Hamlet, Sófocles e Lula

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Antonio Carlos Prado: "No Brasil, muitas coisas navegam contra a correnteza da história, e a isso se assiste nesse momento" (Crédito: Divulgação)

Por Antonio Carlos Prado

O moço príncipe Hamlet, pela pena de William Shakespeare, diz ao seu nobre amigo Horácio que há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã filosofia. A pergunta que eu faço é mais simples no sentido existencial, mas o mistério que paira no ar torna esse mesmo ar intensamente rarefeito — similar, bem similar, ao respirado em Hamlet: qual mistério faz com que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que não abertamente contrário, seja omisso em relação ao renascimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos?

Criada nos tempos de Planalto do sociólogo e escritor Fernando Henrique Cardoso, ela atuou sem descansar, um único dia, até que desembarcou no palácio o capitão Jair Bolsonaro. Cumpriu-se o duro fado, ele a desmantelou. A Comissão investigava vítimas de torturas na ditadura militar, regime político que deixou obnubilado o Brasil entre 1964 e 1985.

Assim como as mitológicas personagens das tragédias gregas, ainda há no País inúmeras mulheres que são Antígonas a se desesperarem e enfrentarem todas as vicissitudes da vida para darem sepulturas dignas a maridos, irmãos, irmãs, filhas e filhos. A ditadura, em determinada fase, torturava, matava, e desaparecia com corpos — um exemplo clássico desse roteiro sem Sófocles é o desaparecimento do corpo do engenheiro civil e deputado federal Rubens Paiva. No Brasil, muitas coisas navegam contra a correnteza da história, e a isso se assiste nesse momento. O ministro dos Direitos Humanos, Sílvio de Almeida, tem a Comissão como uma prioridade de governo.

Lula, que deveria estar mobilizado para recolocá-la de pé, faz pouco, bem pouco. Alguns militares, que  com certeza não têm nada a temer em referência aos anos de chumbo, querem-na funcionando. Um argumento, o mesmo usado por aqueles que aconselhavam Antígona a ir para casa e deixar de procurar o corpo do irmão, diz que Lula não quer criar desgastes e atritos com a caserna. Como dizia Hamlet: palavras, palavras, palavras. Há oficiais nas Forças Armadas que concordam plenamente com o retorno da Comissão de Mortos e Desaparecidos e com o prosseguimento das investigações.

Se os torturadores, muito deles civis, fizeram o que fizeram na época, vale a pena, aqui, recordarmos um caso. Uma jovem estudante morreu em São, nas dependências do órgão repressivo Codi-DOI, com uma circunferência de ferro colocada em sua cabeça. Cada vez que os algozes giravam a chave dessa circunferência, ela se tornava mais apertada. Tão apertada que esmigalhou o crânio da jovem. Ela, a jovem, se chamava Aurora. Aurora que indubitavelmente raiou no Brasil com a volta de Lula. Então, Lula, por que não anunciar publicamente que a Comissão será recriada?