Cultura

Graciliano Ramos transformou a ética na política em literatura; confira

Antes de se tornar um dos maiores autores do País, Graciliano Ramos foi gestor municipal em Palmeira dos Índios, Alagoas. Seus relatórios de alta qualidade ficaram famosos na época e lhe renderam um convite para estrear na literatura

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Graciliano Ramos: renúncia após críticas dos poderosos da região (Crédito: Divulgação )

Por Felipe Machado

A lista de escritores brasileiros que se aventuraram pela política não é extensa, mas elenca representantes de peso. José de Alencar, autor de Cinco Minutos e O Guarani, elegeu-se deputado ao longo de diversas legislaturas e chegou a ocupar o cargo de Ministro da Justiça nos tempos do Império. Jorge Amado, também eleito muitas vezes deputado federal, ocupou importantes comissões relacionadas à educação e teve papel essencial na Constituinte de 1946. Mais recentemente, o alagoano José Sarney, que chegou à Presidência da República, lançou-se poeta antes de disputar sua primeira eleição. Raro mesmo é o caso de Graciliano Ramos, que foi eleito antes de entrar para a literatura, mas sua carreira artística só teve início graças ao seu trabalho como prefeito de Palmeira dos Índios, pequeno município situado no agreste alagoano.

Não foi, no entanto, a vocação administrativa que abriu as portas para que Graciliano mostrasse o seu talento literário. Ele deve o começo de sua carreira a elementos bem mais prosaicos: seus relatórios. Escritos com bom humor, ironia e uma verve mordaz que antecipava seu estilo marcante, esses textos são publicados pela primeira vez sob o título de O Prefeito Escritor — Dois Retratos de uma Administração (Record).


Informações oficiais: contas e comentários irônicos sobre a situação da Prefeitura (Crédito:Divulgação )

De janeiro de 1928, quando tomou posse do cargo, até abril de 1930, Graciliano esteve à frente da humilde administração municipal. Combateu o desperdício de verbas, a ineficiência da máquina e o patrimonialismo de seus colegas. Lutou para extinguir superfaturamentos, criticou obras deixadas por seus antecessores e tentou zelar pela qualidade de vida de seus habitantes.

Nos dois relatórios anuais que fez ao governador do Estado, o de 1929 e o de 1930, Graciliano se revela um homem público exemplar. É um testemunho das qualidades que todo político deveria ter:
a seriedade com as responsabilidades do cargo,
o caráter íntegro,
a vontade de combater os maus hábitos que dominam a política.

O Prefeito Escritor é uma obra imprescindível para aqueles que desejam conhecer essa outra face do autor, bastante curiosa, mas também para aqueles que desejam constatar, por meio de prova oficial, que as mazelas do Brasil vêm de longe.

“Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram impossíveis. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta.”

O prefácio do livro é assinado por outro político: Luiz Inácio Lula da Silva. O texto do presidente parece descrever um cenário atual, não algo que aconteceu há quase um século. “Mesmo indignado com a ineficiência da máquina pública, o calote dos mais ricos, o arrocho sobre os mais pobres, os contratos assinados às escuras, a má utilização dos impostos pagos pelo contribuinte e o orçamento sempre apertado, Graciliano não abria mão do bom humor”, escreve.

Palmeira dos Índios: “Paz e prosperidade” era o slogan adotado pelo então prefeito (Crédito:Divulgação )

Graciliano não era nascido em Palmeira dos Índios, mas na vizinha Quadrangulo. O leitor há de perguntar por que o livro traz apenas dois relatórios anuais, uma vez que o mandato de prefeito já tinha duração de quatro anos, como é hoje.

É que o prefeito renunciou ao final do segundo ano. A decisão foi tomada graças às reações que sua firme ética provocou entre os poderosos da cidade, mas também por problemas financeiros particulares, gerados pela crise da Bolsa em 1929.

No ano seguinte, após ter se mudado com a família para Maceió, foi nomeado diretor da Imprensa Oficial de Alagoas. Três anos depois, em 1933, tornou-se diretor da Instrução Pública do Estado, o equivalente à Secretaria de Educação.

“A cidade foi enganada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento
de luz. Apesar de o negócio ser referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. Pagamos até a luz que a lua nos dá”

Os relatórios que produziu na Prefeitura tornaram-se populares pelo estilo original e oposto aos textos sisudos publicados pelos outros políticos da época. Um dos exemplares foi parar no Rio de Janeiro e caiu nas mãos do poeta e editor Augusto Schmidt. Encantado pelo estilo de Graciliano, convidou-o a publicar o primeiro livro pela editora que levava seu sobrenome.

A arte imitou a vida: Caetés se passa em Palmeira dos Índios e o protagonista é um escritor dividido entre o poder político e o mundo financeiro. Nos anos seguintes, Graciliano publicou S. Bernardo, Angústia e Vidas Secas — o Brasil pode ter perdido um bom político, mas a nossa literatura ganhou um gênio.