Comportamento

“Minha vida é muito boa, mas tem grau de dor profundo”, diz Bruna Lombardi

Crédito: Arquivo Pessoal

A atriz prepara o lançamento de dois livros e diz que tem outros já encaminhados (Crédito: Arquivo Pessoal)

Por Luiz Cesar Pimentel

Bruna Patrizia Romilda Maria Teresa Lombardi é imune ao etarismo. Há 45 dos 71 anos de vida ela não tira proveito de seu atributo mais evidente – o de ser musa de um país inteiro, apesar de continuar com a mesma beleza física do dia em que primeiro apareceu na TV, na novela Sem Lenço, Sem Documento, em 1977. Ela tinha 25 anos e fora modelo nos 10 anteriores. No ano seguinte, quando gravou Aritana, conheceu o marido com quem casou, vive e trabalha até hoje, Carlos Alberto Riccelli. Nos anos 1980 teve seu personagem mais marcante, ao interpretar um homem, Diadorim, em Grande Sertão: Veredas. Desde então, se mudou para Califórnia e atua como apresentadora, poetisa, escritora, roteirista, diretora e atriz. Está finalizando dois livros “bastante pessoais”, apresentando programas no YouTube, escrevendo e vivendo a ponte entre Los Angeles e São Paulo, de onde conversou com Istoé. Volta e meia ela posta uma foto provocante no Instagram, tirada pelo marido, para nos lembrar de adequarmos percepção e expectativa.

Você é caso raro ao se manter como musa de um país por quase seis décadas e trabalhando. Como equilibrar por tanto tempo o mesmo brilho e relevância?
Do meu ponto de vista, não me associaria à palavra “musa”, embora me associem. Eu me associaria a uma pessoa que trabalha muito. Outro dia, um amigo falou que eu gosto de criar, de começar as coisas, daquilo que o Guimarães Rosa falava: “Fazer um nada virar coisa”. Essa ideia, esse prazer, é na verdade a grande aventura humana, porque você lida com o desconhecido, vai ao encontro dele e muitas vezes quebra a cara, passa por enormes obstáculos e dificuldades, mas se encanta com as descobertas, com todos os percalços do caminho. Qualquer coisa fora disso é o que pode ser, mas dentro é a minha aventura com as descobertas da vida.

Você falou de estar sempre com descobertas e criações, e recentemente disse que estava trabalhando em dois livros muito pessoais. Pode falar sobre eles?
Posso. Um deles, Manual para Corações Machucados, vai sair agora e é uma compilação de textos e crônicas que falam sobre amor, desencanto, mistérios, processos humanos. A gente sempre tem muitos questionamentos, muita tentativa de compreensão. O “comunicar” só é importante na medida em que você compreende o que o outro entendeu. Eu preciso compreender, o outro precisa compreender e isso é de fato uma comunicação. Minha editora disse o seguinte: “O seu livro engana, porque parece que são textos simples, mas quando lemos, sentimos uma transformação, uma necessidade de pensar sobre aquilo que nunca tinha pensado”. Eu achei isso muito legal. O segundo livro é uma reedição de um que foi muito importante para mim, Os Proibidos. Tenho outros encaminhados, mas agora vou ficar com esses dois.

“(Carlos Alberto Riccelli e eu) Temos interesses e visão de mundo muito parecidos. Idênticos, na verdade. Mas não achamos que seria uma relação para a vida toda” (Crédito:Greg Salibian)

Soa um pouco hipócrita o título Manual de Corações Partidos, já que você tem um dos casamentos mais sólidos conhecidos. Você está há 45 anos com o Carlos Alberto Riccelli. Qual é o segredo de manter um relacionamento tão duradouro?
Acho importante falar sobre isso, porque parece assim: “Ela fala, mas não passa por isso”. Nunca fui a garota que sonhava com o dia do casamento. Achava que seria aquela mulher sozinha, que iria viajar pelo mundo, escrever livros, fazer reportagens. Fui modelo, o que me deu independência e estabilidade. Depois comecei a publicar meus livros, fui trabalhar na Globo, deixei a emissora e vim para São Paulo convencida a fazer outro trabalho. Aí surgiu a chance entre milhões: ir para o Xingu gravar Aritana. Foi quando conheci um cara que tinha muito a ver comigo. A gente não parava de conversar, a gente tinha lido os mesmos livros, gostava das mesmas músicas. A gente tinha interesses e visões de mundo muito parecidos, idênticos, na verdade. Mas não achamos que seria para a vida toda. Até escrevi um poema que dizia: “Se a paixão há de ser provisória, que seja louca e linda a nossa história”. Mas fomos ficando, e era melhor, aí ele disse uma vez: “Uma relação só é boa quando é cada vez melhor”. Acho que a gente foi construindo no dia a dia uma super relação, uma jóia rara.

Em tudo o que faz, a empatia parece ser a base do seu processo.
Tinha uns onze anos quando li uma frase do poeta Murilo Mendes: “Muita coisa sofro pelos outros, eu mesmo me sofro às vezes”. Com onze anos, isso não era elaborado como hoje, mas já tinha algumas atitudes que me confirmavam essa sensação. Eu estava no (ensino) primário. A gente tinha que fazer um desenho para o Dia das Mães e um menino na fileira de trás começou a chorar, porque não tinha mãe. Meu impulso imediato foi pular da carteira, sentar do lado dele e não me lembro mais o que fiz ou falei. Isso foi muito instintivo. Esse momento foi um momento determinante, porque senti que a história das outras pessoas me importa, o sofrimento dos outros me dói. Eu tenho uma empatia extraordinária, que me machuca profundamente. Talvez eu queria melhorar o mundo por egoísmo, para poder viver sossegada, sabe? A minha vida é muito boa mesmo, mas ela tem um grau de dor profundo. Se você ler os meus livros de poesia, você vai ver uma menina de vinte anos, que tinha tudo naquele momento, sucesso e paparicação, milhões de capas de revistas, um reconhecimento muito grande. Mas ali dentro tinha essa dor do mundo, intacta, que ela não melhora enquanto o mundo não melhorar.

Você é atriz, roteirista, escritora, poeta, palestrante. Dentro de tantas coisas, o que te completa? Ou você vive por fases?
Sem dúvida vou vivendo por fases. Quando estava escrevendo a série A Vida Secreta dos Casais, redigi três temporadas. Eu estava completamente mergulhada nisso, não conseguia pensar em outra coisa. Porque além de roteirista, eu era produtora daquilo. E também era a protagonista. Quando fazia filmes mergulhava dentro deles, quando escrevia livros também. Cada vez é uma coisa.

Como ficou sua relação com o Brasil depois que você se mudou para os Estados Unidos, em 1990, e como enxerga o País hoje, após quatro anos de dificuldades na cena cultural?
Eu estava em um momento super forte da carreira, mas decidi me mudar, queria estudar. Ouvi coisas como: ”Seu público vai te esquecer”. E respondi: “Isso está fora do meu controle”. Era uma quebra radical, mas era interessante por isso mesmo. Eu e o Ri [Carlos Alberto Riccelli] temos essa abertura, esse espírito aventureiro. Saí daqui no momento em que a gente tinha lutado muito pelas Diretas. O Brasil estava com uma grande promessa de futuro e deu no que deu, aquela coisa doida de adorar eleger um maluco. Depois das dificuldades, teve um momento de ouro, quando veio o Fernando Henrique Cardoso. À época das Diretas, subi no palanque de mãos dadas com duas pessoas: de um lado, Fernando Henrique, do outro, Lula. Foi muito emocionante. Dois grandes estadistas, cada um à sua maneira, de excelente pulso com o público: um mais elitista, mas com compreensão, com abrangência de pensamento, e o Lula, que é um cara inteligentíssimo. Agora o Brasil passou por um retrocesso terrível, parece que a gente voltou para a Idade Média quase. Por outro lado, vejo também uma enorme melhora. Hoje nós falamos livremente contra preconceitos, como racismo, misoginia e homofobia. Agora sinto que estamos em transição.

“No movimento das Diretas, subi no palanque de mãos dadas com Fernando Henrique Cardoso e Lula. Dois grandes estadistas, cada um à sua maneira. Foi emocionante” (Crédito:Ricardo Stuckert)

Você é bastante reservada, pode contar como é na intimidade?
Na vida a gente é um poço de dúvidas e inseguranças. Tem uma coisa para mim muito clara e forte, a minha escala de valores, que é muito fundamentada. Quando ninguém está olhando, eu sou melhor do que quando você me vê. Eu sou gentil com desconhecidos, cuido de bichos e não faço alarde sobre isso. Eu obedeço meus valores, isso traz a força que tenho e me faz ser a pessoa que sou. Então, para mim, tomar a decisão de ruptura não é difícil. Porque sigo outro rumo, não o que as pessoas seguem. Generalizar é muito ruim, mas existe um falso conceito social de que a gente se move por sobrevivência e dinheiro, mas só até certo ponto. O seu grau de concessão é o que vai medir o que você é, e eu tenho sido muito coerente com o meu, o que me dá uma profunda paz de espírito. Eu invisto muito na vida. Dedico muito mais do que para fora, dedico para dentro.

Você disse que tem um arquivo confidencial com seu marido e, vez ou outra, publica algumas fotos mais sensuais. O que a motiva? É o empoderamento feminino?
É interessante que todos nós temos um tabu com o corpo, que vem de uma imposição social muito restritiva e violenta. Sem querer acabei colaborando com isso, porque quando você trabalha como modelo, você imprime uma estética. Mas se você pesquisar entrevistas desde que comecei a trabalhar, sempre falei que achava todos bonitos, que existiam milhões de tipos de beleza. Eu nunca quis ser um padrão de beleza único. Há muitas décadas eu gosto da pluralidade, da diversidade. Sou uma escritora, então me interesso pelo ser humano em todas as suas formas, propostas, cores e crenças. Quando você relata esse tabu do corpo, sou uma pessoa até tímida fisicamente. Não sou arrojada, nunca fui. Sempre fui super discreta na minha existência. Quando posto uma foto assim, em que aparece um pouco de perna ou colo, estou pregando a liberdade, que é o que nos define. Eu sou o meu corpo, eu não posso exclui-lo e nem quero.

O que você acha que representa?
Eu não acho que seja possível viver sem me manifestar, porque a verdade é que a gente é condenado, entre aspas, a muitos papéis na vida – de filho, de aluno, de profissional, de namorado, de mãe, de pai. As mulheres, especificamente, têm essa necessidade da abrangência, de querer cuidar da família. Com isso, elas acabam nem se cuidando. A mulher tem essa eterna busca. Por isso eu defendo muito as mulheres, e quero realmente despertar os homens para as mulheres, e não criar algum tipo de antagonismo. Existem centenas de bilhões de realidades, a que eu enxergo, a que você enxerga, a que o esquimó enxerga, a que um animal enxerga. E é preciso que todas se compreendam, que elas convivam de forma que exista compaixão. Isso vai criar uma humanidade melhor. Eu prego o humanismo, luto por uma vida mais humana.