Perspectivas 2024

A eleição nos EUA pode mudar o mundo, dizem analistas

Eventual vitória de Donald Trump, que lidera as pesquisas mesmo correndo o risco de ser considerado inelegível, voltaria a fortalecer o extremismo de direita no mundo. Conflitos na Ucrânia e em Israel podem afetar a economia global

Crédito: Andrew Caballero Reynolds

Donald Trump, mesmo sob ameaça de ser considerado inelegível, é uma ameaça a Joe Biden (Crédito: Andrew Caballero Reynolds)

Perspectivas 2024 internacional

Por Denise Mirás

Serão ao menos dois bilhões de pessoas elegendo governos nacionais de 40 países em 2024 — alguns deles com populações gigantescas, como EUA, Índia e Indonésia, ou densidade demográfica enorme, como Bangladesh, e também outros muito influentes em suas regiões, caso de Reino Unido e África do Sul. Com um terço de seus habitantes votando, o planeta pode se ver reconfigurado em vários aspectos. Mas a eleição com potencial para repercussões mais profundas é a dos EUA, em 5 de novembro.

A Suprema Corte do Colorado considerou Donald Trump “desqualificado” para concorrer às eleições primárias naquele Estado, por ter se envolvido na tentativa de golpe, com a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

O ex-presidente, que segue com a popularidade em alta mesmo respondendo a 91 acusações em quatro processos criminais, deve recorrer. Assim, a permissão sobre sua candidatura ficará a cargo da Suprema Corte dos EUA.

E enquanto prossegue a questão jurídica sobre o adversário ser ou não considerado inelegível, Joe Biden continua com problemas domésticos a contornar e é afetado por decisões de abrangência internacional. Em contraponto a um novo furacão Trump, o atual presidente precisa equilibrar ações internas e externas para viabilizar sua reeleição como candidato democrata.

A China, por sua vez, mesmo às voltas com problemas econômicos e a desaceleração de seu crescimento, tem peso suficiente para provocar um movimento maior dos EUA ainda mais voltado para a América do Sul, agora que Xi Jinping se mostra disposto a investir mais agressivamente em países importantes da região — como é o caso do Brasil —, mantendo sua política expansionista.

E seguem as incógnitas com a guerra na Ucrânia e o conflito na Faixa de Gaza, que em grande parte também dependem da campanha à eleição americana.

Biden precisa equilibrar ações domésticas e internacionais para tentar reverter a queda de popularidade (Crédito:Andrew Caballero Reynolds)

Cartilha radical

De certo, o que analistas de política internacional preveem é o avanço da extrema-direita no mundo em 2024.

Flavia Loss, doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP, lembra que “não dá mais para analisar esses radicais de maneira isolada, em cada país, porque se tornaram seguidores de uma mesma cartilha”.

Emerson Cervi, cientista político da UFPR, explica que o fenômeno veio para ficar, basicamente porque a extrema-direita vem de movimentos sociais que entraram para a política — e não o contrário. Daí a facilidade de seus militantes se organizarem além-fronteiras, valendo-se das redes sociais e da linguagem que alcança uma juventude sem horizontes, desempregada e pendendo para a xenofobia.

Para Vladimir Feijó, especialista em Direito Internacional, as frentes abertas pelas mídias sociais — “uma enorme diferença do século passado para este” — dão a falsa impressão de que se está informado, mas falta capacidade, principalmente da parte dos jovens (até por inexperiência) para se peneirar contexto.

“É como telefone sem fio. E não apenas para o consumo de produtos, mas também para disseminar informações falsas.” Essa arma é usada pela direita radical em discurso que se encaixa bem em crises econômicas, como diz Feijó, fazendo um paralelo com o período entreguerras do século passado: a Grande Depressão de 1929 se reverteu em nacionalismos exacerbados usados por fascistas.

A história se repete, agora, com a crise econômica mundial acirrada pela guerra na Ucrânia, a partir de 2021. Crescem os extremismos em Portugal, Espanha e Alemanha, além da França, que chegam mesmo a governos de países europeus considerados mais desenvolvidos, como Finlândia e Suécia.

A China expansionista de Xi Jinping é uma grande preocupação para os EUA na América do Sul (Crédito: Li Gang / Xinhua / Xinhua Via AFP)

Nos EUA, a retomada populista e radical de Trump atropela Biden, cobrado pelos eleitores sobre os bilhões liberados para o ucraniano Volodynir Zelensky e o “envio de soldados a guerras que não são nossas”, e sobre a questão dos imigrantes que tentam entrar no país pela fronteira com o México.

Biden ainda tem de lidar com o venezuelano Nicolás Maduro ameaçando um novo conflito armado na América do Sul, para tomar metade de sua vizinha Guiana (que tem petróleo em abundância no mar, explorado por empresas americanas).

Não bastasse, os argentinos elegeram o radical Javier Milei, que é pró-Trump, e Biden precisa também manter um olho na China, que investe cada vez mais no “Triângulo do Lítio”, região formada por Argentina, Chile e Bolívia.

Luciana Mello, professora de Relações Internacionais do IBMR-RJ, observa: mesmo que a América do Sul não esteja no topo da hierarquia dos sistemas internacionais, para os EUA esses países são seus aliados — ou ao menos subservientes.

Xi Jinping investe na América do Sul e EUA consideram montar base militar na Guiana

Para Emerson Cervi, a política americana se mostra interessante: Trump se declarava independente, um “outsider”, mas teve de se adaptar ao sistema para chegar à Presidência justamente pelo Partido Republicano, o mais tradicional.

Fracassou na tentativa de se reeleger, mas não perdeu o eleitorado. E com o conflito aberto entre Hamas e Israel, “o Biden não pode abrir uma brecha, senão o Trump nada de braçada”.

Para Luciana Mello, Trump é “assustadoramente forte”, mas as eleições naquele país seguem “uma incógnita”, porque terminam resolvidas mais em cima de questões domésticas do governo.

Internacionalmente, diz Luciana, houve desespero com a invasão da Rússia na Ucrânia porque esse país europeu é produtor/exportador de grãos e matéria-prima para fertilizantes. “Mas o tempo passou e, com a guerra se eternizando, países foram atrás de outras parcerias para conseguir o pão de cada dia. O comércio internacional de fertilizantes, por exemplo, está razoavelmente de volta aos níveis esperados porque as coisas tendem a se acomodar.”

O caso Hamas/Israel, teoricamente, é um conflito mais concentrado, ainda que implique o Irã, como destaca a professora.

Gigantes do transporte marítimo, como a petroleira BP, passaram a evitar o Mar Vermelho — que liga o Mediterrâneo ao Oceano Índico —, porque navios estão sendo atacados pelos hutis, que atuam na região do Iêmen e apoiam o Hamas.

Os bombardeios passaram a ser por meio de drones, que foram consolidados na guerra da Ucrânia como arma de guerra barata e eficiente, em chamados enxames. Cada vez menores — até fabricados com uma espécie de papelão, mas com capacidade de carregar munição —, estão à venda pelo preço de um brinquedo na internet.

“Popularizados” sem legislação específica, podem mesmo incentivar novos conflitos, ataques terroristas ou simplesmente atos criminosos em áreas urbanas.

Mudanças de rota

Roberto Goulart Menezes, do IREL da UnB, diz que “três eixos” se destacarão em 2024:
• a preocupação com a segurança internacional,
• a eleição americana,
• e decisões do G20, que está sob a presidência do Brasil (agora como a nona economia do mundo, segundo o FMI).

No primeiro caso, o professor também destaca o deslocamento dos EUA para a América do Sul (por causa de seu dois polos de problemas em potencial com a Venezuela de Maduro e a Argentina de Milei).

A turbulência na região deverá provocar uma presença americana mais ostensiva, com a tentativa de implantar uma base militar na Guiana.

Para ele, os EUA estão claramente se desengajando da guerra na Ucrânia, assim como a Alemanha, e com Zelensky perdendo força haverá uma mudança de rota.

Os americanos também lidam com a instabilidade gerada pelo conflito Hamas/Palestina e Israel, que tenta tomar a Faixa de Gaza à força, destruindo toda a infraestrutura daquela zona para tornar a vida inviável e empurrando a população para o Sul, onde está o Egito.

Com a popularidade de Biden “ladeira abaixo”, a manutenção do apoio a Israel também dependerá da campanha eleitoral americana.

Resoluções sobre Ucrânia e Gaza dependem das eleições presidenciais americanas

A baixa de popularidade também forçará o atual presidente a acirrar a disputa com a China — vista como inimiga por congressistas e eleitores, tanto democratas como republicanos.

“Os EUA agora se voltam para a estratégia de nearshoring, com produção e cadeias globais de valor mais próximas. Investem no México e na Costa Rica, onde querem fazer um vale de chips”, observa o professor, ainda que tenham de lidar com a incógnita da ‘Argenchina’.

“Para eles, a China é fonte de preocupação desde 2008. Não querem essa potência extra na região, ganhando mercado na América Latina.”

Mas o foco de Biden para a reeleição, acredita o professor, serão os temas econômicos domésticos, como desemprego. “É o que deve marcar o chamado Discurso do estado da Nação, que em fevereiro/março de cada ano aponta o rumo do país”.

A tradição do balanço interno e externo, com as perspectivas, vem desde 1823, explica, data da apresentação da Doutrina Monroe, da “América para os americanos”, do presidente James Monroe.

No terceiro “eixo”, para o professor, estará o Brasil, com a presidência do G20 e a cúpula marcada para 24 de novembro de 2024 — posterior à eleição nos EUA. Até lá, estarão sendo discutidos temas fundamentais, como as resoluções da COP28 sobre as dramáticas mudanças climáticas, a fome e a pobreza, e mesmo a governança global.

Para Luciana Mello, no caso do G20, “o processo vale mais que o resultado”, porque o importante estará na mobilização do poder público e privado dos países envolvidos nessas questões durante todo o ano.

“O mundo se globalizou. Não vai ter volta. Alguém espirra na França e a gente já tem de tomar xarope aqui.”
Luciana Mello, professora de Relações Internacionais do IBMR-RJ

Bombardeios de Israel destroem infraestrutura e empurram os palestinos para o Egito (Crédito:Abed Khaled)