Comportamento

Estudo global desvenda aterradora pandemia de abuso infantil

Levantamento revela números alarmantes de atividades criminosas sexuais contra crianças e adolescentes na web; uma em cada oito foi vítima de exploração não consensual nos últimos 12 meses pelo mundo

Crédito: Leon Neal

Número de casos cresceu junto com a crise da Covid, quando jovens passaram a ficar mais horas on-line (Crédito: Leon Neal)

Por Luiz Cesar Pimentel

Após os três anos e dois meses que vivemos sob a ameaça da Covid-19, o termo pandemia deve ser usado com muito cuidado. Mas as estatísticas sobre abuso sexual de crianças e adolescentes, levantadas por pesquisadores escoceses em escala global pela primeira vez, tornam justa a utilização da expressão no caso ­— 302 milhões de jovens, um em cada oito no mundo, já sofreram de captura não consensual, exposição e compartilhamento de imagens e vídeos sexuais (manipulados ou não por Inteligência Artificial) nos 12 meses anteriores ao levantamento.

Os números foram apurados durante o primeiro ano de existência da Childlight Global Child Safety Institute (Instituto Global de Segurança Infantil Childlight), da Universidade de Edimburgo, que foi criado para colher e divulgar dados para chamar a atenção sobre a extensão da exploração e do abuso sexual infantil.

Outros dois levantamentos aterradores aparecem em destaque (negativo) na pesquisa. Praticamente o mesmo número de crianças e adolescentes teriam sido envolvidos em conversas sexuais indesejadas, como mensagens desse cunho de adultos de forma não consensual, perguntas com esse caráter e solicitações de atos inapropriados. E um em cada nove homens nos EUA (11%) admitiu ter cometido crimes de natureza sexual on-line contra jovens, além de 7% dos adultos do Reino Unido e 7,5% dos australianos ­— os três países onde o índice foi computado.

No caso dos contatos inapropriados, um dos métodos utilizados é a sextorsão (corruptela de extorsão), quando o abusador exige dinheiro da vítima para manter sigilo sobre imagens, muitas vezes distorcidas e manipuladas com IA.

“Esta é uma pandemia de saúde global que permaneceu oculta por muito tempo. Ela ocorre em todos os países, está crescendo exponencialmente e exige uma resposta global. Precisamos agir com urgência e tratá-la como um problema de saúde pública que pode ser evitado. As crianças não podem esperar”, disse o diretor executivo da Childlight, Paul Stanfield, quando da divulgação do relatório.

302 milhões de jovens já sofreram de captura não consensual, exposição e compartilhamento de imagens e vídeos sexuais 

As estimativas do órgão compilaram 125 estudos representativos publicados entre 2011 e 2023, no período de um ano anterior às pesquisas nacionais, e dezenas de milhões de denúncias feitas às principais organizações globais de vigilância e policiamento, entre elas o banco internacional de dados Child Sexual Exploitation, da Organização Internacional de Polícia Criminal, a Interpol.

“Precisamos fazer muito mais juntos em nível global, incluindo treinamento de investigadores especializados, melhor compartilhamento de dados e equipamentos, para combater efetivamente essa pandemia e os danos que ela inflige a milhões de jovens em todo o mundo”, disse Stephen Kavanagh, diretor executivo da Interpol.

Explosão de casos

A curva ascendente de casos cresceu exponencialmente a partir justamente da pandemia.
As crianças e adolescentes passaram a ficar muito mais tempo on-line, dependentes da internet para ensino, principalmente, mas também para socialização e diversão, o que atraiu para o ambiente os predadores.
No Reino Unido, por exemplo, a Internet Watch Foundation (IWF) relatou durante o ano de 2023 – que teve o agravante da proliferação da tecnologia deepfake de IA – aumento de 1000% no acesso a material de abuso sexual infantil para crianças do ensino fundamental, com idades entre sete e dez anos.
A sextorsão atingiu 3% das crianças vítimas, que foram chantageadas por imagens que os abusadores as induziram a compartilhar ou que foram manipuladas por IA, em grande parte das vezes com resultados trágicos e uma série de suicídios.

“Por incrível que pareça o caminho mais utilizado por abusadores é o do consentimento. Os criminosos buscam na facilidade o seu primeiro caminho e simplesmente ‘pedem autorização’ através de contatos iniciais amigáveis, simpáticos, e assim vão ganhando a confiança do interlocutor”, diz o especialista em Tecnologia da Informação e Segurança Alexandre Pinto. “Isso pode ocorrer com promessas de benefícios em troca de algumas coisas até que em determinado momento a vítima já está nas mãos do criminoso.”

(Divulgação)

“Quanto mais nova a criança for, mais facilmente poderá ser enganada e seduzida.”
Alexandre Pinto, especialista em TI e Segurança

Apenas as principais empresas de redes sociais — Facebook, Instagram, X, Whatsapp, TikTok e Google — ultrapassaram juntas 36 milhões de denúncias de exploração de imagens sexuais de menores em suas plataformas no ano passado, o que equivale a uma denúncia a cada segundo. Fato é que não existe “bala de prata” que erradique a prática criminosa, mas providências preventivas podem e devem ser tomadas para proteger ao máximo principalmente as crianças, que são mais vulneráveis.

“Uso analogia com o mundo real. Não vou deixar meu filho entrar ou frequentar lugar que eu não conheça. Uso a mesma regra no acesso à internet, com muito cuidado em ambientes de jogos onde a criança pode interagir e que são mais colaborativos”, diz o empresário no ramo de tecnologia Mario Cereda, pai de Júlio, de 6 anos. “Uso também ferramentas que associam a conta de internet dele à minha, como o Family Link, do Google. Isso evita que ele acesse novos ambientes ou instale qualquer coisa sem que eu autorize”, completa.

A prevenção caseira ainda é fundamental, pois a própria Interpol admite que a maioria dos países membros de sua rede de segurança não possui recursos nem treinamento adequado para responder às denúncias de abuso sexual infantil compartilhadas pelas organizações. A organização policial possui em seu banco de dados mais de 5 milhões de fotos e vídeos suspeitos, que compartilham com cerca de 70 países para atuarem em colaboração.

Entretanto, poucos possuem recursos como softwares avançados de comparação de imagens que vasculham a web atrás de conexões entre locais de ocorrências, agressores e vítimas.

O empresário de tecnologia Mario Cereda empresta os mesmos cuidados do cotidiano para proteger o filho Júlio, de 6 anos (Crédito:Mastrangelo Reino)

Caminhos

Uma das possíveis ferramentas de incremento de segurança é de difícil conciliação com o principal recurso de proteção de privacidade das redes, que é a criptografia de ponta a ponta, quando somente o remetente e o destinatário acessam o conteúdo das mensagens.

Está em estudo a implementação de uma janela de acesso restrita a profissionais de proteção à criança, mas há o paradoxo de que quanto mais se oferece de privacidade às pessoas, mais aumenta o espaço de utilização da rede para fins criminosos.

“O que muita gente não pensa é que o dispositivo é um mundo inteiro nas mãos da criança.”
Mario Cereda, empresário

Soluções caminham muitas vezes baseadas em estatísticas amplas, como por exemplo a preferência pelo Instagram entre ambientes de possível aliciamento.

A Meta, proprietária da rede e do Facebook e WhatsApp, lançou programa de incremento à proteção, com propaganda política de “tolerância zero” para qualquer suspeita, colaboração com agentes internacionais e utilização de recursos tecnológicos avançados e IA preventivos.

Mas, ao mesmo tempo, o X (ex-Twitter) atualizou suas regras nesta semana permitindo formalmente que usuários publiquem conteúdos pornográficos adultos na plataforma. Exige apenas que os conteúdos sejam produzidos consensualmente e que recebam rótulo de proibição para menores de 18 anos.

“Como profissional da área, recomendo o investimento abundante em segurança da informação. Fazemos seguros para saúde, para casa, carro, então, por que não em segurança para os filhos?”, diz Alexandre Pinto. “Após a conscientização e educação efetuada pelos pais, é necessário o investimento em equipamentos que nos possibilitem controle dos acessos realizados, manutenção dos sistemas de celulares, tablets e computadores atualizados e implementação de sistemas antifraudes”, sugere.