Cultura

Projeto Nitratos preserva tesouros do cinema brasileiro

Projeto Viva Cinemateca recupera e digitaliza mais de 1.700 produções filmadas em nitrato de celulose. Rodados no início do século 20, são os primeiros registros da indústria audiovisual no País

Crédito: Caio Brito

Cena de "Cerimônias e Festa da Igreja em Santa Maria: Sagração e inauguração da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 5 de dezembro de 1909". Filme mostra a saída do povo da Igreja, a procissão e a quermesse. Exibe ainda a estação de trem, a plataforma de embarque, com os passageiros, e a locomotiva partindo (Crédito: Caio Brito)

Por Felipe Machado

Para quem gosta de cinema, a Cinemateca Brasileira é um templo. É lá que está o maior acervo de filmes da América Latina, com milhares de produções nacionais e estrangeiras. Apesar de extremamente valioso, do ponto de vista histórico, fazer a manutenção desse tesouro nunca foi uma tarefa simples. Entre seus colaboradores, sempre houve um estado de constante atenção. Afinal, desde a sua fundação, quando ainda era apenas a filmoteca do Museu de Arte Moderna, em 1949, a instituição já sofreu cinco incêndios. Quatro deles, ocorridos nos anos de 1957, 1969, 1982 e 2016, foram provocados por um perigoso elemento presente nas películas mais antigas: o nitrato de celulose.

O material é uma espécie de filme flexível e transparente. Foi o principal suporte do período mais antigo do cinema, usado principalmente em produções realizadas até a década de 1950. É muito frágil e deve ser preservado com cuidado. Do contrário, pode entrar em autocombustão, ou seja: pega fogo sozinho, uma chama rápida que só se apaga depois de consumir a película inteira.

Esse perigo obriga os técnicos da Cinemateca a guardarem os filmes feitos com esse componente em locais diferentes — muitas vezes, em salas e prédios isolados. No incêndio mais recente, em 2016, as chamas queimaram cerca de mil filmes do acervo, conteúdo que nunca mais será visto.

Agora, pela primeira vez, a Cinemateca conseguiu incluir em seu orçamento uma maneira de conservar, digitalizar e catalogar esse acervo. O Projeto Nitratos promoveu a conservação, catalogação e digitalização das obras mais antigas do cinema brasileiro, produzidas nas cinco primeiras décadas do século 20. Foram resgatados exatamente 1.785 filmes ­– 1.428 nacionais e 357 estrangeiros –, entre produções de ficção, documentários, publicidade, animações e cinejornais que ajudam a contar a história do Brasil por meio de imagens.

Foi um longo e árduo processo. Ao todo, o trabalho de pesquisa, catalogação e digitalização das produções feitas em nitrato durou cerca de dois anos e foi realizado por mais de 30 especialistas e técnicos de documentação. Todo o acervo recuperado estará disponível gratuitamente ao público a partir de agosto de 2024, por meio do Banco de Conteúdos Culturais (BCC) e no site da Cinemateca.

Desvio (1953): romance traz casal de classes sociais diferentes (Crédito:Caio Brito)
Coisas Nossas (1931): inspiração nos musicais de Hollywood (Crédito:Caio Brito)
Amazônia e Rio de Janeiro (1926): imagens do Norte e da capital (Crédito:Caio Brito)
Apuros de Genésio (1940): exibição no Festival de Pordenone, na Itália (Crédito:Caio Brito)
Jangada (1947): ficção sobre as greves contra a escravidão (Crédito:Caio Brito)

Preservação da memória

A coleção traz raridades como Cerimônias e Festa da Igreja em Santa Maria, documentário mais antigo do acervo e um dos primeiros filmes rodados no Brasil, em 1909.

Outra pérola é Barulho na Universidade, de 1943, obra de Watson Macedo que era dada como perdida.

Graças à restauração, Apuros de Genésio, de 1940, será exibido no Festival de Filmes Silenciosos de Pordenone, na Itália, em outubro.

Há ainda Amazônia e Rio de Janeiro — Exposição de 1922, compilação de imagens feitas por Silvino Santos entre 1919 e 1926 na região Norte do País e na então capital federal. Importante para a compreensão dos primórdios do cinema brasileiro, a obra de Silvino Santos ganhou destaque recentemente com a redescoberta do seu primeiro longa: Amazonas, o Maior Rio do Mundo, de 1918.

Laboratórios da Cinemateca Brasileira: dois anos de pesquisa e trinta técnicos especializados em preservação e documentação (Crédito:Daniela Matias)

Para a diretora-geral Dora Mourão, a recuperação da coleção é um dos grandes resultados desde a reabertura do local, em 2022. “A iniciativa faz parte do projeto Viva Cinemateca, que terá como próximo passo a restauração do conteúdo criado para o Canal 100, que compramos há muitos anos e, por conta das crises, ainda não havíamos sequer iniciado”, afirma ela. “Saber como era o passado é muito importante. A preservação da memória é fundamental para a sociedade.”