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Colapso dos presídios: saiba como as cadeias viraram berço de facções criminosas

Fuga de penitenciária de segurança máxima escancara o falido sistema prisional brasileiro, que encarcera cada vez mais pessoas e não atua para afastar criminosos da reincidência ou adesão a uma das 70 facções criminosas que assumiram o controle das cadeias do País

Crédito:  Zanone Fraissat/Folhapress

Prisões como a de Pedrinhas, no Maranhão, recebem cada vez mais presidiários desde 2000 (Crédito: Zanone Fraissat/Folhapress)

Por Luiz Cesar Pimentel

Em 2018, o paraibano Carlito Claudiano quase conseguiu protagonizar a primeira fuga de uma das cinco penitenciárias federais de segurança máxima do Brasil, em Catanduvas (PR). Ele saiu da cela abrindo buraco pela passagem da luminária, acessou o vão de tubulações e instalações elétricas (shaft) mas não avançou pelo telhado, trancado com grades e cadeados. Ele já havia fugido de três presídios em seu estado de origem. Na madrugada da quarta-feira de Cinzas, Rogério da Silva Mendonça e Deibson Cabral Nascimento alcançaram o feito.

Eles contaram com uma série de falhas no sistema de outra das cadeias consideradas invioláveis do País, em Mossoró (RN), como câmeras inoperantes e falta de revista diária nas celas, usaram o vão da luminária, alcançaram o telhado, cortaram grades com ferramentas encontradas pelo caminho e completaram a primeira fuga bem-sucedida desse tipo de detenção desde 2006. Mais do que isso: revelaram um sistema prisional brasileiro estruturalmente falho, que não apenas coloca em risco a segurança dos cidadãos mas opera transformando o que deveriam ser centros de reabilitação em abarrotadas universidades do crime.

Segundo o Ministério da Justiça, o Brasil tem 1458 unidades prisionais, divididas em cinco tipos:
penitenciárias,
cadeias públicas,
colônias agrícolas,
centros de progressão,
e casas albergadas.

Deibson e Rogério foram levados para a instituição no ano passado após participarem de rebelião em Rio Branco (AC), que resultou na morte de cinco detentos. Eles cumprem os requisitos de criação das penitenciárias federais: isolamento de lideranças de facções criminosas e detentos de alta periculosidade — os dois são membros do Comando Vermelho, e em Mossoró está o líder do grupo, Fernandinho Beira-Mar.

Inaugurada em 2009, a cadeia potiguar foi uma das inspiradas na norte-americana ADX Florence, chamada de “Alcatraz das Montanhas Rochosas” já que é cercada por cordilheira no Colorado — a segurança máxima conta com instalação em lugares inóspitos para dispensa de muralhas.

Penitenciária em Mossoró foi palco da primeira fuga em instituições do tipo. Abaixo, mais de 500 policiais procuram os fugitivos (Crédito: José Aldenir/Thenews2/Folhapress)

Só que a descoberta há cinco anos de plano de resgate de líderes de facções fez o Governo Federal reconsiderar a estratégia e o presídio de Brasília — os outros dois federais estão em Campo Grande (MS) e Porto Velho (RO) — foi cercado por muralha de 11 metros à prova de armas de guerra, ao custo de R$ 35 milhões.

É o centro prisional onde está o líder do PCC (Primeiro Comando da Capital), Marcos Camacho, o Marcola. O projeto para construção de muralhas nas outras quatro parou em 2022. “Algo que é mais custoso mas já está no planejamento nosso é a construção de muralhas em todos os presídios federais”, disse o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski.

Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça e Segurança Pública, apresentou soluções no curto prazo para as falhas do sistema (Crédito:José Aldenir/Thenews2/Folhapress)

Estratégia de avaliação

Lewandowski ouviu o seu ex-colega de STF Luis Roberto Barroso, que acumula a presidência do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Ele fez levantamento sobre o estado das carceragens do País e constatou que:
• apenas um quarto (26%) são boas ou excelentes,
• enquanto um terço (34%) são ruins ou péssimas.

Importante frisar que a instalada em Mossoró foi avaliada como boa.

Dois outros índices são significativos em um mesmo quadro comparativo para traçar linha do tempo de aumento da insegurança prisional, principalmente nos últimos 20 anos.

Segundo o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), a população presa no Brasil cresceu 3,5 vezes desde 2000 — de 232.8 mil encarcerados subiu para 832.3, totalizando o terceiro maior contingente do mundo, atrás de EUA e China.

• O déficit de vagas subiu na mesma proporção, pois atualmente o sistema tem capacidade para abrigar 600 mil, com falta de espaço para 232 mil.

O dado que completa o comparativo é sobre fugas e rebeliões. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública registra média de 133 rebeliões por ano e 9 mil fugas nos últimos 15 anos de contabilização, em crescimento igualmente proporcional à superlotação das cadeias. Sem contar a estimativa de 352 mil mandados de prisão sem cumprimento.

“Isso aconteceu quando o Brasil mudou perfil, que era similar ao inglês, com taxa de 80 ou 90 presos a cada 100 mil habitantes, para o americano, que chega a 700 por 100 mil, e segue uma lógica de vingança e não de reparação”, aponta o sociólogo paulista Osmar Araújo.

Ao colocar os índices lado a lado é clara a constatação que a estratégia de segurança foi imediatista, encarcerando cada vez mais pessoas como recado punitivo, e só aumentou o problema já que não tratou de estrutura.

Os presídios qualificados como excelentes pelo CNJ têm uma taxa de fuga 15 vezes menor do que os ruins e 18 vezes menor do que os péssimos.

As rebeliões também acontecem na proporção de oito para uma quanto mais seguras são as instalações.

Na fuga em Mossoró, a resposta do Ministério da Justiça foi rápida: afastou a direção do presídio, mudou protocolo de controle de acesso, anunciou recuperação do sistema de monitoramento em vídeo e construção de muralha.

Tudo isso na contramão dos investimentos dos últimos anos na segurança penitenciária, que caiu pela metade nos cinco recentes (de R$ 1,2 bilhão para R$ 605 milhões) com a projeção de corte para R$ 361 milhões em 2024 destinados ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen).

Penitenciária do DF: a única federal que possui muralha de proteção (Crédito:Divulgação )

Superlotação

As cinco penitenciárias federais não podem servir de exemplo para o quadro prisional brasileiro. Na soma delas, há 1040 vagas que abrigam atualmente apenas 489 detentos.

O protocolo de segurança máxima determina celas individuais sem tomadas, revista a cada entrada e saída do espaço e condução algemada para banhos de sol.

Por estarem no Regime Disciplinar Diferenciado, já que respondiam a mais de 30 processos entre homicídios, roubos e tráfico, os fugitivos da cadeia potiguar sequer saíram do espaço de confinamento nos últimos cinco meses.

O mais recente estudo sobre gastos com presos indicou que cada encarcerado brasileiro consome em média R$ 1800,00 mensais em recursos enquanto nas penitenciárias federais o valor chega a R$ 35 mil.

Penitenciaristas têm opinião de que o primeiro dos problemas, o da superlotação, diminuiria se adotados julgamentos mais rápidos e penas alternativas ou mais curtas, dependendo do delito cometido.

Países nórdicos conseguiram resultados expressivos com pena máxima de 21 anos, taxa de 80% das condenações a menos de um ano de prisão e adoção de justiça restaurativa, com punições alternativas ao encarceramento.

Nos últimos anos, Suécia e Holanda fecharam presídios por falta de detentos e viram índices de reincidência baixarem e ficarem entre 20% e 30%, enquanto no Brasil a taxa chega a 70%.

Relatório do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sugere que cadeias que possuem “programas cognitivos-comportamentais baseados na teoria de aprendizagem social” têm maior sucesso no combate à reincidência criminal.

Quando adotou programa de empreendedorismo em suas prisões, ensinando planos de negócios e busca por financiamento, o estado do Texas viu a taxa de retorno ao crime dessas instituições baixar para 7% em contraste aos 70% do restante do país.

Existe uma barreira de educação da sociedade que valoriza discurso político punitivo rígido. As promessas populistas de rigor maior no combate criminal significam mais votos e são utilizadas até por aqueles que sabem que a tendência é de apresentar resultados negativos em médio e longo prazos.

No calor do noticiário sobre a fuga em Mossoró, a proposta do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) de acabar com as cinco saídas temporárias de presos em feriados e datas comemorativas, conhecida popularmente como “saidinhas”, foi aprovada por 62 votos favoráveis contra 2.

Modelo das prisões de segurança máxima, como a do DF, segue o dos EUA. Abaixo, cadeia em Dakota do Norte (Crédito:Valter Campanato/Agência Brasil)
(Divulgação)

Universidades do crime

O ponto mais grave da equação é a função que ganharam centros prisionais no País. Desde a década de 1990, principalmente, as casas de detenção passaram para controle dos próprios presos, que ocuparam a brecha de segurança deixada pelo Estado e viraram berços de facções criminosas.

Os dois principais grupos com atuação nacional nasceram justamente para reivindicar melhores condições para presidiários.
• O Comando Vermelho é o mais antigo e deriva da Falange Vermelha, criada em 1979 em protesto ao tratamento penal.
• O Primeiro Comando da Capital (PCC) nasceu da revolta com o massacre do Carandiru, em 1992, no Centro de Custódia de Taubaté (SP), conhecido como “Piranhão”. O grupo liderado por Marcola atua em 23 estados e em países como Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezuela.

Segundo o Ministério da Justiça, as duas gangues atuam em 25 das 27 unidades sob responsabilidade da Federação, e há 68 outros grupos criminosos agindo em cadeias no País.

“Esse é o elemento chave para o sucesso dos grupos. O preso adere a um deles em primeiro lugar para não ser morto. Depois, adquire melhor condição de visitas, as facções cuidam de proteção e assistência para suas famílias e até advogados arrumam”, afirma o sociólogo paulista Osmar Araújo, que trabalhou no sistema penal entre1992 e 2000 e viu a explosão das quadrilhas nos presídios.

O fundador do projeto Favela Radical, Jefferson Quirino, que foi integrante de facção e cumpriu penas em cinco detenções cariocas, diz que o crime organizado dominava cada uma delas e as próprias autoridades estimulam hoje a escolha de alguma para limitar a violência. “O processo de adesão aos grupos criminosos é a consequência de um Judiciário que penaliza mas não filtra, misturando quem comete delito leve com chefes de grandes quadrilhas, em ambiente extremamente fértil para o recrutamento de novos candidatos”, diz.

O domínio de gangues é um problema espalhado pela América Latina.
• Em El Salvador, por exemplo, 2% da população do país está presa após explosão de violência de grupos criminosos, em situação que levou o presidente Nayib Bukele a declarar estado de emergência em 2022.
Na Colômbia, a declaração de emergência foi dada nas prisões após grupos criminosos serem repreendidos e retaliarem assassinando guardas.
• No Equador, no começo deste ano ficou famosa a cena de grupo armado invadir estúdio de TV em Guayaquil, e fazer reféns em transmissão ao vivo depois que as forças armadas assumiram controle das cadeias.

“Todo mundo que trabalha no sistema sabe que, por incrível que pareça, a solução começa pela proteção dos presos. Só que isso não interessa nem para a classe política, que ganha votos com discursos de ‘bandido bom é bandido morto’, nem ao Judiciário, que se beneficia do inchaço da operação nas prisões e em volta”, conclui Araújo.