Cultura

Namoro de sobrevivente com filha de capo nazista daria um filme. E vai dar

A incrível história do homem que salvou-se na Segunda Guerra vindo para o Brasil. Aqui namorou uma garota alemã e ficou próximo de sua família, até descobrir que o pai dela era um oficial nazista

Crédito:  Arquivo pessoal; divulgação

Gabriel Waldman: namoro da adolescência nunca foi esquecido (Crédito: Arquivo pessoal; divulgação)

Por Felipe Machado

É costume dizer que algumas histórias de vida são tão extraordinárias que dariam filmes de sucesso em Hollywood. Pois é exatamente o caso de Gabriel Waldman, de 86 anos. Protagonista de uma desilusão amorosa que o persegue há décadas, esse húngaro de alma brasileira buscou inspiração na máxima de Isak Dinesen (pseudônimo de Karen Blixen), utilizada pela filósofa Hannah Arendt na epígrafe do livro A Condição Humana: “Toda grande dor pode ser suportada se você escrever sobre ela”. O resultado é Ingrid, a filha do Comandante, biografia literária que conta o relacionamento que marcou a juventude de Waldman — e nunca o abandonou.

A história começa bem antes, em 1944. Quando as tropas alemãs invadiram a Hungria, Waldman era apenas uma criança. Ele e sua mãe conseguiram sobreviver às atrocidades nazistas, mas os outros membros de sua família não tiveram a mesma sorte: morreram todos em campos de concentração.

Após fugirem para a Áustria, conseguiram vir ao Brasil. Aos quinze anos, ainda sem falar bem o português, conheceu uma garota de traços bonitos com a qual podia se comunicar. Ingrid (o nome é fictício) era alemã, tinham a mesma idade. Os jovens tiveram um namoro intenso, que terminou após cerca de um ano.

Waldman foi estudar na Austrália, Ingrid casou-se e se separou. Aos 26 anos, voltaram a se encontrar na Volkswagen, onde ele foi contratado na área de marketing e ela trabalhava como secretária. O reencontro fez renascer o sentimento da adolescência: voltaram a namorar, desta vez com uma seriedade maior. Waldman visitava a casa da namorada, passava as tarde conversando com seu pai, que também trabalhava na Volskwagen e era muito educado.

Jantar em família: todos morreram em campos de concentração (Crédito: arquivo pessoal)

Após alguns meses, algo estranho aconteceu. Ingrid chamou Waldman para conversar e terminou repentinamente o namoro, sem explicar o motivo. O mais curioso foi que, enquanto ela dizia que não queria mais vê-lo, chorava copiosamente. Por que derramava lágrimas se queria encerrar o relacionamento? O que ele teria feito de tão sério a ponto de afastá-la? Waldman não entendeu o que havia acontecido. Estava tão incrédulo que, no dia seguinte, enviou um buquê de flores tentando demovê-la da ideia. Nunca obteve resposta.

A vida continua

O episódio não foi esquecido, mas a vida tinha de continuar. Waldman tornou-se administrador de empresas, casou-se e teve filhos. Tempos depois, a resposta para seus questionamentos surgiu por acaso em uma manchete de jornal: Franz Stangl, pai de Ingrid, havia sido preso. O homem com quem ele passava as tardes conversando era um ex-oficial nazista, comandante dos temíveis campos de concentração de Sobibor e Treblinka.

Ao ver a foto do rosto tão conhecido, Waldman ficou em choque. Ironicamente, ele havia sido denunciado pelo ex-marido de Ingrid. Tudo começava a fazer sentido.

Waldman chegou a contar o fato para familiares, mas nunca mais quis tocar no assunto. Passaram-se décadas. Em 2020, pouco antes da pandemia, foi ao escritório do ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, de quem é amigo desde os quinze anos, e deparou-se com o caso da extradição de Stangl em um livro.

Contou o caso e lembrou ao amigo que ele havia conhecido pessoalmente a filha do nazista em uma festa. Lafer ficou surpreso. E sugeriu: “Você tem que escrever sobre isso”. No dia seguinte, o ex-ministro, que teve aulas com Hannah Arendt na Universidade de Cornell, nos EUA, enviou-lhe por e-mail a frase tirada da epígrafe do livro da filósofa.

Waldman entendeu a mensagem: décadas depois de descobrir que namorara a filha de um nazista, decidiu colocar no papel suas memórias de sobrevivente, da guerra e do amor. Como era de se esperar, Gabriel Waldman já recebeu uma proposta de uma produtora brasileira para transformar sua história em filme. Ele aceitou.

ENTREVISTA
Gabriel Waldman, escritor

“Não se pode culpar os filhos pelos erros dos pais”

Toda grande dor pode ser suportada se você escrever sobre ela?
A frase do livro de Hannah Arendt foi o empurrão que eu precisava para escrever o livro. Eu havia enterrado esse triste incidente no fundo da consciência. A frase me levou a esquecer a dor que senti.

Como era o dia a dia na casa dela? Vocês conversavam sobre a Segunda Guerra?
Era uma atmosfera acolhedora, o pai era simpático. Falávamos sobre temas gerais, amenidades. Eu e ela íamos ao cinema e, naquela época, havia muitos filmes sobre a guerra, sempre com histórias contra os nazistas. Ela nunca se opôs, sempre aceitou a assisti-los.

(Divulgação)

O que o atraiu nela?
Ela era muito bonita e compartilhávamos a cultura europeia. Mas o mais importante é que nenhum dos dois sabia falar bem o português. Como eu falava alemão fluentemente, o idioma nos uniu.

Como foi o fim do relacionamento?
Ela me chamou e disse ‘vamos terminar’. Eu não entendi nada, porque ela chorava enquanto falava isso, me acariciava e me beijava. Ninguém dispensa um namorado inconveniente enquanto derrama lágrimas.

Depois desse dia, voltaram a se falar alguma vez? Gostaria de reencontrá-la atualmente?
Nunca mais nos falamos. Sei que ela é viva, um parente me procurou e eu disse que não tinha mágoa. Mas ele me disse que ela não quer falar do assunto, também ficou traumatizada. Não se pode culpar os filhos pelos erros dos pais.

Se fosse entregar um exemplar do livro a ela, o que escreveria na dedicatória?
Difícil pensar nisso. No dia seguinte ao término do namoro, enviei flores com o cartão dizendo “para minha primeira, última e eterna namorada”. Hoje eu trocaria o “namorada” por “amiga”. Não a culpo por nada.