O Brasil conseguirá destravar o Mercosul?
Impasse nas negociações do bloco sul-americano com a União Europeia testa a capacidade de Lula de ampliar sua projeção internacional no terceiro mandato
Por Marcos Strecker
Desde o início, o governo Lula desenhou um plano ambicioso para acelerar seu protagonismo internacional. E seriam vários palcos para essa estratégia: a presidência rotativa do Mercosul, a chefia provisória do Conselho de Segurança da ONU e a liderança do G20. Todos deveriam culminar com a COP30, o maior encontro ambiental, que ocorrerá em Belém (PA), em 2025. Com o primeiro ano de mandato quase encerrado, o balanço é amplamente positivo, mas há ressalvas. Uma delas foi o impasse no acordo de livre-comércio do bloco sul-americano com a União Europeia.
Um encontro de cúpula do Mercosul encerrou a presidência brasileira na última quinta-feira com o encontro dos chefes de Estado no Rio de Janeiro. A cereja do bolo, o acordo com os europeus, não se materializou. Em clima de esvaziamento, o evento estampou mais uma vez a dificuldade em conciliar interesses tão díspares entre dois dos maiores blocos econômicos mundiais.
Arrastando-se desde 1999, as negociações pareciam ter destravado em 2019, com a assinatura de um acordo provisório. Este ano, durante a presidência da Espanha no conselho da União Europeia e do Brasil no Mercosul, parecia ser uma grande oportunidade para a finalização.
Um primeiro tropeço aconteceu com a iniciativa europeia de ampliar as exigências ambientais no primeiro semestre. O argumento utilizado, ao impedir a importação pelos europeus de itens agropecuários originários de áreas desmatadas, apoiava-se no vale-tudo antiambiental na gestão Bolsonaro.
O governo Lula enxergou, com boa dose de razão, protecionismo disfarçado, em especial de países que temem a força do agronegócio brasileiro.
“Para os europeus, é sempre ganhar mais. E não somos mais colonizados. Somos independentes.”
Lula, presidente
O presidente francês, Emmanuel Macron, deu uma força para essa interpretação. Durante a COP28, em Dubai, ele se declarou contra o acordo. Disse que não leva em conta a biodiversidade e o clima.
Também presente nos Emirados Árabes Unidos, Lula aproveitou a deixa: “Se não houver acordo, pelo menos vai ficar patenteado de quem é a culpa”. É uma meia-verdade.
O governo Lula, cujo partido nunca foi entusiasta desse acordo de livre-comércio, aproveitou a confusão sobre a nova cláusula climática para protelar uma contraproposta.
Também exigiu uma proteção às empresas nacionais em compras governamentais.
Forças sindicais e movimentos sociais passaram a pressionar o governo, defendendo mais proteção à indústria brasileira.
O assessor especial da Presidência Celso Amorim retratou o humor oficial ao declarar ao jornal Valor Econômico que o acordo “nos oferece pouco em termos dos produtos do nosso interesses, e o que se exige é muito”.
Lula também cobrou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, questionando-a se os europeus “têm interesse ou não num acordo equilibrado”.
A frustração ficou patente na segunda-feira, 4, em Berlim, quando Lula e o chanceler alemão, Olaf Scholz, se reuniram em Berlim. O petista disse que “não vai desistir” do acordo enquanto não conversar com todos os presidentes e “ouvir um não de todos”.
Protocolar, o alemão afirmou: “Vamos fazer esforços adicionais para que esse acordo possa ser concluído”.
A parceria com os europeus vem sendo discutida há 23 anos.
“Mesmo em um Mercosul ampliado, com Bolívia e Venezuela, as duas economias que têm muito a ganhar mesmo são o Brasil e a Argentina, basicamente em função da carne e do agronegócio em geral”, diz Ricardo Rodil, economista da consultoria Crowe Macro.
O presidente do Uruguai, Lacalle Pou, já ameaçou deixar o bloco porque deseja um tratado de livre-comércio com a China. A Venezuela, por outro lado, que estava em processo de adesão, foi suspensa em 2016 pela “ruptura da ordem democrática” no país.
As chances de o Brasil selar o acordo já tinham praticamente se encerrado com a eleição de Javier Milei na Argentina. O novo presidente, que tomará posse neste domingo, 10, passou a campanha anunciando que tiraria seu país do grupo.
Eleito, moderou seu discurso e discretamente avisou o governo brasileiro que não se oporia ao tratado. Mas daí foi a vez do mandatário que se despede da Casa Rosada, Alberto Fernández, jogar uma pá de cal.
Em encontro prévio de ministros no Rio, o chanceler uruguaio, Omar Paganini, disse que a janela de oportunidade estava “cada vez mais limitada”. Foi até uma declaração otimista. Muitos acham que as chances de esse entendimento de livre-comércio ser ressuscitado são mínimas, para não dizer nulas.
Restou como prêmio de consolação a anunciada adesão da Bolívia ao Mercosul, e o acordo de livre-comércio com Cingapura, o primeiro a ser celebrado em mais de dez anos.
Sem a vitrine do Mercosul, o governo Lula volta-se para o G20. No dia 1º, o Brasil assumiu formalmente a presidência do grupo das 19 principais economias do mundo e mais a União Europeia e a União Africana. É a primeira vez que o País assume esse protagonismo.
Protagonismo
O governo anunciou que fará isso com três bandeiras centrais:
• o combate à fome, pobreza e desigualdade;
• o desenvolvimento sustentável,
• e a reforma da governança global.
Lula deseja usar esse órgão para defender uma mudança na governança global (ONU) e financeira (FMI, Banco Mundial), com o objetivo de dar mais voz e poder aos países em desenvolvimento. O encerramento será no encontro presidencial de novembro de 2024, no Rio.
Aí, Lula precisará lidar também com uma saia justa diplomática. Ele já anunciou que convidará Vladimir Putin, mas como o presidente russo tem uma ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional, corre o risco de ser preso. “Se Putin vier à reunião do G20 no Brasil, ele sabe o que pode acontecer”, afirmou Lula ao lado de Olaf Scholz. O enorme jogo de cintura do petista será testado mais uma vez em 2024.
Colaborou Denise Mirás