Internacional

Caos na fronteira

Revogação da restrição imposta na Covid faz disparar a travessia ilegal e agrava a crise migratória nos EUA. O presidente Biden tenta se equilibrar entre os eleitores latinos e os extremistas, que querem barrar estrangeiros

Crédito: ALFREDO ESTRELLA

SOB RISCO Famílias deixam Matamoros, pelo Rio Bravo, para entrar nos EUA (Crédito: ALFREDO ESTRELLA)

Sonhar com uma vida melhor empurra multidões a cidades fronteiriças do México com os EUA há décadas. Agora essa onda humana voltou a ocupar maciçamente postos-chave como Ciudad Juarez e Tijuana: imagens revelam pelo menos 10 mil pessoas por dia tentando transpor ilegalmente a barreira do pesadelo vivido em países da América do Sul e do Caribe, ou mesmo na Síria ou na China. Mas a tragédia só mostra suas dimensões, de fato, pelos relatos de famílias sobre a travessia de centenas de quilômetros em ônibus e caminhões precários, ou a pé, enfrentando matas fechadas, rios, assaltos, fome, e encontrando mortos pelo caminho. Encarar perigos e sacrifícios para chegar à fronteira e se postar à espreita de brechas para entrar nos EUA é melhor do que a vida que deixaram para trás.
Segundo dados oficiais, mais de 2,3 milhões tentaram entrar ilegalmente nos EUA em 2022, sobre 1,7 milhão em 2021 e 450 mil em 2020 (ano do auge do lockdown em todo o mundo). Em 2023, esse fluxo aumentou à medida que se aproximava o vencimento do Título 42, lei federal para emergências acionada por Donald Trump em março de 2020, sob a justificativa da Covid-19. Foi uma maneira dura de brecar a entrada de ilegais, o que levou a administração até a colocar em “gaiolas” quase 4 mil crianças, separadas de seus pais.

DESAFIO Passar pelo arame farpado é a alternativa para chegar a El Paso, no Texas (Crédito:JOHN MOORE)

Desde dezembro passado várias centenas de migrantes já se empurravam na fronteira. Drones registraram grupos que chegaram a atravessar, como uma família venezuelana, 3,2 mil quilômetros por nove países, incluindo a perigosíssima floresta cerrada de Darién, na fronteira da Colômbia com o Panamá e que liga a América do Sul à Central. Acampamentos precários continuaram se espalhando e um incêndio em 30 de março deixou 39 mortos no Centro de Detenção de Imigrantes em Ciudad Juárez. Do lado americano, cidades como El Paso declararam estado de emergência.

No início deste mês, o caos tomou conta de vez da fronteira, pela iminência do 11 de maio, quando o Título 42 deixaria de vigorar. A suspensão foi determinada pelo presidente Joe Biden, em vista do fim da pandemia ter sido decretado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Teoria e prática

Ele havia costurado, de antemão, acordo com o colega mexicano López Obrador para que o vizinho recebesse migrantes da Venezuela, Nicarágua, Cuba e Haiti barrados pelos EUA. Biden quer a atualização do Título 8, que regulariza a imigração, mas por enquanto ao menos 35 mil pessoas que entregaram as NTAs (Note to Appear), primeiro passo para o pedido de asilo, aguardam meses por audiências que devem ser marcadas por juízes. O presidente já reclamava, em janeiro, dos republicanos que barraram no Congresso seu plano com US$ 3,5 bilhões em fundos para segurança de fronteira e contratação de mais 2 mil agentes e 100 juízes da imigração.

“O sistema de imigração dos EUA está quebrado”, diz Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. “É um problema que remonta ao presidente Dwight Eisenhower [1953-1961], quando dois milhões de pessoas foram deportadas com a Operação Costas Molhadas, uma referência pejorativa a mexicanos que atravessavam rios a nado para entrar nos EUA.” A última grande lei sobre o tema aprovada ainda é de 1986, sob Ronald Reagan, explica o professor, quando 3,5 milhões de imigrantes se viram deportados, com outros 3,5 milhões legalizados.

Segundo Rodrigo, Donald Trump deportou 2,8 milhões em 40 meses, enquanto Joe Biden quer atualizar o Título 8 (aprovado por Barack Obama, do qual Biden era vice), expandindo condições para solicitação de asilo. “Mas ele não conta com congressistas suficientes para implantar legislação migratória mais aberta. E o principal fator se chama Trump, que mantém a retórica anti-imigração extremamente agressiva. Esse discurso alimenta a população xenófoba, que acredita em empregos roubados e entrada de traficantes, que tem raiva e medo de imigrantes.”

ANNA MONEYMAKER

“Sei que [a imigração] é um tema complicado. Não quero fingir que seja fácil”
Joe Biden, presidente americano, em 5 de janeiro de 2023

A caminho das eleições presidenciais no ano que vem, Biden está sob dupla pressão. “Ele tinha prometido resolver o problema da imigração, derrubando decretos de Trump e regularizando milhões de ilegais em clara mensagem aos latinos, que já são 63 milhões ou quase um terço da população. Mas muitos americanos, mesmo democratas, se incomodam com essa postura mais progressista. Assim, parece mais discurso da parte dele, do que prática política. Porque uma coisa é falar que vai abrir fronteira e outra é abrir de fato.”

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Denise Mirás