Brasil

Depois das críticas, governo dá meia-volta na “neoindustrializacão”

Fernando Haddad modifica a proposta de carro popular, incluindo o transporte coletivo e mirando o meio ambiente, mas o programa transitório traz pouco alívio e não resolve os problemas estruturais do setor

Crédito: Mateus Bonomi

Haddad: plano do ministro da Fazenda e de Alckmin segue orientação política do presidente Lula, diz analista (Crédito: Mateus Bonomi )

Por Marcos Strecker e Mirela Luiz

Menos de duas semanas após o presidente e o vice lançarem com pompa o programa de carro popular, o governo precisou mudar o plano para privilegiar o transporte público e acenar aos caminhoneiros. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atuou nos bastidores para consertar um projeto que atraiu críticas generalizadas ao carregar uma ideia anacrônica de reindustrialização e privilegiar as montadoras e os ricos. Ele detalhou as novas medidas na segunda-feira, 5, ao lado de Lula e de Geraldo Alckmin, com grandes mudanças.

Os carros continuam contemplados, mas o governo ampliou o programa para ônibus e caminhões.

Também ficou estabelecido que o plano vai durar no máximo quatro meses. Ao invés de abatimento dos impostos federais, o governo vai conceder bônus tributário às montadoras.

Para não contrariar a Lei de Responsabilidade Fiscal, desta vez foi incluída a fonte de receita: a reoneração do diesel. Os impostos federais sobre o combustível (de R$ 0,35 por litro), que estavam zerados, voltarão em duas etapas, em setembro (R$ 0,11 por litro) e janeiro de 2024 (o restante).

Uma das críticas ao plano se referia ao universo de beneficiados. Os carros mais baratos do mercado se situam na casa dos R$ 60 mil, e o governo prevê contemplar automóveis de até R$ 120 mil. São valores muito altos que não miram a grande maioria da população.

Os compradores poderão contar com descontos entre R$ 2 mil e R$ 8 mil, de acordo com critérios de eficiência energética, utilização de componentes nacionais e preço do automóvel. Já os caminhões e ônibus poderão ter redução de até R$ 99,4 mil.

Fernando Haddad mudou a proposta original. Geraldo Alckmin e Lula foram criticados por plano para montadoras (Crédito:Mauro Pimentel)

O fato de ser temporário, e ter um teto de R$ 1,5 bilhão (um terço para os automóveis, R$ 700 milhões para caminhões e R$ 300 milhões para ônibus e vans), diminuiu o estrago para a estratégia de Haddad de zerar o déficit público reduzindo os gastos tributários (subsídios e benesses para setores ou empresas específicos).

Já a verdadeira estratégia de reindustrialização, segundo todos os especialistas, está longe do programa anunciado e só avançaria com o aumento de produtividade no segmento, algo que apenas a Reforma Tributária poderia proporcionar.

Mas essa tese passou longe da proposta de “neoindustrialização” lançada por Lula e Alckmin em maio, que teve um ar passadista: criar frisson entre os consumidores artificialmente e anabolizar as montadoras com subsídios.

Alckmin, que acumula o Ministério do Desenvolvimento, não passou recibo pelo plano mal elaborado, e ainda aproveitou para recalibrar o discurso na segunda-feira insinuando que o benefício era uma resposta aos juros altos e ocorreria até a queda da Selic. Afinal, é mais fácil culpar o Banco Central pelas mazelas na economia do que apontar soluções estruturais.

“O que o Haddad fez foi uma maneira delicada de furar o programa. Acho que a pessoa que assessorou o Alckmin não levou em consideração a Lei de Responsabilidade Fiscal”, criticou a ex-diretora do BNDES no governo FHC Elena Landau.

“Estão requentando os remédios que não deram certo”, diz o ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman.

“Estamos de novo falando de crédito subsidiado como se não tivéssemos tentado isso à exaustão há cerca de uma década, com resultados pífios.”
Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central

Landau diz que o plano improvisado é “totalmente absurdo”. “Pobre não tem dinheiro para gastar em carro desse jeito, e o plano é promover conteúdo nacional e combustível fóssil. Vai contra a abertura comercial, a economia verde e a necessidade de dinheiro no Orçamento”, protesta.

Para o economista Roberto Giannetti da Fonseca, o governo deveria ter privilegiado a exportação, já que as montadoras estão com capacidade ociosa. “Existem fórmulas que poderiam ser mais criativas e imaginativas, que dariam resultado muito melhor para o governo”, diz.

Ele também defende que o governo deveria promover a transição energética, estimulando a produção do hidrogênio verde por meio de equipamentos de eletrólise fabricados no Brasil, por exemplo.

Componente político

Ainda que Alckmin tenha sido o “pai” oficial da ideia da “neoindustrialização”, o professor de economia da FGV EAESP Nelson Marconi considera que o vice-presidente e o titular da Fazenda, na verdade, seguem uma decisão do presidente. “A medida estimula a indústria automobilística. É de onde veio o Lula, ele tem apoio lá. Acho que existe um componente político muito forte nessa proposta”, afirma.

Ele concorda que do ponto de vista técnico o melhor seria priorizar uma política para o desenvolvimento de carros elétricos. Para Marconi, deveria ser estimulada a produção de baterias, que são os insumos mais importantes dos carros elétricos. “A MP vai apenas estimular um pouco a produção e jogar o problema para a frente”, acrescenta.

Presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite elogiou a abrangência do programa, por seu viés não só de aquecimento do mercado de veículos, mas também com um lado ambiental e de segurança viária, promovendo a renovação de frota de caminhões e ônibus. “Embora seja um programa de curta duração, traz um ânimo para todo o ecossistema automotivo e coloca um foco sobre um setor que tem potencial para gerar incontáveis benefícios à sociedade brasileira de forma geral”, afirmou.

A associação calcula que de 100 mil a 110 mil automóveis e comerciais leves deverão usufruir dos descontos de até R$ 8 mil, antes do esgotamento do teto de R$ 500 milhões em créditos tributários.

Pelos cálculos da entidade, isso deverá ocorrer em pouco mais de um mês, ou seja, bem antes dos quatro meses de prazo estipulado pelo governo.

O revendedor Marcelo Panico: cancelamentos após anúncio (Crédito:Marco Ankosqui)

Como todo o mercado, a Anfavea disse que a expectativa do anúncio dos descontos provocou o adiamento das compras por parte de muitos consumidores desde a metade de maio.

O resultado foi uma desaceleração das vendas, mesmo após uma primeira quinzena muito positiva. As 176,5 mil unidades emplacadas no último mês representaram crescimento de 9,8% sobre abril e recuo de 5,6% sobre o mesmo mês do ano passado, segundo a entidade.

“As concessionárias estão assustadas. Após o anúncio do governo em maio, houve um índice de cancelamento de compras muito grande. Em algumas lojas alcançou 80%”, diz Marcelo Giordano Panico, revendedor de carros novos e usados da X Car Multimarcas, na Mooca, em São Paulo.

Para ele, como o governo anunciou que o plano só dura quatro meses, a situação não vai se modificar. “Quando o mercado estiver acostumado, volta tudo de novo”, diz.

Desenrola é lançado

Num aceno de fato às pessoas de baixa renda, Haddad também anunciou finalmente o Desenrola, programa para renegociação de quem tem dívidas até R$ 5 mil e renda familiar de até dois salários mínimos.

Trata-se de uma promessa de campanha que foi adiada várias vezes. O governo vai fazer leilões de compra dos créditos dos credores que quiserem participar, estimulando o desconto em relação ao débito, até o limite de R$ 10 bilhões.

O governo diz que o programa deve entrar em funcionamento em julho e prevê alcançar 30 milhões de brasileiros. De novo, pode ser apenas mais uma promessa irreal.

Analistas consideram que esse cronograma dificilmente será cumprido. Desta vez, pelo menos, a proposta parece caminhar na direção certa.