Cultura

García Márquez e o livro que ‘não prestava’: best-seller imediato

Agosto nos Vemos', de Gabriel García Márquez, é o mais novo caso de obra póstuma resgatada que o autor não quis editar. Veja outros exemplos

Crédito: Yuri Cortez

Gabriel García Márquez: filhos cometeram “ato de traição” em nome dos leitores (Crédito: Yuri Cortez)

Por Felipe Machado

Rodrigo e Gonzalo García Barcha, filhos de Gabriel García Márquez, descreveram a criação de Em Agosto nos Vemos, livro inédito do autor colombiano, como um “derradeiro esforço para continuar criando contra ventos e marés”. Classificaram o processo de perda da memória do pai como “uma batalha entre o perfeccionismo do artista e o declínio de suas faculdades mentais”. No texto de introdução da obra, corajosamente admitem que a ordem paterna em relação ao manuscrito era definitiva: “Este livro não presta. Tem que ser destruído”.Mesmo assim, decidiram publicá-lo — best-seller imediato, saiu em quarenta países como um dos lançamentos mais aguardados do ano.

Críticos dirão que Rodrigo e Gonzalo contrariaram a vontade do autor, mas o caso não é tão simples. Em um belíssimo trabalho de reconstituição da obra, o editor Cristóbal Pera lembra que o próprio Gabo — apelido de Gabriel García Márquez — havia lido o texto durante um evento em 1999, na Casa da América, em Madri, onde participava junto com outro vencedor do Nobel, José Saramago.

O colombiano anunciara que aquele era um dos quatro contos que fariam parte de um futuro livro, todos eles sobre “histórias de amor de gente velha”. Gabo havia esquecido o projeto e estava quase aposentado quando, em 2002, sua secretária, Mónica Alonso, resgatou dois manuscritos de sua gaveta: Ela e Em Agosto nos Vemos. Gabo começou a revisá-los. O primeiro virou Memórias de Minhas Putas Tristes e saiu em 2005; o segundo voltou à gaveta, mas ganhou uma rubrica do autor na primeira folha com os dizeres: “Grande OK Final”.

Essa foi a prova, para Rodrigo e Gonzalo, de que o pai havia liberado a sua publicação. Concluíram: “Num ato de traição, decidimos colocar o prazer de seus leitores acima de todas as outras considerações”.

José Saramago: rejeição à Claraboia levou o autor português a ficar dezenove anos sem escrever (Crédito: Ulf Andersen )

Na mão dos herdeiros

Não é a primeira vez que um escritor tem esse tipo de desejo desrespeitado. Saramago viveu situação semelhante com um de seus primeiros trabalhos, Claraboia, escrito em 1953, quando ele tinha 30 anos. Enviado ao mesmo editor de Terra do Pecado, seu primeiro livro, publicado cinco anos antes, teve o original rejeitado.

O português ficou tão decepcionado que só voltou a escrever dezenove anos depois — e ainda trocou a prosa pela poesia. Com o sucesso de Levantado do Chão, em 1980, no entanto, houve uma corrida a seus antigos manuscritos.

Saramago, que considerava a obra prematura um trabalho menor, deixou a decisão póstuma para sua mulher, Pilar del Río. O romance chegou às livrarias em 2011, um ano após a morte do escritor.

A ordem mais radical para destruir seus próprios textos, porém, veio de Franz Kafka. Ao ficar doente, ele ordenara ao amigo Max Brod que queimasse todos os seus originais.

Brod, que também era escritor e foi nomeado pelo autor tcheco como executor de seu legado, soube reconhecer o valor do tesouro que tinha em mãos. Desobedeceu a ordem — e Kafka morreu sem saber que seria considerado um dos maiores escritores do século 20.

Como seu desejo era conhecido dos amigos mais próximos, no entanto, Brod enfrentou críticas por sua decisão. Justificou-se com uma desculpa convincente: “Franz sabia que eu não teria coragem de queimar seus escritos e, se estivesse realmente determinado a destruí-los, teria indicado outra pessoa para seguir suas instruções”.

Franz Kafka: se sua ordem fosse seguida, não haveria O Processo e O Castelo (Crédito:Divulgação )

Em 2011, uma obra póstuma de um ícone da geração beat foi descoberta. Jack Kerouac teve seu primeiro livro publicado 42 anos depois de sua morte. Considerado perdido, O Mar é Meu Irmão fora inspirado nos diários que ele manteve durante o período que passou como marinheiro a bordo do navio US Dorchester. Foram 158 páginas escritas a mão. A ideia de registrar o relato de viagem pode ter levado Kerouac a outra ideia: recriar a experiência em On the Road — Na Estrada, que o tornou conhecido em todo o mundo.