Internacional

O recado popular de França, Reino Unido e Irã: extremismo não

Mesmo insatisfeitos com candidatos, eleitores na França, Reino Unido e até no Irã apelaram ao voto útil para barrar radicais: um exemplo para os EUA, com eleição em novembro

Crédito: Emmanuel Dunand

Derrota da extrema-direita foi comemorada pelos franceses, mas deputados terão de negociar para não travar o governo (Crédito: Emmanuel Dunand)

Por Denise Mirás

Se existe algo em comum sobre as eleições de três países tão diferentes, como França, Reino Unido e Irã, é o recado de insatisfação popular quanto a seus governantes. Mesmo que expresso por formas diferentes.
• A França mostrou o desprezo pelo presidente Emmanuel Macron no primeiro turno, mas votou conscientemente no segundo, para barrar a extrema-direita, que adotou uma nova máscara para ocultar o propósito de corroer valores humanos e instituições.
• No Reino Unido, os britânicos votaram nos trabalhistas para escorraçar os conservadores, há 14 anos no poder, reafirmando que não engolem mais a ilusão de que a saída da União Europeia iria melhorar as condições da população. Ao contrário, agora o Brexit é visto como a pior decisão do país nos últimos 50 anos.
• No Irã, o ânimo de se arrastar às urnas e votar no único reformista “consentido” entre os conservadores ultrarradicais também foi para revelar que preferem sair do isolacionismo e reatar negociações com o Ocidente, como tentativa de sair do buraco inflacionário e do moralismo violento em que o país dos aiatolás se vê atolado.

Os americanos serão influenciados pela lição de franceses, britânicos e até mesmo iranianos, de que é preciso defender o fortalecimento da democracia contra a corrosão das instituições, camuflada pelo discurso populista e radical da extrema-direita, se tiverem de optar entre Joe Biden e Donald Trump na eleição presidencial de 5 de novembro? Difícil prever.

Mas ao menos podem ser encorajados a ir às urnas para votar acreditando que a extrema-direita, como fenômeno global, não é imbatível e não existe apenas uma única forma de lidar com esses radicais, como observa Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relação Internacionais da UnB, mas maneiras diferentes — mesmo porque a insatisfação dos eleitores, em cada um desses países, tem origens diversas.

“Ninguém venceu. Somente as forças republicanas representam uma maioria absoluta.”
 Emmanuel Macron, presidente francês, sobre a derrota da extrema-direita

No último dia 7, a França registrou o maior comparecimento às urnas em 43 anos, com 67% dos eleitores, muitos deles votando em resposta ao apelo de impedir os extremistas de conseguirem mais cadeiras na Assembleia Nacional, depois de terem mostrado força nas eleições para o Parlamento Europeu. É o que se chama de “cordão sanitário” para impedir a extrema-direita de chegar ao poder “um arranjo da Quinta República, originalmente para vetar o comunismo nos anos 1960”, como explica Vladimir Feijó, doutor em Direito Internacional.

No segundo turno legislativo, a esquerda francesa se aliou como Nova Frente Popular, improvisada em uma semana, depois de assistir à vitória extremista no primeiro turno, em 30 de junho. Assim, mesmo insatisfeitos com Macron, houve votos dos esquerdistas para candidatos do centro que estivessem mais fortes em determinados distritos. Ficou demonstrado que a opção foi por estabilidade, como diz Feijó, e que o primeiro objetivo — de barrar os extremistas — foi alcançado, com 182 deputados da coalizão eleitos, mais 168 centristas do Juntos (aliança liderada pelo Renascimento de Macron), sobre 143 dos apoiadores do Reagrupamento de Le Pen.

O trabalhista Keir Stamer e a mulher Victoria, à frente da residência oficial do primeiro-ministro britânico, na conhecida 10 Downing Street (Crédito:Kin Cheung)

Mas agora o Parlamento, de 477 lugares, se vê em meio a um quebra-cabeça de negociações, porque nenhum bloco fez a maioria de 289 cadeiras.

Gabriel Attal, primeiro-ministro significativamente jovem (35 anos) e gay de Macron, até pode permanecer no cargo, para não travar o governo, se não houver consenso na indicação de outro nome pela esquerda. As sugestões para primeiro-ministro, por presidente ou partido, são sujeitas a “moção de censura” e, portanto, veto.

Desde a implantação da Quinta República, em 1958, a França já passou três vezes por essa situação, chamada de “governo de coabitação” — quando primeiro-ministro e presidente representam correntes ideológicas diferentes.
Em 1986, com François Mitterrand (presidente de esquerda) e Jacques Chirac (primeiro-ministro de direita).
Em 1993, com Miterrand (presidente) e Édouard Balladur (primeiro-ministro de direita).
Em 1997, com Chirac (presidente de direita) e Lionel Jospin (primeiro-ministro de esquerda). Os franceses novamente correm o risco de ver o país paralisado.

Jean-Luc Mélenchon, da esquerda, apelou por votos de aliados até em candidatos do centro, se necessário (Crédito:Sameer Al-doumy)

De toda forma, com maioria de esquerda na Assembleia Nacional, e ainda liderada pela França Insubmissa, partido de Jean-Luc Mélenchon, as negociações agora podem ser focadas no restabelecimento de benefícios sociais, por exemplo com a retomada da idade para aposentadoria, de 62 anos, que havia sido estendida pelo governo Macron para 64 por meio de artifício constitucional, sem passar pelo Parlamento.

No Reino Unido, a derrota dos conservadores já era esperada, com os trabalhistas liderados por Keir Starmer (devidamente aprumado para o cargo de primeiro-ministro, apesar da baixa popularidade) fazendo 411 assentos dos 650 da Câmara dos Comuns.

Para o professor Goulart, os britânicos acreditaram que saindo da União Europeia tomariam decisões próprias, o que aceleraria o processo econômico para o bem-estar da população, mas perceberam que “foi a pior decisão que tomaram em 50 anos”.

Vladimir Feijó observa que os trabalhistas também se valeram do sistema eleitoral que diziam “corrompido” pelos conservadores, e agora têm gordura para aguentar um período de cobrança e pressão da população, enquanto repensam a deportação de imigrantes e a emigração de profissionais altamente qualificados para outros países do continente.

Resultados apertados

Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, destaca que os eleitores britânicos se colocaram contra uma agenda alinhada politicamente com a extrema-direita (com projetos mais ensimesmados em vez de universalizados, e com decisões anti-imigrantes), que vem desde a aprovação do Brexit. “Mesmo sem uma ascensão notória de extremistas no país, ao que tudo indica vai haver uma reversão ideológica com o novo governo”, afirma Amaral, o que mostra uma tendência positiva de acompanhar o freio da extrema-direita na Europa, reafirmada com a “interessante reviravolta democrática” que se viu na França. Ainda assim, alerta, “não podemos deixar passar batido: ainda existe um mundo em disputa ideológica, com números muito apertados”.

Com relação aos resultados de eleições que rejeitaram extremistas na Europa e poderiam servir de exemplo aos EUA, barrando a extrema-direita representada por Trump, o professor Goulart comenta: “Os franceses já têm seu inimigo identificado. Tanto que a Le Pen colocou o Jordan Bardella, um jovem de 28 anos, como figura central para o eleitorado. Os franceses conhecem esse inimigo e vêm parando a onda extremista desde 1940, pelo consenso de risco que representa. É um voto mais politizado, mais consciente”.

Para os EUA, é um desafio maior. “Talvez sirva para mostrar que a extrema-direita como fenômeno global não é imbatível e que pode ser combatida de formas diferentes. Isso talvez fortaleça e encoraje a luta pela defesa da democracia.” Ao mesmo tempo, como contrapõe Vladimir Feijó, “os EUA estão em crise de gerontocracia — como aqui também estamos. É gente que concorre e ocupa cargos há 30 anos”, e os extremistas de Trump “podem se aproveitar do que os correligionários franceses estão fazendo: testar novas táticas eleitorais com jovens midiáticos, por exemplo”.

“O problema dos EUA é a base sólida de eleitores de Trump que não se modifica, que vota regularmente em seu projeto de poder, mesmo em um cenário com acusações de crimes contra ele”, destaca Rorigo Amaral. “O que não se dá do lado do Biden, com boa parte de eleitores votando nele por falta de alternativa, como fizeram os franceses para barrar os radicais.” Ocorre, no entanto, que, domesticamente, o governo Biden não é ruim, observa o professor, com a economia crescendo e desemprego caindo. “Mas internacionalmente pega, com duas guerras que são mal vistas pela população.”

Para ele, o ponto mais crítico para o Partido Democrata é conseguir incentivar o eleitorado a ir às urnas, como na França, para derrotar o projeto extremista de direita, que tem apelo muito grande. E reforçar a ideia de unidade, para passar segurança ao eleitor e interromper essa tendência que se vê de substituição de governo, de “um vai e vem entre dois espectros políticos”.