebeu dinheiro vivo de empresário ainda no cargo
• Documento indica que ex-presidente liderou esquema para desviar e vender joias de alto valor doadas à União
• Bolsonaro foi indiciado, junto a onze colaboradores, por associação criminosa, lavagem de dinheiro e peculato
• Se a PGR oferecer denúncia e ele for condenado, poderá pegar até 25 anos de prisão
• É só o começo: vem mais processos por aí

 

A conclusão parcial das investigações da Polícia Federal no inquérito sobre apropriação indevida para venda de presentes doados ao patrimônio da União, reunidas em um relatório farto, robusto, de 2.041 páginas, mostra que o ex-presidente Jair Bolsonaro, líder maior da extrema-direita do Brasil, sai da vida política para entrar na crônica policial como falsário e ladrão de joias. Ao contrário do que recomenda a liturgia do cargo, ele governou à frente de uma quadrilha que saqueou bens presenteados por chefes de governos de países árabes ao Estado brasileiro.
• Apropriou-se de nove conjuntos de pedras preciosas e ouro de alto quilate, num montante de R$ 6,826 milhões, ou US$ 1.227.725,12, em valores convertidos à época em que ele embolsou parte do dinheiro da venda em leilões, nos EUA.
• Foi indiciado em três crimes: associação criminosa, lavagem de dinheiro e peculato (apropriação ilegal de dinheiro ou bem público).
Se a Procuradoria-Geral da República (PGR) oferecer denúncia e ele pegar penas máximas, poderá receber até 25 anos de xilindró. Tudo indica que mais processos virão por aí.

(Divulgação)
O mais provável é que a PGR apresente a denúncia em meados de agosto. Há a chance, menor, de a decisão ocorrer após as eleições municipais, para evitar acusações de interferência política.
O terremoto sob as pernas do ex-capitão parece não ter fim.
Na madrugada de quinta (11), a PF colocou o bloco na rua na quarta fase da Operação Última Milha, sobre suspeita de divulgação de notícias falsas a respeito de integrantes dos poderes e jornalistas, para cumprir cinco mandatos de prisão e sete de busca e apreensão, ordenados pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.
Foram detidos Mateus Sposito, ex-assessor do Ministério das Comunicações e suspeito de integrar o gabinete do ódio, Richards Pozzer, divulgador de notícias falsas, e o policial federal Marcelo Bormevet, ex-comandante do setor de inteligência da Abin. No embalo, Moraes removeu o sigilo da Última Milha.

Todos eram ligados ao ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem, atual deputado federal pelo PL-RJ e pré-candidato à prefeitura do Rio. Formavam o núcleo duro da Abin Paralela, suposto esquema de monitoramento e espionagem ilegal da Agência Brasileira de Inteligência liderado pelo vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ), o Carluxo, chefe do gabinete do ódio.

A PF está de olhos arregalados sobre eles. A lista de grampeados é recheada de pesos pesados. Nela estão os ministros do STF Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Luis Roberto Barroso e Luiz Fux. E também o ex-governador de São Paulo João Dória, os senadores Alessandro Vieira, Omar Aziz, Renan Calheiros e Randolfe Rodrigues e o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Bolsonaro incorporou palmeira doada no Barhein em 2021 ao “patrimônio pessoal” (Crédito:Alan Santos)

Bolsonaro soma o indiciamento no caso das joias ao do inquérito da falsificação do cartão de vacina contra a Covid-19. Deverá tornar-se, em breve, réu em ações penais no STF. Assessores do ex-presidente se utilizaram do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica para dar fachada à incorporação e transferência de bens para o acervo privado de Bolsonaro, ou “patrimônio pessoal”, como diz o relatório. Métodos vergonhosos, repugnantes e sem precedentes na história da República.

Documentos e testemunhos revelam que uma operação que parecia desprezo pela passagem da faixa presidencial ao sucessor foi, a rigor, uma ação para desviar joias.
Bolsonaro viajou a Orlando, na Flórida, EUA, para acompanhar de longe os ataques golpistas de 8 de janeiro, sem descuidar de sua marca: tirar vantagem financeira das funções públicas que ocupa.
Ainda como presidente, levou, no avião presidencial, maletas com as joias que seu ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid — o homem-bomba cujo relato deverá levá-lo à cadeia — e assessores se encarregariam de colocar à venda em leilões.

Em 21 de setembro de 2022, Bolsonaro escapuliu da agenda da Assembleia da ONU para se reunir com Mauro Cid (de marrom) e o pai dele, Lourena Cid (com mãos no copo) num hotel de Nova York. De acordo com o relatório, teria recebido ali dinheiro da venda de dois relógios dados à União (Crédito:Divulgação )

Trapalhadas

Descoberta a trama, entraram em cena os advogados Frederick Wassef e Fabio Wajngarten. Após o Tribunal de Contas apontar o rolo, os dois se envolveram numa maratona marcada por trapalhadas para recuperar as joias e devolvê-las ao acervo da Presidência.

No auge do esforço para desfazer a bobagem, o governo, numa ação “desesperada”, termo usado pelos agentes, mobilizou ao menos 15 servidores na tentativa de resgatar um kit de joias apreendido pela Receita no aeroporto de Guarulhos. Em vão.

Bolsonaro sabia de tudo e acompanhou a movimentação de assessores para comercializar as joias: “Selva!”, comemorou ao responder, numa saudação de militares das Forças Especiais do Exército, o link de um dos leilões enviado por Cid.

O inquérito das joias, que teve sigilo levantado por Moraes na segunda (8), tem fartura de provas ligando Bolsonaro à movimentação de assessores para:
recolocar os presentes no Brasil,
transferi-los ao acervo privado,
vendê-los,
e depois ordenar o resgate.

Todas as etapas foram geridas por Cid, que admitiu ter agido a mando do ex-presidente.

Nas mensagens, Mauro Cid pergunta a Marcelo Câmara se Samuel Oliveira entregou o dinheiro enviado pelo empresário do agronegócio Paulo Junqueira a Bolsonaro em dezembro de 2022, quando ele ainda era presidente. O assessor diz que sim. Oliveira é genro do empresário, que emprestou casa nos EUA ao ex-capitão e teria mandado também cartão de crédito (Crédito:Divulgação )
(Divulgação)

• Cid, o coronel Marcelo Câmara, o tenente Osmar Crivelatti, Wassef e Wajngarten se envolveram diretamente na recuperação dos bens vendidos nos Estado Unidos.

O ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque foi responsável por trazer da Arábia Saudita, em outubro de 2021, o kit rosé (conjunto masculino Chopard, com caneta, relógio, abotoaduras e um rosário árabe), colocado em leilão. Segundo a polícia, o conjunto seguiu com a comitiva no voo presidencial do dia 30 de dezembro de 2022.

• Mais tarde, pelo link enviado por Mauro Cid, Bolsonaro, teve acesso à página do leiloeiro pelo celular e comemorou com o “selva” (tudo bem, tudo ok), o que confirma, atesta a PF, que ele, ao contrário do que insiste em dizer, tinha plena ciência da mutreta.

Parte do relatório do delegado federal Fabio Shor destaca que, descoberta, a organização estruturou operação clandestina para recuperar os presentes, em lojas americanas.

Não faltaram trapalhadas.
• Cid tentou excluir mensagens trocadas com Marcelo Câmara sobre a recuperação de um kit de ouro branco, mas foi descoberto por ter mandado as imagens para outro aplicativo.
Wassef, ao perceber a movimentação de fãs do “mito” na Flórida, tentou se esconder atrás de um poste, mas a circunferência da barriga e o porte o denunciaram e ele acabou tendo de fazer cara de paisagem em fotos com curiosos. “Foi a coisa mais louca que vi na minha vida”, disse à namorada.
No vôo de retorno para o Brasil, Wassef encheu a paciência de uma funcionária da companhia aérea em busca do ponto mais camuflado do avião e tentou enfiar a cabeça na fuselagem para se esconder, outra vez sem sucesso.

Para a PF, indícios apontam “a atuação de uma associação criminosa voltada para a prática de desvio de presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-presidente da República JAIR BOLSONARO”. Assim mesmo, em letras maiúsculas.

A PF buscou provas, via cooperação com a polícia americana, para mostrar a movimentação no exterior. Em setembro de 2023, Bolsonaro escapuliu da Assembleia Geral da ONU para se reunir com Mauro Cid e o pai dele, general Mauro Lourena Cid, à época presidente da Apex, no restaurante do hotel Omni Berkshire Place, em Nova York. Ali teria recebido, em dinheiro vivo, US$ 37,6 mil (R$ 203,7 mil), das mãos de Lourena Cid, parte da venda de dois relógios valiosos, um Patek Philippe e um Rolex, por US$ 68 mil (R$ 368,3 mil).


No último dia 4 de fevereiro, Bolsonaro responde com o jargão militar “selva” (tudo bem, tudo ok) a mensagem em que Mauro Cid anexa link do leilão de kit de joias da União que seria leiloado quatro dias depois nos EUA. (Crédito:Divulgação )

Despiste maroto

Os investigadores definiram o destino de nove kits no inquérito, que indicia também onze assessores envolvidos nos trambiques. O dinheiro vinha sempre em espécie, para driblar o sistema financeiro, e era encaixado no patrimônio pessoal do ex-presidente trazido por assessores. O texto não deixa dúvidas: “Foram desvios perpetrados pela associação criminosa com a finalidade de enriquecimento ilícito do ex-presidente”.

Três dias antes de deixar o Brasil, Bolsonaro tentou um despiste maroto: converteu R$ 800 mil em dólares e espetou a grana numa conta no BB Américas, supostamente com o intuito de custear despesas nos EUA. O problema é que, até 18 de abril de 2023, quando estava de volta ao Brasil, ele sequer havia tocado nesse dinheiro, o que reforça suspeitas de que recorreu, no exterior, a recursos vindos de outras torneiras, entre elas um caixa dois feito com a venda das joias.

O indiciamento nos casos da vacina e das joias parece ser apenas o começo.

• Até final de julho ou início de agosto, a PF concluirá os inquéritos sobre gabinete do ódio, uso da Agência Brasileira de Inteligência e o mais importante: tentativa de golpe de 8 de janeiro.

A denúncia formal da PGR sobre qualquer uma dessas frentes deverá tornar Bolsonaro réu no STF, dando início a uma romaria judicial cujas sentenças seriam conhecidas até o início do ano que vem. Uma eventual prisão seria anunciada antes das eleições de 2026.

Bolsonaro abriu mão de se defender na fase de inquérito, mas sente no ombro um fato: a situação é dramática. Tem insuflado apoiadores a colocar em votação uma anistia no Congresso, algo impensável no Judiciário antes das condenações que o levem à prisão. Uma coisa parece certa: outras broncas virão.

O PC Farias de Bolsonaro
Relatório detalha como ex-capitão recebeu dinheiro vivo de empresário quando ainda era presidente

Em 31 de dezembro de 2022, Bolsonaro recebeu, em Orlando, o advogado e secretário de Meio Ambiente de Ribeirão Preto (SP), Samuel Sollito de Freitas Oliveira, em missão pra lá de suspeita. Levou um envelope com dinheiro e um cartão do sogro, o empresário rural Paulo Junqueira, um dos homens fortes do agro bolsonarista.

O numerário foi entregue ao coronel Marcelo Câmara, que embolsou uma parte, para despesas da comitiva, e entregou o restante ao ex-presidente. Operação semelhante só se viu no governo de um dos apoiadores de Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Collor, cujas despesas eram bancadas com dinheiro extorquido de empresários por seu ex-caixa de campanha, Paulo Cesar Farias, o PC Farias.

Assassinado em 1996 em Maceió, PC comandou um dos maiores esquemas de arrecadação de propinas da história do País. Por isso, foi pivô do impeachment de Collor.

O delegado Fabio Shor anotou no relatório que valores foram entregues “à equipe do ex-presidente”. O episódio Junqueira não deve ser considerado isoladamente. “Novas informações podem surgir no transcorrer das investigações”, assinala Shor.

O ex-presidente ainda não explicou o que fez com os R$ 17 milhões enviados por apoiadores como contribuição, via pix, nem a razão de ter recebido um pacote de joias avaliado em R$ 16,5 milhões em visita a países do Oriente Médio, em outubro de 2021.

Pode ter sido mera coincidência, mas, um mês depois, o fundo de investimento Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos, comprou a refinaria baiana Landulpho Alves por R$ 10,1 bilhões em leilão da Petrobras.

Dono da casa ocupada por Bolsonaro em Orlando, presidente do Sindicato e Associação Rural de Ribeirão Preto, Junqueira é unha e carne com o ex-secretário nacional de Assuntos Fundiários de Bolsonaro, Antônio Nabhan Garcia, que comandou a UDR e é citado no relatório da PF.

Os indiciados

Jair Bolsonaro e onze colaboradores foram apontados no relatório da Polícia Federal como suspeitos de até quatro crimes:
• associação criminosa (previsão de pena de um a três anos de prisão),
lavagem de dinheiro (três a dez anos),
peculato – apropriação de bem público (dois a 12 anos),
advocacia administrativa (um a três meses e multa).

Saiba quais eram as funções deles no governo e os delitos em que cada um está envolvido

(Divulgação)
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