Brasil

Maduro vira problema para Lula

Ditador desafia Corte de Haia e inicia a anexação de parte da Guiana. Ao ameaçar um conflito armado, o venezuelano desafia a credibilidade do presidente brasileiro como líder regional e expõe sua proximidade com o inconfiável regime chavista

Crédito: Jhonn Zerpa

Nicolás Maduro com militares em setembro passado: crise artificial antes das eleições de 2024 (Crédito: Jhonn Zerpa)

Por Marcos Strecker

• Aventura populista de Maduro, ao reivindicar território da Guiana, pode respingar na liderança regional de Lula
• Amigo do ditador venezuelano, presidente já viu o colega convocar plebiscito, desafiando seu papel na estabilidade da região
• Em caso de guerra, conflito pode provocar envolvimento de EUA, China e Rússia

 

A advertência lançada pelo regime de Nicolás Maduro de iniciar um conflito com a Guiana já fez uma vítima diplomática: o presidente Lula. Não que exista risco concreto à integridade territorial brasileira, que faz fronteira com os dois países. Mas a ameaça de um confronto armado no quintal brasileiro enfraquece a posição do Brasil como líder regional e expõe a proximidade de Lula com a ditadura chavista, que se torna mais uma vez uma fonte de desestabilização na América Latina.

Enfraquecido por uma interminável crise econômica e cada vez mais impopular, Maduro resgatou uma disputa territorial que remonta ao século XIX com o país vizinho.

Ele determinou na última terça-feira, 5, que a Assembleia Nacional votasse uma lei criando um estado que compreende a região guiana de Essequibo e designou um general como autoridade única do território de 160 mil quilômetros quadrados.

A área, que representa dois terços da Guiana, antiga colônia britânica, deve ser integrada à Venezuela, segundo esse curso de ação. Para embasar a decisão, Caracas havia realizado um plebiscito no dia 3, em que 96% da população optou pelo sim em um plebiscito que teve 10,5 milhões de eleitores, cerca da metade dos aptos a votar.

O Exército do Brasil vai enviar 28 blindados para Roraima. O Ministro da Defesa, José Múcio, disse que o uso do território brasileiro pelos venezuelanos seria inaceitável (Crédito:Divulgação)
(Pedro Ladeira)

Esse resultado é controverso, já que o regime bolivariano é conhecido pela falta de transparência e manipulação em seus pleitos.

A avaliação internacional é que a reivindicação de Maduro não passa de uma clássica manobra populista para despertar uma causa nacionalista num momento em que o regime se mostra enfraquecido.

Ou seja, uma versão chavista da calamitosa Guerra das Malvinas empreendida pelo regime militar argentino ao invadir as ilhas Malvinas, em 1982. Na época, isso custou a vida de 650 argentinos e apressou a derrocada da ditadura.

A mera realização desse plebiscito já representou um problema para o governo Lula, pois desafiou a liderança natural brasileira na região. O protagonismo brasileiro funciona historicamente como força estabilizadora. Foi assim que até hoje se evitou qualquer ameaça concreta contra a própria ditadura da Venezuela.

Mas isso reforçou o regime de exceção, que levou ao colapso econômico do país e à crise humanitária com a fuga de venezuelanos, principalmente para o Brasil. Em cinco anos, cerca de 450 mil que cruzaram a fronteira em Roraima.

Maduro é próximo do presidente brasileiro. Ao defender o venezuelano, em junho, Lula disse que “o conceito de democracia é relativo”. Líderes do PT costumam prestigiar o regime chavista em Caracas, mesmo com as repetidas violações de direitos humanos.

O porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, disse que os EUA apoiam uma solução pacífica. Na quinta, anunciaram manobras militares conjuntas na Guiana (Crédito:Nathan Howard)

As ações de Maduro vão na contramão do discurso de integração na região, que é o mantra do Itamaraty. Enfrentar um conflito em sua própria região de influência promovido por um aliado próximo é um constrangimento óbvio para Lula. Testa sua capacidade de conter seus aliados.

Por isso, o petista foi rápido em tentar botar panos quentes na querela. Já conversou duas vezes com o presidente da Guiana, Irfaan Ali, e despachou o assessor especial da Presidência Celso Amorim para conversar com Maduro. Afirmou: “Só tem uma coisa que a América do Sul não está precisando agora: é de confusão. Se tem uma coisa que precisamos para crescer e melhorar a vida do nosso povo é a gente baixar o facho. Não ficar inventando história. Espero que o bom senso prevaleça do lado da Venezuela e do lado da Guiana”.

A declaração tenta apaziguar os ânimos, mas usa a falsa equivalência de tratar da mesma forma aquele que ameaça com o ameaçado.

Lula convocou uma reunião de emergência na quartafeira para tratar do tema, mas não condenou publicamente o regime chavista pela realização do plebiscito, que foi condenado pela Corte Internacional de Justiça de Haia.

Em 1º de novembro, o tribunal havia decidido que a Venezuela deve “se abster de qualquer ação que modifique a situação atualmente em vigor no território em disputa”.

O presidente da Guiana cobrou um gesto de Lula. “Esperamos que o Brasil tenha um papel de liderança em garantir que essa região se mantenha com paz e estabilidade”, declarou.

Também afirmou que já pediu garantias de defesa para os EUA e a França, além do Brasil, e que recorrerá ao Conselho de Segurança da ONU.

Mapa já incluindo a região de Essequibo à Venezuela é entregue à Assembleia Nacional, em Caracas. Ao lado, venezuelanos no pleito realizado no dia 3, quando 96% teriam referendado a anexação. Mas metade da população não compareceu (Crédito:Ariana Cubillos)
(Humberto Matheus/ Eyepix Group/NurPhot)

Bomba-relógio

Se Lula não conseguir desarmar essa bomba-relógio, há o risco de a crise escalar, especialmente se Maduro se sentir ameaçado nas eleições do próximo ano, que devem contar com acompanhamento internacional, segundo acordo fechado em Barbados em outubro passado.

Foi uma condição para os EUA retirarem as sanções sobre a indústria petrolífera do país, que está sucateada. Com as maiores reservas petrolíferas do mundo, a Venezuela extrai por dia 700 mil barris — eram 3,4 milhões antes de a estatal PDVSA ser sucateada.

Em sua decisão unilateral no dia 5, o venezuelano determinou que a companhia passasse a distribuir licenças para a exploração em Essequibo. Já a Guiana está se tornando uma potência petrolífera com a expansão da exploração na chamada margem equatorial. Essa zona marítima explica em parte a disputa.

Do ponto de vista militar, a disputa é antes de mais nada assimétrica.
• A Venezuela tem um poder bélico importante, com 125 mil militares na ativa e armamento moderno fornecido pela Rússia. É o sexto país que mais investe em armas no mundo.
• Já a Guiana, com uma população de 800 mil habitantes e poderio militar mais do que modesto (são apenas 4 mil militares na ativa), sugeriu que pode pedir apoio aos EUA.

O porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, disse que seu país apoia uma solução pacífica e que a disputa não pode ser resolvida por meio de um referendo. “EUA, eu aconselho, fiquem longe daqui. Deixem que a Guiana e a Venezuela resolvam este assunto em paz”, reagiu Maduro. Ele também prometeu “defender Essequibo” nas redes sociais.

O presidente da Guiana, Irfaan Ali, repudiou a ameaça de Maduro e disse que recorrerá ao Conselho de Segurança da ONU (Crédito:Divulgação)

Ainda que as chances de uma guerra sejam limitadas, não são desprezíveis. Os americanos anunciaram na última quinta-feira manobras militares na Guiana, com o envio de aviões que sobrevoarão a região de Essequibo e o resto do país.

Os dois países têm parceria militar desde 2002. Também enviou oficiais para auxiliar nos planos de defesa do país. Uma ação mais incisiva dos EUA, por outro lado, pode levar a Venezuela a recorrer a seus parceiros tradicionais: China e Rússia.

O Exército brasileiro, por seu lado, prepara o envio de 28 blindados a Pacaraima — Guarani, Cascavel, Guaicurus. Eles levarão pelos menos 21 dias para chegar a Roraima.

Além disso, até 150 homens serão incorporados à 1ª Brigada de Infantaria de Selva, que tem cerca de 5 mil homens. A posição brasileira é vital. A forma mais fácil de a Venezuela realizar uma incursão no país vizinho seria passar pelo território brasileiro.

Antes do acirramento das tensões, o ministro da Defesa, José Múcio, havia declarado que o eventual uso do território e do espaço aéreo do Brasil pelos venezuelanos seria inaceitável. Essa movimentação, até o momento, é meramente dissuasiva. Qualquer solução efetiva passa pela diplomacia.

Para consolidar seu protagonismo internacional, Lula precisará lidar com essa ameaça. Maduro acena com uma aventura militar para desviar a atenção dos problemas do seu regime. O Brasil já é atingido pela fuga dos refugiados. Não deve permitir que uma crise artificial resulte em uma nova tragédia.