Cultura

Longe dos clichês, a literatura africana vive uma revolução

A literatura da África conquista finalmente seu merecido reconhecimento no Ocidente: desde que o tanzaniano Abdulrazak Gurnah venceu o Nobel, diversos autores do continente vêm ganhando destaque e prêmios internacionais

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Xavier Garnier, professor de literatura africana na Universidade de Sorbonne: “Vemos um renascimento da atenção do mundo literário em relação à África” (Crédito: DR)

Por Felipe Machado

Apesar de toda a sua originalidade e tradição, a literatura africana demorou tempo demais para ter sua relevância reconhecida pelo Ocidente. Escritores como o senegalês Mohamed Mbougar Sarr e a moçambicana Paulina Chiziane, no entanto, vêm mudando esse cenário ao conquistar multidões de leitores e vencer grandes prêmios internacionais com obras que fogem de clichês como a violência, a guerra e as crianças empunhando metralhadoras, imagens geralmente associadas aos autores do continente.

Um dos reflexos imediatos dessa popularidade é a negociação dos títulos vencedores em mercados onde ainda são inéditos. É o caso de Sarr, que acaba de ter seu livro mais conhecido publicado no Brasil: A Mais Recôndita Memória dos Homens, fenômeno de público e crítica, foi o vencedor do renomado prêmio francês Goncourt.


Paulina Chiziane: vencedora
do Camões e primeira mulher a
publicar um livro em Moçambique (Crédito:Renato Parada)

A obra, que acaba de sair no Brasil, é um labirinto de palavras marcado pela influência, em termos de estilo, dos latino-americanos Roberto Bolaño e Jorge Luis Borges. É uma história dentro de outra: o jovem escritor senegalês Diégane Faye viaja a Paris, Amsterdam, Buenos Aires e Dakar em busca de T.C. Elimane, autor africano desaparecido após um único livro de sucesso.

Aos 33 anos, Sarr ultrapassa as fronteiras do continente e torna-se uma voz universal. “Jamais tente dizer do que fala um grande livro. Ou, se você o fizer, eis a única resposta possível: não fala de nada”, afirma um de seus personagens. Segundo Kalaf Epalanga, que assina a apresentação, “um grande livro sempre fala de nada e, no entanto, tudo está lá”.

A moçambicana Paulina Chiziane, vencedora do Camões, maior honraria em língua portuguesa, também tem lançamento no mercado brasileiro: Ventos do Apocalipse trata da independência de seu país. Ela é conhecida por seus personagens femininos fortes e por ser uma pioneira nos temas da emancipação e o empoderamento da mulher africana.

Basta lembrar que seu romance de estreia, Balada de Amor ao Vento, lançado em 1990, foi o primeiro romance publicado por uma mulher em Moçambique. Desde então, seu sucesso tem contribuído para a divulgação de outras autoras, entre elas Tsitsi Dangarembga, do Zimbábue, e Chimamanda Ngozi Adichie, da Nigéria. Chimamanda, inclusive, também acaba de adicionar um prêmio ao seu currículo, o “Women’s Prize for Fiction”.

E foi além: Meio Sol Amarelo foi eleito pelos internautas o melhor livro a ganhar o renomado prêmio feminino de ficção nos 25 anos de história da láurea. As nigerianas Ayobami Adebayo, Nnedi Okorafor e Akwaeke Emezi também se tornaram populares no Brasil nos últimos anos — Ayobami chegou a vir ao País em 2019, como convidada da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.

O novo despertar para as letras africanas

“Vemos um renascimento da atenção do mundo literário em relação à África”, afirmou Xavier Garnier, professor de literatura africana na Universidade Sorbonne, na França, à agência AFP.

O movimento começou com o prêmio Nobel do tanzaniano Abdulrazak Gurnah, em 2021. Seu livro mais famoso, o espetacular romance Sobrevidas, trata do efeito brutal do colonialismo sobre o continente. O contexto histórico aborda o período relativo à ocupação do norte da África pelos alemães, no início do século 20. O enredo de Gurnah demonstra como as decisões tomadas em salas de guerra europeias afetaram a vida e o cotidiano dos habitantes da região, dividindo famílias e criando novos conflitos regionais.

No ano seguinte, em 2022, foi a vez de outro africano, o senegalês Boubacar Boris Diop, vencer o renomado prêmio norte-americano Neustadt.


Abdulrazak Gurnah: segundo autor africano negro premiado pela Academia sueca em 122 anos (Crédito:Pascal Le Segretain)

A literatura africana só foi reconhecida pelo Nobel no final do século 20. A láurea criada pela Academia sueca em 1901 levou 85 anos para premiar um escritor do continente.

O nigeriano Wole Soyinka, poeta, romancista e dramaturgo, foi o primeiro a recebê-lo, em 1986. Depois vieram o egípcio Naguib Mahfouz (1988) e os sul-africanos Nadine Gordimer (1991) e J.M. Coetzee (2003).

Há, no entanto, um pequeno detalhe nessa lista: nenhum desses três últimos autores era negro. Essa é uma das razões que fizeram a vitória de Gurnah ter o impacto de uma verdadeira revolução para a literatura africana. Ele passa a ser o segundo autor africano negro a levar o Nobel em 122 anos — uma injustiça que, ainda que de forma tardia, começa enfim a ser reparada.