Editorial

Chuva de fraternidade

Crédito: Maxi Franzoi

Antonio Carlos Prado: "Diante da dor do Rio Grande do Sul, todos tornamo-nos gaúchos" (Crédito: Maxi Franzoi)

Por Antonio Carlos Prado

Ao pensador católico e escritor Otto Lara Resende atribui-se a seguinte frase: “Mineiro só é solidário no câncer”. Nascido em Minas Gerais, ele atravessou a vida negando ter dito isso, mas não adiantou. A coisa foi ganhando corpo e ideólogos da esquerda e da direita trocaram o “mineiro” por “brasileiro só é solidário no câncer”. Era uma forma de depreciar o País. Na verdade, o “eiro” em questão é o que menos importa. Conta, isso sim, o fato de o ditado estar longe da realidade. Prova definitiva é a corrente de solidariedade que se formou, e segue a se fortalecer cada vez mais, referente à tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul. Estão atuando com o máximo de empenho as instituições oficiais e as Três Armas, mas sobre elas pode-se argumentar que estão a exercer o dever que lhes é determinado pela Constituição. É obrigatório falar e elogiar, entretanto, o árduo e diuturno trabalho voluntário da sociedade civil. É tão abrangente a mobilização do ponto de vista racional, e tão comovente sob a perspectiva dos sentimentos, que até demais nações da América Latina e da União pediam adesão. Diante da dor do Rio Grande do Sul, todos tornamo-nos gaúchos. Essa solidariedade, hora de indagar, de onde vem? Recuemos no tempo. Vamos ao encontro do filósofo francês Auguste Comte. Almejava ele saber as causas da ajuda recíproca entre as pessoas e assim criou, em 1831, a expressão altruísmo, que se opõem ao egoísmo. Altruísmo, que é ao que se assiste no Sul do Brasil, são disposições inatas, intrínsecas a indivíduos, de natureza instintiva e que alimentam a empatia – o calçar as sandálias do sofredor e caminhar com elas algumas léguas. Pode ser lapidado pela educação. O surpreendente, e essa já não é nenhuma descoberta do positivista Comte, mas sim da psicologia, digamos, moderna, é o fato de que altruísmo e egoísmo não são duas paralelas que jamais se encontram no espaço. Encontram-se mesmo: o voluntariado, ou seja, o altruísmo, somente existe porque ao voluntário, ao seu próprio ego, faz bem ajudar o outro. Em primeiro lugar, o que está em jogo é aquilo que emocionalmente faz bem a quem pratica esse bem – e se, igualmente, fizer bem ao outro, é óbvio que tanto melhor. Como se vê, ao olharmos os milhares de corações partidos pelas águas e alagamentos, pela morte e destruição, pelo desespero e desesperança, pela perda de tudo, no Rio Grande do Sul, podemos afirmar peremptoriamente que o altruísmo, pouco importa se soprado ou não pelo culto ao seu antagonista ego, é marca distintiva do brasileiro. Cá estivesse o cético Velho do Restelo, até ele diria: o brasileiro é bom! O brasileiro é solidário. O povo brasileiro dá-se as mãos e forma uma espécie de esteira rolante de braços movidos pela engrenagem psíquica da emoção, tal a rapidez e continuidade com que alimentos, água, produtos, medicamentos, agasalhos, colchões, e carinho passam de um ao outro ate chegar ao destinatário final – o necessitado; o desesperado! Sobre o tema do altruísmo debruçou-se também outro francês, o sociólogo Émile Durkheim. Interessou-lhe especialmente a análise da sociedade industrial. Durkheim dedicou-se a esmiuçar aquilo que chamou de consciência coletiva e consciência individual. A primeira é que mantém a sociedade unida, tanto que sem tal união cai-se na situação que ele formulou como “anomia social”. Quanto à consciência individual, dependente ela da genética, da educação e ambiente a modulá-la, depende de fatores que hoje a psicologia, sociologia e psiquiatria chamam elementos biopsicossociais. Diversos intelectuais inquietaram-se, cada um em seu tempo de vida, com o fenômeno psicológico da solidariedade, assim como as religiões para quais ela não se constitui um dogma, mas é condição imprescindível para que se chegue ao cálice da ética. No ensinamento do teólogo amador, ensaísta e dramaturgo britânico Gilbert Chesterton, “louco é quem perde tudo e não perde a razão”. Uma infinidade de gaúchos, que tudo que possuíam as águas barrentas carregaram, nem perderam a razão nem enlouqueceram. Eles devem isso aos voluntários nutridos do mais nobre sentimento humano — o sentimento de altruísmo.