Editorial

A infâmia do congresso

Crédito: Divulgação

Carlos José Marques: "Até que ponto serão capazes de chegar esses senhores para alcançar o fim desejado, de um poder absoluto?" (Crédito: Divulgação )

Por Carlos José Marques

Há algo de tenebroso na escalada obscurantista daqueles que comandam as Casas Parlamentares em Brasília. O risco de se mergulhar o País em uma temporada de retrocessos sem fim é real. Nos últimos dias os brasileiros assistiram a um espetáculo macabro dirigido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, que a toque de caixa, em ridículos 23 segundos, lançou na pauta congressista um projeto que puniria mulheres que abortassem com penas superiores às dos próprios estupradores, numa inversão de valores brutal e indecente, sem qualquer amparo legal. De maneira afrontosamente imoral, Lira e seus asseclas acharam por bem encenar o absurdo à revelia dos próprios eleitores que, majoritariamente, condenaram tamanha afronta. Os deputados que aderiram à pantomima tinham estratégia e objetivos abomináveis: acuar o governo Lula com um projeto vil para que ele fosse premido a se posicionar e, assim, perder apoio junto a alguns currais mais conservadores de voto. Na prática, buscaram usar o corpo das mulheres para mera chantagem política. Deplorável o ardil! Até que ponto serão capazes de chegar esses senhores para alcançar o fim desejado, de um poder absoluto? A sociedade como um todo precisa dar realmente uma resposta exemplar a esses saqueadores de princípios civilizatórios. Decerto, a estatura moral do Congresso vem caindo aceleradamente, rumo ao esgoto. Tudo por conta de uma gestão deletéria, indigna e movida à soberba por parte do senhor Lira, que faz o que quer e bem entende contra os valores mais elementares da cidadania, visando a vantagens pessoais. Na Câmara dos Deputados montaram uma verdadeira patifaria que, efetivamente, caso levada adiante, pode condenar milhares de mulheres até à morte, por evitar o acolhimento e tratamento médico adequados. Os mentores da canalhice indecorosa chegaram a fazer uso de mentiras para levar adiante o intento. Bolsonaristas na esmagadora maioria parecem acreditar piamente que as fake news servem como melhor instrumento de convencimento, não importando o quão brutais sejam as intenções. Nos últimos cinco anos, o numero de abortos legais, previstos na legislação em vigor até aqui, que abrange casos de estupro, de riscos à vida da mãe ou de fetos com anencefalia, cresceu 71% no Brasil. São em média sete casos registrados por dia, segundo levantamento do Ministério da Saúde, e é justamente nessas situações que a medida tenta coibir, irresponsavelmente, a prática. E o que é pior, invertendo de maneira monstruosa o ônus do crime. Vale lembrar que o risco de um bebê morrer no parto dobra quando a mãe tem menos de 15 anos e boa parte dos estupros, especialmente praticado por pessoas próximas, atingem justamente essa faixa de público. Na toada do PL do aborto, também já batizada de PL do estuprador, o Brasil se equipararia ao Afeganistão e à Indonésia – conhecidos por suas violações dos direitos das mulheres – dentre as nações mais radicais e desumanas do mundo nesse tema. Uma desonra que além de estilhaçar com a inocência de crianças vítimas de violência sexual, atingindo ferozmente jovens que são abusadas, nos transporta de volta a era medieval. É sórdido condenar vítimas de estupro a qualquer pena devido ao aborto. A proposta é desastrosa tanto na índole quanto nos objetivos, completamente desprendida da realidade, dos fundamentos constitucionais e até do interesse público. A reação negativa nesse sentido veio rapidamente. A OAB apontou que a proposta fere de maneira inequívoca a Carta Magna. O presidente Lula chamou de “insanidade” a decisão e mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) expressou preocupação com a forma como o tema vem sendo conduzido pelo Legislativo. Existe, no mínimo, desconhecimento escancarado dos autores sobre a questão. Ao equipararem aborto a homicídio invertem valores e abraçam uma teocracia caquética em busca de votos. Lira em pessoa quis mais uma vez testar sua força, agradar evangélicos e, de quebra, alfinetar Lula, como uma espécie de vingança rasteira por não ter sido atendido em certas demandas. É uma tática estapafúrdia, inconsequente e arquitetada como teste para a captura do Estado. O Supremo Tribunal Federal (STF) se mostrou estarrecido. Logo, boa parte dos senadores e também dos deputados reviram posições e também passaram a condenar a ideia diante de tanta reação negativa. Os simpatizantes do ultraconservadorismo perceberam o tiro no pé, mas não dá para esquecer da infâmia que tentaram levar adiante.