Comportamento

Notre-Dame: de volta ao céu de Paris

Após quatro anos do incêndio que destruiu parte de Notre-Dame, a catedral começa a se reerguer graças ao projeto de restauração que já recuperou até a flecha de madeira de 96 metros, a partir de materiais e técnicas originais

Crédito: Ludovic Marin

Unidade nacional: população francesa aguarda a primeira aparição do símbolo maior da catedral (Crédito: Ludovic Marin)

Por Ana Mosquera

“A foto da semana”. Foi a mensagem divulgada pelo Rebâtir Notre-Dame de Paris, órgão público responsável pela restauração da famosa catedral na capital francesa. No registro, a recolocação da flecha de madeira, ponto mais alto da construção que pegou fogo em 15 de abril de 2019. Até o final do mês, a estrutura de 96 metros voltará à paisagem da cidade. “Será muito emocionante vê-la retornar ao céu parisiense”, afirma Robin Metral, historiador especialista em patrimônio arquitetônico e integrante do Cabinet RÉA. Ainda que leve mais um ano para a reabertura — a previsão é dezembro de 2024 —, sua reinserção marca o renascimento dessa igreja de importância histórica.

Notre-Dame é apontada como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco e, antes do incêndio, recebia 14 milhões de visitantes ao ano. A trajetória da catedral no coração da França, na Île de la Cité, às margens do Rio Sena, é marcada por acontecimentos da História Mundial. Foi ali que ocorreu a coroação de Napoleão Bonaparte, em 1804.

Foi o palco também da beatificação de Joana D’Arc, em 1909, e da coroação de Henrique VI, da Inglaterra, em 1431. “Notre-Dame ocupa um lugar especial no coração dos franceses. O espaço e o tempo lhe conferiram esse status”, conclui Metral.

Restauração com materiais originais: andaime de 600 toneladas e 100m de altura foi construído para possibilitar a inserção da cruz no topo da flecha (Crédito:Ludovic Marin)

À moda antiga

Construída entre 1163 e 1345, ao longo dos 860 anos de existência, Notre-Dame passou por uma série de reformas. A mais significativa aconteceu no século XIX, quando o arquiteto Eugène Viollet-le-Duc incluiu a imponente flecha no alto da construção gótica.

Feita de carvalho maciço originário de diversas regiões do país, inaugurou uma nova fase de Notre-Dame e do país, no período logo após a Revolução Francesa. “Com a passagem do tempo, essa flecha se tornou um marco histórico. São 150 anos. O prédio que queimou tem a intervenção de Le-Duc aderida ao seu corpo”, afirma Silvio Oksman, arquiteto e sócio do escritório Metrópole.

Reerguer a construção de 5.500m² e quase 100m de altura encontra mais desafios, porque o projeto prevê a utilização dos materiais e técnicas da construção original.

Para além do caráter emocional, a ideia de seguir os moldes tradicionais vem amparada pela Carta de Veneza, de 1964, tratado internacional para a preservação e o restauro de edifícios antigos.

“Esta carta exige especificamente a restauração de ‘monumentos históricos no último estado conhecido’, respeitando a ‘substância antiga’ e os ‘documentos autênticos’”, compartilha Metral.

O Estado

O concreto que se refere é o do século XIX. A proximidade do tempo e a extensa campanha de restauração feita à época fizeram com que os arquitetos pudessem contar com as plantas utilizadas pelo próprio Viollet-le-Duc.

A equipe também trabalhou com os orçamentos e documentos dos empreiteiros do período, como o carpinteiro Auguste Bellu, responsável pela instalação da estrutura, e Louis-Jacques Durand, que fez a cobertura de chumbo.

Assim, a nave principal, a flecha e outras peças puderam ser reconstituídas com 1.400 árvores de carvalho francês. De uma oficina montada na região de Lorraine, chegaram a Paris por meio de um barco que as transportou pelo Rio Sena.

Arquitetura gótica: inserida no século XIX, a flecha foi a última parte da construção a pegar fogo em 2019 (Crédito:Ludovic Marin)

Os mais místicos podem associar a tragédia à retirada da imagem dos 12 apóstolos da cobertura, mas o fato é que a causa do incêndio foi mesmo um curto-circuito — ou um cigarro mal apagado, não se sabe ao certo.

Ainda que 75% dos franceses sejam católicos, o monumento tem relevância para a população em geral. “A arquitetura é um objeto cultural que reflete na economia, na geografia e no espírito do tempo. Os templos ainda carregam um simbolismo muito forte. Claro que se prestam a uma função social, mas são a comunicação simbólica de uma visão de mundo”, ressalta Juca Pires, arquiteto especialista em restauro.

A série Notre Dame, Catedral em Chamas, da Netflix, inspirada no livro A Noite de Notre-Dame, reúne histórias reais de bombeiros parisienses e conta como suas vidas foram afetadas pelo fogo. Fora das telas, a igreja já foi palco de intervenções poéticas, concertos e casamentos — como o de Henrique IV com a Rainha Margot, em 1572. “NotreDame é pano de fundo de memórias para muita gente”, diz Metral.

Expostos à fumaça, os escurecidos vitrais passaram por nove mestres vidreiros até serem totalmente recuperados. Restauração das abóbadas da nave principal de Notre-Dame tem sido feita com carvalho original de diversas regiões francesas (Crédito:Divulgação)
(Divulgação)

Além da religião

Pires, que participou da reforma do Museu do Ipiranga e de igrejas barrocas pelo País, compara a superação da religião com um exemplo brasileiro. “A Catedral de Brasília, do Oscar Niemeyer, é o projeto criado por um ateu materialista. Quando se entra nela, porém, há um sentimento muito parecido com o que sentimos quando ingressamos em Notre-Dame. Essa impressão de transcendência, favorecida pela arte, está em ambas.”

Os locais de culto nos centros das cidades e aldeias integram uma dimensão importante para a cultura francesa, defende Metral. “Essas igrejas, algumas delas muito antigas, fazem parte da decoração quase da mesma forma que uma paisagem natural.” A queda do símbolo com o fogo, há quatro anos, foi tão comovente quanto se espera que seja a sua ascensão.

Um a um: oito mil tubos de 1973 são remontados após reparos (Crédito:Patrick Zachmann)