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A tragédia apocalíptica em Maceió: de quem é a culpa?

Irresponsabilidade castiga Maceió e causa o maior crime ambiental do mundo. Capital alagoana tem um quinto de sua área condenada por falta de controle do governo na mineração, como aconteceu em Mariana e Brumadinho. Mais de 60 mil pessoas são obrigadas a evacuarem cinco bairros e a briga da população por justiça virou braço de ferro por capital político

Crédito: Jonathan Lins

Protesto em Maceió contra a Braskem, que promete fechar todas as minas somente em 2025 (Crédito: Jonathan Lins )

Por Luiz Cesar Pimentel e Gabriela Rölke

RESUMO

• Minas de sal-gema da Braskem fazem região de Maceió entrar em colapso subterrâneo
• Cinco bairros estão definitivamente condenados como espaço habitacional
• População de quase um quinto da cidade é atingida por alertas de emergência
• Mineração começou há 40 anos e relação com os abalos é constatada desde 2019
• 60 mil pessoas foram obrigadas a abandonar a região em risco
• Braskem diz que 93% das indenizações de 17.828 imóveis atingidos haviam sido pagas até outubro
• Moradores dizem que indenizações são irrisórias e falam em abalo emocional
• Braskem parou extração em 2019, mas ainda não iniciou fechamento de 11 das 35 minas

 

Na tarde de quinta-feira, 29 de novembro, Vânio Farias Araújo foi obrigado por um oficial de Justiça a abandonar a marcenaria que mantinha no bairro Bebedouro, em Maceió. Era um dos 23 imóveis ainda habitados por aqueles que se recusaram a deixar o local nos últimos cinco anos, desde que a região cresceu em risco subterrâneo, por obra de uma das 35 minas que a petroquímica Braskem instalou na área.

No dia anterior a capital alagoana sofrera o quinto abalo sísmico no mês, e a Defesa Civil alertara risco máximo de colapso em cinco bairros, que somados equivalem a um quinto da cidade.

Foi decretado estado de emergência, e o maior desastre ambiental urbano em curso no mundo, em vez de ser tratado como tal, deu início a uma batalha de transferência de responsabilidade política, em que a empresa responsável lava as mãos e município, estado e governo federal não querem assumir devidos compromissos.

Durante 40 anos, entre 1979 e 2019, a mineradora extraiu sal-gema do subsolo da região onde ficava a oficina de Vânio. Levou recursos à esfera pública enquanto abria gigantescos alçapões subterrâneos – a cavidade na mina mais perigosa no momento, a 18, tem 82m de diâmetro, quando, pelo projeto original, poderia ter até 60m, e 120m de altura.

Por não aceitar oferta de indenização que considerou irrisória, o marceneiro revezava com o irmão a permanência no imóvel, para evitar a retirada compulsória, como aconteceu quando seus móveis foram levados a um apartamento alugado pela companhia, que conduziu os equipamentos de trabalho para um galpão próprio.

“Hoje estamos em contagem regressiva, ao menos para mim, que tenho 50 anos. As amizades que fiz foram todas perdidas. Aqui, nunca a gente precisou de porta na marcenaria, desde que eu nasci. A vizinhança protegia, não entrava nenhum desconhecido. Todo mundo se conhecia, todo mundo era amigo, todo mundo confiava em todo mundo, não tinha com o que se preocupar”, lamenta Vânio, obrigado a esperar as disputas política e financeira decidirem seu futuro.

(Eraldo Peres)

O destino de Vânio e de outras 60 mil pessoas que foram obrigadas a abandonar a região em risco depende da polarização em que se encontra o estado de Alagoas e os interesses de seus protagonistas políticos.

• De um lado está o prefeito da cidade, João Henrique Caldas (PL).
• Do outro, o governador Paulo Dantas (MDB).

Em julho, a petroquímica firmou acordo de reparação de R$ 1,7 bilhão com o município, o que vem gerando uma série de questionamentos porque, mediante o aporte bilionário, o Executivo municipal garante à Braskem a quitação “plena, geral, irrestrita, irrevogável e irretratável” de todos os danos “patrimoniais e extrapatrimoniais” decorrentes do evento geológico e da desocupação da área afetada – inclusive os que ainda não foram apurados ou mensurados.

A empresa também vai ter que indenizar o governo estadual. Em outubro, a partir de uma ação movida pela Procuradoria-Geral do Estado de Alagoas, a Braskem foi condenada a ressarcir o Executivo estadual pelos bens imóveis, equipamentos públicos e obras na região afetada, bem como pela perda de arrecadação tributária decorrente da evacuação forçada da população.

Os valores vão ser definidos apenas na liquidação da sentença – e quem vai pagar a perícia para essa verificação, a ser feita caso a caso, é a mineradora.

Quanto aos moradores da região, a Braskem diz que 93% das indenizações de 17.828 imóveis atingidos haviam sido pagas até outubro, o que soma R$ 4 bilhões. “Eu mandei avaliar todas as casas da minha família. A minha foi avaliada em R$ 438 mil. Depois de muita briga, a Braskem colocou a proposta de R$ 250 mil e com as indenizações ficou R$ 323 mil. Só que nas audiências, ela sempre apresentava a mesma proposta. Na primeira, na segunda, na terceira. Se eu não aceitasse, seria judicializado. Meu amigo, é de arrebentar o coração”, diz o autônomo Jackson Douglas Ferreira de Souza, outro ex-morador do local.

Abel Galindo: “Não se trata de desastre ambiental, mas de algo provocado pelo homem. É crime” (Crédito:Divulgação)

Entenda como se explora uma mina de sal-gema

Durante 40 anos, a mineradora explorou sal-gema do subsolo das áreas em Maceió à margem e abaixo da Lagoa Mundaú. Esse tipo de sal é utilizado na fabricação de cloro, soda cáustica, PVC (policloreto de vinil) e na indústria química.

A jazida foi mapeada pela Petrobras e 35 minas foram montadas na capital alagoana para extração do produto. Fosse uma mina marítima, seria necessária a construção de plataforma de extração, o que só vale a pena financeiramente no caso de petróleo.

Já o sal extraído no continente, sob as habitações, foi formando cavernas a pouco mais de mil metros de profundidade que os responsáveis contavam basicamente com a natureza para cuidar.

No processo, é injetada água pressurizada para dissolver e retirar o composto. Depois da extração, restavam espaços vazios, que só recentemente passaram a ser preenchidos com areia.

Corrosão silenciosa

“Não se trata de desastre ambiental”, diz o engenheiro geotécnico Abel Galindo, professor da Ufal e o primeiro a atribuir à Braskem a responsabilidade. “Estamos falando de crime ambiental. O que está ocorrendo é um fenômeno geológico antrópico, provocado pela ação do homem. Não é um fenômeno natural.”

Vânio Farias Araújo, em frente à marcenaria que tinha em Bebedouro: “Ficamos até nos tirarem, pois quem saiu não teve voz para negociar indenização” (Crédito:Jonathan Lins)

A maioria dos habitantes de Maceió sequer sabia a dimensão das obras subterrâneas. A preocupação das pessoas quando da instalação das minas era por vazamento de produtos tóxicos no ar.

Até 2002, quem cuidava da extração era a Salgema Indústrias Químicas, que foi incorporada pela Braskem naquele ano. A empresa tem como maiores acionistas a Novonor, antiga Odebrecht, que possui 38,3% do capital, e a Petrobras, com 36%.

Durante todo o período, o povo desconheceu as cavernas que vinham sendo formadas. O alerta soou em 3 de março de 2018, quando abalo sísmico de 2,7 graus na escala Richter foi sentido na cidade.

Desde então, a companhia recebeu 20 multas do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA), a última de R$ 72 milhões. Enquanto isso a terra cedia, em velocidade que multiplicou nos últimos dias – em comparação, o grau de afundamento mensal da região em 2021 era o mesmo que o constatado em uma hora do dia 29 recente.

Mais de 60 mil pessoas foram forçadas a vender seus imóveis à empresa por meio de acordos judiciais questionados até hoje.

Alessandra Cavalcante e Paulo Sérgio protestam em 2022; abalos cada vez mais frequentes desde 2018 (Crédito:Eraldo Peres)

“A culpa, primeiramente, é da Braskem, que executou tudo”, diz o engenheiro Galindo. “Mas o governo federal também tem responsabilidade. A fiscalização caberia ao Ministério das Minas e Energia, por meio da Agência Nacional de Mineração (ANM)”, explica.

“Mas o que a gente historicamente vem observando é uma relação de proximidade irresponsável entre mineradoras e governo, assim como ocorreu também em Mariana e Brumadinho.”
Abel Galindo, engenheiro geotécnico da Ufal

Ainda segundo o pesquisador, há cinco anos, cada perfuração da mineradora custava R$ 3 milhões. “A Braskem sempre foi predadora, e quanto mais sal tirava de cada buraco, melhor, né? E à irresponsabilidade e à ganância da empresa somou-se a negligência por parte da fiscalização”.

Jackson de Souza visita antiga residência todos os dias. “É de arrebentar o coração” (Crédito:Jonathan Lins)

Procurado pela reportagem, o Ministério de Minas e Energia transferiu a responsabilidade aos governos anteriores e informou que “instalou Sala de Situação para acompanhar de perto a crise, e está investindo na reestruturação da carreira dos servidores da ANM com foco na fiscalização, já que, na transição de governo, encontrou a agência totalmente desestruturada”.

“Estava lavando o meu carro quando aconteceu (o abalo de 2018). Não senti o tremor, porque estava segurando a lavadora de pressão, só vi a população correndo. Quando entrei em casa, vi minhas coisas quebradas. Inicialmente, ficamos sem resposta. Uns diziam que tinha sido dinamite na mina, outros que era uma coisa natural. Até a vinda do CPRM”, lembra Jackson.

Arthur Lira e o prefeito JHC: acordo de R$ 1,7 bi com Braskem quita danos futuros (Crédito:Divulgação)

O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) confirmou a relação do abalo com a mineração de sal-gema pela Braskem no ano seguinte, em 2019, e deu respostas a um problema enfrentado há décadas pelos bairros, que eram as rachaduras nas paredes e pisos, sempre associadas a falhas corriqueiras da construção, como alicerce mal feito, e nunca à atividade da mineradora.

O laudo dos especialistas do órgão federal deu o pontapé para o processo dos acordos, mas para Jackson deu início a um pesadelo. A maioria das famílias indenizadas não conseguiu se restabelecer no mesmo padrão residencial ou em bairros próximos.

Governador Paulo Dantas, entre Renan pai e Filho: grupo aponta “anistia” à mineradora (Crédito:Cristiano Mariz)

Os danos foram além da parte financeira. Abalaram psicologicamente as pessoas, e muitas mortes registradas pelos movimentos sociais que acompanham o caso são atribuídas ao afundamento.

“Eu particularmente não consigo me desligar daqui, é muito doloroso. A nossa luta não é monetária, é por justiça. Eles quase me enlouqueceram com as propostas irrisórias. E a Justiça não nos abraça, a realidade é essa. A gente vem tentando mostrar que está errado, que deveria ser de outra forma. A população deveria ser mais bem remanejada. E os órgãos que se dizem competentes maquiam. Quem dá apoio à população somos nós, os próprios afetados”, diz Jackson.

Braço de ferro

A batalha escalou para Brasília, onde os dois grupos alagoanos dominantes politicamente tentam capitalizar sobre a tragédia.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), toma o lado do prefeito de Maceió e reivindica assistência do governo federal na questão. “Solicitei aos órgãos responsáveis a viabilização de recursos e medida provisória que garantam à prefeitura condições de atendimento aos moradores atingidos e ações para combater o problema”, postou em rede social.
• Renan Calheiros (MDB-AL), aliado do governador alagoano, disse que o acordo firmado entre o município e a empresa foi uma “anistia à Braskem” e pediu abertura de CPI. Hoje à frente do Ministério dos Transportes, Renan Filho, que foi governador do estado entre 2015 e 2022, ecoa o pai: “Ninguém deve terceirizar essa responsabilidade, que é da mineradora”.

Pelos corredores da Braskem, predomina o otimismo. “Há sinais de que o cenário melhora a cada dia”, disse o presidente da empresa, Roberto Bischoff, em encontro anual da indústria química durante a semana. “Estamos comprometidos há mais de quatro anos em fazer esse trabalho sem colocar em risco as pessoas. Infelizmente entram situações políticas e distorcem informações”, disse.

Porém, relatório da ANM aponta que a petroquímica demorou quase dois anos para definir o fechamento da mina com areia, sendo que foi adiado porque começaria quatro dias antes da decretação de estado de emergência.

A Braskem parou a extração de sal-gema somente em 2019, mas ainda não iniciou fechamento de 11 das 35 minas. Além disso, em fevereiro deste ano a extração de areia para uso nas jazidas foi interrompida por suspeita de utilização de material de áreas de proteção ambiental pelas empresas contratadas para o serviço.

Foram instalados 73 dispositivos de GPS para monitorar o solo, que determinaram afundamento da área em até cinco centímetros por hora.

O processo diminuiu de velocidade e nada pode decretar se haverá colapso abrupto da área, com previsão de cratera da dimensão do Estádio do Maracanã, ou assentamento gradual. A avaliação pode levar meses ou anos.

Fato é que a região dos cinco bairros está definitivamente condenada como espaço habitacional. O Ministério Público Federal determinou que os imóveis devem ser demolidos para dar lugar a cobertura vegetal na região, para eventualmente virar parque ou área de lazer, sendo preservadas apenas as construções de interesse histórico e cultural.

“Esse lugar aqui é de dor”, diz Jackson à reportagem da IstoÉ durante visita ao bairro onde morava. Ele para em frente à casa dos pais e lamenta ao ver portas e janelas substituídas por tijolos. Plantas tomaram conta dos muros, das calçadas e dos telhados da vizinhança, e há invasão de ratos e de pontos terem sido transformados em cemitérios de animais.

“A minha família toda se desmembrou. Aqui a maioria era tudo parente. A gente não tinha esse negócio de bater na porta do vizinho, saía de casa, entrava na casa de um, comia na casa do outro e a gente vivia assim. Hoje não tem essa liberdade. Mas todo santo dia eu venho por aqui, paro nessa calçada, olho, choro, e vou embora.”

Mariana e Brumadinho abriram catástrofes

Nos últimos oito anos, o Brasil sofreu três desastres ambientais sem precedentes. Todos em função de obras de mineração, onde há zelo até excessivo com produção (extração) mas omissão com passivo do trabalho realizado.

Justamente após a segunda catástrofe, em 2019, a vigilância aumentou em Maceió e foi confirmada a relação de retirada de sal subterrâneo e abalos sísmicos na cidade.

O motivador foi o rompimento de barragem mineira em Brumadinho, quando 12 milhões de m³ de rejeitos mataram 272 pessoas. A empresa responsável era a Vale, que teve receita líquida de R$ 226,5 bilhões no ano passado.

Outro rompimento de barragem, na igualmente mineira Mariana, em 2015, lançou 62 milhões de m³ de rejeitos de minério de ferro em rios, solo, matou 19 pessoas, cobriu a cidade de Bento Rodrigues, distante 8km, e chegou até o Oceano Atlântico por via fluvial. Mineradora responsável era a Samarco, 17ª maior do País, que teve receita líquida de R$ 8,2 bilhões em 2022.

A tragédia em Brumadinho (Crédito:Leo Correa)
Especialistas apontam negligência do governo em fiscalizar áreas de mineração, como em Brumadinho (no alto) e Mariana (foto acima) (Crédito:Felipe Dana)

Colaborou Deborah Freire