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Extremistas ganham musculatura na Europa: tendência pode se espalhar pelo mundo?

Direita radical amplia espaço na Europa Unida com o bom desempenho nas eleições para o parlamento do continente, e impõe uma questão: até que ponto irá ameaçar democracias e contribuir para a volta de regimes totalitários

Crédito: Serge Tenani

Bardella (de terno) e Marine (ao seu lado) comemoram, em Paris, o bom desempenho dos extremistas no país (Crédito: Serge Tenani)

Por Eduardo Marini, Luíz Cesar Pimentel e Denise Mirás

RESUMO

• Parlamento Europeu ficou recheado de representantes da direita radical, que, se não é maioria, ganhou cadeiras e estridência 
• O temor é o de que a onda extremista produza efeitos negativos de forma global, abale democracias e contribua para a volta de regimes nacionalistas e totalitários
• Os social-democratas e verdes, posicionados do centro para a esquerda, viram 41 posições de suas bancadas derreterem
•  A centro-esquerda social-democrata alemã, do chanceler Olaf Scholz, sofreu a maior derrota desde a II Guerra, ao arrebanhar apenas 14% dos votos
• As pautas sensíveis aos socialistas foram colocadas em segundo plano e os Verdes tiveram a maior derrota de sua história

 

Quando o sobrinho de Napoleão Bonaparte, Carlos Luis, deu golpe de estado na França, em 1851, o filósofo e economista alemão Karl Marx cunhou uma frase lapidar: “Todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa”. Ironicamente, no final de semana em que o mundo celebrou os 80 anos do Dia D, o desembarque das tropas aliadas no litoral francês da Normandia, marco da reviravolta na Segunda Guerra para derrota do nazismo, a ultradireita raivosa e impetuosa, que conquistou governos e fatias eleitorais importantes pelo mundo afora nos últimos anos, teve o avanço consolidado também na Europa, levando temor a grande parte do mundo.

No centenário do manifesto nazista Mein Kampf (Minha Luta), em que Adolph Hitler destila ódio racial, nacionalismo, antissemitismo e antimarxismo, os cerca de 450 milhões de eleitores dos 27 países-membros da União Europeia turbinaram a quantidade de representantes com ideias próximas ou semelhantes às de Hitler entre os 720 eleitos para o Parlamento Europeu, com sede em Estrasburgo, na França.

A posse está marcada para 16 de julho. O temor é o de que a onda radical produza efeitos negativos de forma global, abale democracias e contribua para a volta de regimes nacionalistas e totalitários, como os que levaram a humanidade a atrocidades históricas.

Integrantes do grupo 1143, do neonazi Mario Machado, se manifestam em Lisboa (Crédito:Zed Jameson)

“A ascensão da extrema-direita é a demonstração maior de que o projeto liberal supranacional, de entrega aos tecnocratas, não bate com o desejo do eleitorado europeu. O centro, defensor de pautas europeias técnicas, não satisfaz o eleitor, mais preocupado com problemas imediatos, como qualidade de vida, questões previdenciárias, alta da inflação e de custos”, resume Vladimir Feijó, professor de Direito e Relações Internacionais da Faculdade Arnaldo Janssen, de Belo Horizonte.

A ultradireita não fez maioria na nova configuração que rege a União Européia. Mas cresceu, assustou, ganhou cadeiras, espaço político, robustez e voz ainda mais estridente ao lado dos vizinhos de direita.

O grupo majoritário no novo parlamento ainda é o de conservadores inclinados para o mesmo lado (leia quadro sobre a nova composição).

A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, a mais tradicional extremista do continente, a francesa Marine Le Pen, do Reagrupamento Nacional (RN), e o líder com idéias nazistas Maximilian Krah são os rostos conhecidos e as mentes mais influentes da onda radical.

Exagerado

Para se ter dimensão do direitismo casca grossa de Krah, por exemplo, é oportuno lembrar que, na segunda (10), logo após ser eleito, ele foi expulso da delegação de seu partido, o Alternativa para a Alemanha (AfD), por várias declarações polêmicas, entre elas a de que os membros das tropas nazistas da SS “não eram necessariamente criminosos”. Tomará posse, mas não representará a legenda.

Mesmo assumidamente de extrema-direita, AfD afastou Krah pelos seus exageros, na tentativa de pavimentar o caminho de retorno ao bloco Identidade e Democracia (ID), de Marine Le Pen.

Na defesa da retirada, a francesa havia classificado o partido de “demasiado extremista”. Krah, a AfD e outros radicais estão abrigados em um pacote com cem deputados não-alinhados, 38 a mais do que o da formação anterior.

“O projeto tecnocrata e o de integração foram derrotados. O maior ganho foi o de um terceiro bloco: o dos não-alinhados”, destaca Feijó. “Em comum, defendem nacionalismo e combate feroz ao islamismo e à imigração.” O grupo ID, apoiado por Marine, conquistou 59 assentos, nove a mais do que antes.

Enquanto o direitismo extremo engrossou fileiras, os social-democratas e verdes, posicionados do centro para a esquerda, viram 41 posições de suas bancadas derreterem. “A extrema-direita era isolada no parlamento europeu. Agora mudou: a necessidade de diálogo com esses deputados tornou-se obrigatória. Neutralizar por isolamento não é mais opção”, explica a professora de Relações Internacionais Carolina Pavese, coordenadora do Núcleo de Estudos e Negócios Europeus da ESPM-SP.

O significado do avanço da extrema-direita europeia vai além de questões filosóficas e existenciais.
Ela não se preocupa em ofender a democracia de onde se instala. Para seus representantes, as questões primordiais são financeiras e nacionalistas.
No ambiente hostil formado no Velho Continente por inflação, recessão, desemprego, crise de segurança, envelhecimento da população e problemas previdenciários, as soluções prometidas por esses radicais, muitas vezes disfarçados de tradicionalistas, se tornaram mais iluminadas aos olhos de parte significativa dos europeus.

Dirigentes e simpatizantes do Alternativa para a Alemanha festejam crescimento no parlamento (Crédito: Jorg Carstensen/Dpa/Dpa Picture-alliance Via AFP)

No contexto de dificuldades, a centro-esquerda social-democrata alemã, do presidente Frank-Walter Steinmeier e do chanceler Olaf Scholz, sofreu dura derrota, a maior desde a Segunda Guerra, ao arrebanhar apenas 14% dos votos.

Com eles, afundaram também verdes e liberais. A maioria conservadora do país, da centro-direita ao extremo, firmou-se como principal representante no parlamento continental e ganhou musculatura para a eleição nacional de 2025. Agora, Scholz se vê pressionado pela AfD a antecipar as eleições.

O Partido Popular Europeu (PPE), da alemã de origem belga Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, poderosa unidade executiva da Europa Unida, também se fortaleceu com novos assentos. Centrista em um partido de centro-direita, Ursula tentará atrair novamente o apoio da direita e de governos nacionais do continente para conquistar novo mandato de cinco anos.

Nas eleições internas de Estrasburgo, no mesmo final de semana, o primeiro-ministro Alexander De Croo, do liberal Open VLD, deixou o cargo diante da derrota para a Nova Aliança Flamenga, de viés conservador-nacionalista, que ficou à frente também da extrema-direita anti-imigração e antiseparatista do Vlaams Belang.

Fidias Panayiotou, influenciador digital com 2,6 milhões de seguidores no Youtube, chegou ao parlamento pelo Chipre, admitindo que não tem ideia nem de política nem de União Europeia. Detalhe: aos 24 anos, jamais tinha votado para qualquer coisa na vida. No Japão, é execrado por ter feito um vídeo onde ensina a viajar pelo país escapando de pagar contas.

Apoio da extremista Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, é disputado por centristas e direita (Crédito:Tiziana Fabi)

Mas o maior e mais sofrido revés envolveu Macron.
Seu partido, o Renaissance, moderado com incursões à direita, sofreu derrota acachapante para o RN de Marine Le Pen, que levou a maioria das 81 cadeiras francesas.
Ainda na noite da votação, ele dissolveu a Assembleia Nacional e antecipou por dois anos as eleições legislativas no país.
Os dois turnos foram remarcados para 30 de junho e 7 de julho.

Manifestações a favor e contra o resultado, esta em menor número, pipocaram pela Europa.
Na Praça Camões, em Lisboa, integrantes do grupo 1143, do neonazista Mario Machado, comemoraram aos berros contra a “islamização da Europa”.
Em Berlim, na Alemanha, líderes da AfD fizeram outra festa.
O encontro de apoio mais barulhento foi liderado, em Paris, por Jordan Bardella, jovem vice-líder do RN de Marine e cria maior da decana. Aos 28 anos, 12 deles como militante, Bardella coloca de lado a origem italiana quando chamado a dar verniz às propostas islamofóbicas, racistas, nacionalistas e negacionistas de seus colegas.
O grupo surfou na insatisfação popular com Macron, especialmente em economia, segurança e regras agrícolas, questão forte em toda a Europa, que trouxeram derrotas históricas aos Verdes.

“Ascensão dos extremistas prova que o projeto supranacional não agrada mais o eleitor europeu.”
Vladimir Feijó, especialista em Relações Internacionais

Com idéias nazistas, Krah foi retirado de comissão até por seu partido extremista (Crédito:Britta Pedersen)

Centro-esquerda derrotada

O sistema francês inclui eleição presidencial direta para cinco anos de mandato, com direito à reeleição, e um primeiro-ministro escolhido pelo partido que conquista o maior número de cadeiras nas eleições para a Assembleia Nacional.

O segundo mandato de Macron terminará em maio de 2027.
A aposta de dissolver o legislativo foi alta.
Ele tem maioria na legislatura atual.
Se não a mantiver na próxima, verá um novo primeiro-ministro no lugar de seu correligionário Gabriel Attal, 35 anos, no cargo desde janeiro último.
Se o RN de Marine conquistar a maioria, é quase certo que Le Pen ungirá o pupilo Bardella para a função.

A Itália reproduziu com requinte os roteiros de França e Alemanha.
Dona de 76 assentos no parlamento, o país tem na primeira-ministra, a extremista Giorgia Meloni, do partido Irmãos da Itália, outra “princesa” disputada por centro-direitistas e direita em busca de alianças, apesar das raízes fascistas.
Enquanto acena para o centro, Giorgia tenta cativar Ursula, em campanha de reeleição, e Le Pen, na consolidação do bloco radical, apesar das discordâncias em questões como apoio e venda de armas para a Ucrânia na guerra contra a Rússia. A italiana é a favor. A francesa, nem tanto.

GOLEADA CONSERVADORA
Países com governos à direita: 19

Alemanha (centro-direita)
Áustria (direita)
Bélgica (direita)
Bulgária (direita)
República Tcheca (centro-direita)
Chipre (direita)
Croácia (centro-direita)
Eslováquia (centro-direita)
Eslovênia (direita)
Espanha (centro-direita)
Estônia (centro-direita)
Finlândia (centro-direita)
França (direita)
Grécia (centro-direita)
Hugria Fidesz (direita)
Itália (direita)
Letônia (centro-direita)
Lituânia (centro-direita)
Luxemburgo (centro-direita)

Países com governos à esquerda: 8

Dinamarca (esquerda)
Irlanda (centro-esquerda)
Malta (centro-esquerda)
Holanda (centro-esquerda)
Polônia (centro-esquerda)
Portugal (centro-esquerda)
Romênia (centro-esquerda)
Suécia (centro-esquerda)

Marine Le Pen quer surfar onda e emplacar o pupilo Bardella como primeiro-ministro (Crédito:Divulgação )

Diante da força adquirida pela dupla feminina, as pautas sensíveis aos socialistas foram colocadas em segundo plano.
Temas como proteção ambiental e acordos comerciais deixaram de ter prioridade diante da realidade cruel, no ambiente europeu atual, de que não trazem efeitos positivos rápidos como as promessas protecionistas e nacionalistas.
Até o principal grupo de centro-direita em Bruxelas, o Partido Popular Europeu (PPE), que encabeçou uma das políticas climáticas mais ambiciosas do mundo, o Green Deal, abandonou a pauta.
Cedeu à pressão dos agricultores e deixou a batata quente nas mãos dos Verdes, que, por sinal, tiveram a pior derrota entre os grupos no parlamento.

Para o Brasil, significa prejuízo.

Enfraquece, sobretudo nas exportações agropecuárias, o acordo comercial entre o Mercosul e a União Européia, fechado em 2022, que levou 20 anos para ser costurado.
Estão sob risco também promoção ao desenvolvimento sustentável, políticas comerciais, ambientais, trabalhistas e de atração de investimentos entre países dos dois continentes.
E o cumprimento do Acordo de Paris, regido pela convenção de Mudanças Climáticas da ONU.

Manifestantes contrários ao extremismo também foram às ruas em Paris e outros pontos da Europa (Crédito:Victoria Valdivia)

Embora com várias ideias comuns, entre elas a aversão à globalização, o radicalismo à direita solidificado em solo europeu tem origens e processos evolutivos distintos dos registrados no continente americano nos últimos anos.

O extremismo de Donald Trump nos Estados Unidos, de Bolsonaro no Brasil, do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, e de José Antonio Kast, que teve 44% dos votos na última corrida presidencial no Chile, perdendo por pouco para Gabriel Boric, é recente. Desenvolveu-se de maneira fulminante, em poucos anos, à base de messianismo e forte exploração de conceitos distorcidos, e mesmo falsos, aproveitando a insegurança de desinformados e religiosos.

Na Europa, o processo é mais antigo e gradual. Avança quando os fantasmas do continente — movimentos nazistas, fascistas e xenófobos — voltam a assombrar diante de desempenhos ruins de governos progressistas nas questões econômicas e sociais. Por isso, é mais perigoso em termos globais. O desafio, a partir de agora, é descobrir até que ponto, e de que forma, ele contaminará o mundo.

Macron (à esq.) antecipou eleições. A social-democracia de Steinmeier, presidente alemão, derreteu (Crédito:Divulgação )