Enquanto meu coração doer

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Antonio Carlos Prado: "Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, os senhores já se colocaram no lugar de uma mulher forçada a levar até o fim a gestação advinda de um calhorda estuprador em um terreno baldio?" (Crédito: Divulgação)

Por Antonio Carlos Prado

Os parlamentares que compõem o Congresso Nacional são legais e legítimos em suas decisões porque a eles foram outorgados mandatos populares em sufrágio universal, voto secreto e periódico, conforme prevê a Constituição Brasileira. Congresso e sociedade são espelhos, um a refletir as eventuais belezas ou feiuras do outro, reciprocamente – e sem interrupção. Isso não significa, no entanto, que as atitudes dos constituídos que fujam à racionalidade mereçam ser aceitas e respeitadas.

A imagem que se segue, e exemplifica, foi criada por Woody Allen: o ditador de um país ordena que as cuecas sejam vestidas sobre as calças. Se um parlamentar propõe isso, claro que enlouqueceu ou está com chacotas e seu eleitor não mais precisa respeitá-lo – só lhe resta lamentar o voto desperdiçado. Aliás, em se tratando de Brasil, talvez mais um voto desperdiçado.

No campo da simbologia e da memória histórica ficará perenemente marcado o fato de o Conselho Federal de Medicina ter proibido em determinado momento o procedimento de assistolia fetal já na vigésima segunda semana de gravidez, ainda que a gestação tenha sido decorrente de estupro. A vedação do CFM ficará colada para sempre, ficará a latejar para sempre, ficará a sangrar para sempre em nossa história, ainda que a medida seja derrubada. Também a hesitação da maioria dos parlamentares, sobretudo de seus líderes, em combater com presteza essa absurda resolução do CFM maculou irremediavelmente o Congresso Nacional – as cuecas entrarão para a história sobre as calças.

É com o mais lógico formulador da sociologia, Max Weber, que se aprende que a liderança se firma por ser ação racional, tradicional ou carismática. A maioria de nossos deputados e senadores carece dessas três características – o carisma e a ação racional, na Câmara e no Senado, resumem-se a barganhas; e da tradição sabemos de seus vícios desde o primeiro dia de República. Para agradar determinadas bancadas, parlamentares abriram mão da ética do dever (novamente Max Weber) em nome da ética do interesse pessoal. Até hoje, o mais vexatório fato no Congresso fora quando Auro de Moura Andrade, em sessão de 2 de abril de 1964, decretou vaga a Presidência do Brasil, mesmo estando o presidente João Goulart em chão brasileiro, no Rio Grande do Sul.

Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, os senhores já se colocaram no lugar de uma mulher forçada a levar até o fim a gestação advinda de um calhorda estuprador em um terreno baldio? Ensina a weberiana ética do dever como essa racionalidade de liderança tem de ser posta acima de permutas com bancadas. É a terceira vez que volto a esse tema. E a ele retornarei quantas vezes meu coração doer e mandar.