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Humilhados e ofendidos: imigrantes ilegais vivem na pele o teatro xenófobo de Trump

Donald Trump prometeu, cumpre e vai além – na caça e expulsão a imigrantes ilegais nos EUA, promove um teatro populista algemando-os e acorrentando-os antes de despachá-los com requintes de crueldade

Crédito: GERARDO VIEYRA

O nível de insegurança entre os imigrantes é alto e já há até aplicativo avisando sobre blitzes (Crédito: GERARDO VIEYRA)

Por Luiz Cesar Pimentel

Em 1852, o economista alemão Karl Marx resumiu o golpe de Estado que Luis Napoleão Bonaparte havia dado quatro anos antes, para impor a ditadura na França e perpetuar o poder iniciado pelo tio famoso, numa frase lapidar: “A história se repete. A primeira vez como tragédia. A segunda, como farsa”. A citação poderia se referir ao segundo mandato do extremista republicano Donald Trump na presidência americana, onde faz questão de demonstrar que aplicará o radicalismo sempre que puder e a fraqueza do mundo — e sobretudo dos americanos — deixar. Só que o encaixe mais correto é na analogia de seus atos e referências com a gênese de um dos períodos mais deploráveis da humanidade.

Agente da imigração reforça a imobilização de detido em Silver Springs (Crédito:Alex Brandon)

Antes da Segunda Guerra, os alemães conduziram uma política severa de deportação de judeus nascidos no país. No Acordo de Haavara, expulsaram 60 mil para a Palestina, empurraram 20 mil para a chinesa Xangai e outras dezenas de milhares aos países vizinhos, sobretudo para a então Checoslováquia, França e Holanda. Dali até a invasão da União Soviética, em junho de 1941, as expulsões escalaram até que, no 20 de janeiro seguinte, Adolf Hitler pediu a infame “Solução Final” aos indesejados em seu antissemitismo.

O restante da história é conhecido: o plano de deportação de 11 milhões de pessoas e a criação de campos de extermínio, onde estimados seis milhões perderam as vidas. A tarefa coube a Adolf Eichmann, o operador do Holocausto, bem descrito pela filósofa Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém, quando acompanhou o julgamento e a sentença de morte daquele que descreveu como o exemplo da “banalidade do mal”.

No igual vigésimo dia do ano, mas 83 anos depois, em seu primeiro dia de volta à Casa Branca, Trump determinou a “solução” para o que considera seus problemas: a expulsão de iguais 11 milhões de imigrantes ilegais nos EUA, com estimados 230 mil brasileiros entre eles. A primeira ação de sua relação com o Brasil aconteceu quatro dias depois, quando acorrentou pelas cinturas e pés, algemou 88 desses e os despachou de volta para cá, em voo com relatos de violência comprovados em marcas nos corpos, privação de água, alimentos e, acima de tudo, falta da dignidade que deve separar o ser humano de todo o resto.

A repetição trágica não se resume ao recado xenófobo.
● Na cartilha trumpista de promessas de campanha está a expansão territorial americana, com intenção dolosa sobre Panamá, Groenlândia e Canadá.
● Basta uma consulta ao projeto do manual do nazismo, o hediondo livro Mein Kampf (Minha Luta; 100 anos neste 2025), para perceber as estratégias parelhas na xenofobia e na megalomania tosca da necessidade de aumento da dimensão nacional para abrigar a “grandeza alemã”, uma versão caricata, espécie de Make Germany Great Again.
● Ao partir para a prática, Hitler, o pior ser vivo da história da humanidade, deflagrou conflito onde morreram 85 milhões de pessoas.
● Que a história seja interrompida antes de repetida, por capricho que não cabe mais, pelo homem que o baralho da mediocridade colocou na cadeira mais poderosa do mundo, é tudo o que almeja a parte civilizada deste mesmo mundo.

(CHIP SOMODEVILLA)

A paridade de atos, objetivos e estratégias da abertura deste texto não representa a falácia lógica, bem cunhada pelo filósofo Leo Strauss, de “jogar a carta nazista” em um debate para encerrá-lo com argumento indefensável. O chefe do Departamento de Eficiência Governamental da nova presidência, uma das vozes mais altas do novo mandato, Elon Musk, decorou como um aluno mediano o seu discurso na posse de Trump com alguns sieg heil, a saudação nazista. Dias depois, participou de comício da legenda extremista Alternativa para a Alemanha (AfD), apoiada por neonazistas daquele país, e defendeu que os alemães deixem para trás as “culpas do passado” e “sigam em frente”, afirmando que a legenda é a melhor esperança para defender a “cultura e o povo”.

Neste mês, quem declarou apoio ao partido foi o ex-estrategista-chefe de Trump e dublê de lunático Steve Bannon, replicando os mesmos gestos com o braço direito estendido. Recados dados, recados entendidos.

Enquanto migrantes fazem fila para preencherem pedidos na Comissão de Refugiados em Naucalpan, no México (acima), Donald Trump foi participar de conferência republicana (Crédito:ALFREDO ESTRELLA)

Submissão nacional

Os 88 brasileiros que retornaram ao País no primeiro voo de expulsão sentiram na pele a aplicação da teoria trumpista.
● Decolaram algemados, acorrentados aos pés e cinturas, do estado da Virginia.
● Fizeram escala local na Lousiana, internacional no Panamá e, por conta de problemas técnicos, adiantaram o pouso no Brasil em Manaus, no Amazonas.
● O protocolo americano é de transporte com algemas, mas elas devem ser retiradas pelo menos 20 minutos antes da chegada na nação de destino.
● O Brasil pediu diplomaticamente, em 2021, que “os deportados não sejam submetidos ao uso de algemas e correntes, ressalvados os casos de extrema necessidade”.
● Claro como a lua branca. Além de não atender ao determinado nem ao solicitado, entre os deportados só houve relatos de maus-tratos, privações e violência por parte de oficiais americanos, como um recado cruel a quem quiser se aventurar indocumentado por lá.

Ao pousarem em Manaus, com problemas na aeronave, inclusive pane no ar condicionado, os passageiros usaram a porta de emergência da aeronave para pedir ajuda aos policiais federais. A mensagem chegou ao governo brasileiro, que destacou um avião da Força Aérea para conduzi-los a Belo Horizonte, onde chegaram às 21h10 do sábado (25), recepcionados pela ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo.

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ordenou que as algemas fossem retiradas, aos protestos de agentes da imigração dos EUA. Em uma escancarada agressão à soberania nacional, agentes americanos exigiam que os brasileiros que já estavam no interior do aeroporto, portanto em solo brasileiro, sob as leis do País, voltassem — acorrentados e algemados — para entrar em outro avião americano que viria. A autoridade da Polícia Federal e a firmeza do ministro da Justiça prevaleceram e os brasileiros foram direcionados a partir dali por aeronaves enviadas pelo governo.

Migrante caminha pelas barracas improvisadas como abrigo para expulsos na cidade mexicana fronteiriça Tijuana (Crédito:Gregory Bull)

“Tínhamos no voo famílias, crianças, algumas com autismo ou outro tipo de deficiência, que passaram por situações muito graves”, afirmou a ministra Evaristo, que planeja, diante da potencial repetição de expulsões, criar um posto de atendimento humanitário no aeroporto mineiro.

O senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, afirmou acompanhar “com preocupação” o tratamento dispensado pelas autoridades americanas. “A decisão por um novo procedimento na política de imigração, um direito assegurado a todos os países, não pode vendar os olhos diante de situações degradantes e denúncias de agressões e maus-tratos. O respeito à dignidade humana é um conceito consagrado em um mundo civilizado e democrático.”

Foi a primeira crise diplomática entre os dois países, e o Ministério das Relações Exteriores brasileiro emitiu nota rechaçando a forma como os brasileiros foram tratados, estopim da violação de acordo “que prevê tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados”.

O governo considera inaceitável que as condições acordadas não sejam respeitadas. Convocou o encarregado de negócios da embaixada americana em Brasília, Gabriel Escobar, no cargo há apenas uma semana, a prestar esclarecimentos.

“O uso de algemas é permitido, mas devem ser retiradas antes do desembarque no País. Há questionamentos sobre quando esse uso é efetivamente necessário. O Brasil solicita que o uso seja limitado a casos específicos. O governo americano deve continuar utilizando como forma de demonstrar postura rígida e implacável. O potencial de crise entre os países pode aumentar à medida que o número de voos cresça e não haja mudanças nos procedimentos”, analisa Denilde Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM. “A grande maioria das deportações ocorre apenas devido à ausência de documentação legal. O Brasil pode pouco ou nada impedir.”

No dia seguinte, o governo emitiu nota em que afirma não questionar a deportação, mas suas condições. “O Brasil concordou com a realização de voos de repatriação, a partir de 2018, para abreviar o tempo de permanência dos nacionais em centros de detenção americanos, por imigração irregular e sem possibilidade de recurso. (…) O uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos de acordo com os EUA, que prevê tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados.”

Patrulheiro captura homem que tentou entrar nos EUA por um vão no muro que separa México e EUA, que Trump quer ampliar (Crédito:Gregory Bull)

Durante os quatro anos do governo anterior, de Joe Biden, 7.168 brasileiros foram deportados, segundo dados do Departamento de Segurança Interna dos EUA.
● Foi o governo que mais expulsou imigrantes do Brasil, superando até a primeira passagem de Trump na presidência — percentualmente, representaram no total de deportados pelo democrata 1,3% do total contra 0,7% na anterior do republicano e 0,4% na de Barack Obama.
● As novas ações triplicaram já a média de detidos pelo país americano entre todas as nacionalidades.
● No domingo (26), 956 imigrantes foram presos, enquanto o índice médio em 2024 era de 311 por dia.

“Não há um número exato e confiável de brasileiros aguardando deportação. Isso é variável de fonte para fonte. O jornal LatinoAmérica21, que tem um trabalho de pesquisa bastante sério, menciona aproximadamente dez mil brasileiros deportados nos últimos quatro anos”, diz o advogado Gustavo Nicolau, especialista em direito migratório. “Sobre o procedimento de extradição e durante o voo, a prerrogativa é do governo americano. Óbvio que eles têm que respeitar tratados internacionais de direitos humanos, mas a diplomacia brasileira tem pouco a fazer a não ser o que fez: emitir notas oficiais e pedidos de explicação, que possivelmente serão respondidos com notas vagas.”

De acordo com o jornalista Jamil Chade, circula na rede de apoio para brasileiras residentes no país, a Brazilian Women’s Group, comunicado que dimensiona a preocupação com possíveis consequências aos imigrantes: “A primeira semana da administração Trump chega ao fim com saldo trágico: mais de 500 imigrantes arrebanhados no trabalho, dezenas colocados em avião do exército para serem deportados, crianças com medo de ir à escola, mulheres aterrorizadas de saírem de casa, homens e mulheres doentes mas sem coragem de procurar tratamento médico. Medo e pânico se instalaram em nossas comunidades”.

Prossegue com orientações para prevenção, com sugestões como evitar isolamento, não disseminar desinformação nem pânico e manter o orgulho, pois “não ter status imigratório não é crime”. “Não somos criminosos. Somos trabalhadores que contribuem para fortalecer e enriquecer econômica e culturalmente comunidades onde vivemos”, finaliza o comunicado. Brasileiros e outros imigrantes evitam sair de casa. Em partes do EUA, criaram aplicativos para alertar sobre blitzes na rua, a exemplo do que ocorreu no Brasil no caso da Lei Seca.

Pelo mundo

As reações internacionais começaram com uma batalha particular contra a Colômbia, pois o presidente Gustavo Petro afirmou que não recepcionaria os aviões com deportados. Trump lançou uma carta econômica, dizendo que, se mantivesse a recusa, produtos colombianos seriam taxados em 25% em valor progressivo até atingir 50%. Pelas redes sociais, o ex-preso político mandatário colombiano, sujeito reconhecidamente culto, refinado, após dizer que não é exatamente um apaixonado pelo território americano e citar coisas distantes da compreensão de Trump, entre elas o espetacular poeta americano Walt Whitman, rebateu: “Resisti à tortura. Resistirei a você”. Mais tarde, a diplomacia soltou uma nota dizendo que “o impasse com o governo americano havia sido superado”, com o aceite da Colômbia, ao que Trump suspendeu a ameaça financeira mas manteve a restrição à emissão de vistos para colombianos e comemorou a vitória: “os eventos de hoje deixaram claro para o mundo que a América voltou a ser respeitada”. Chicote para abafar a delicadeza.

Outro país que manifestou repúdio foi Honduras. A presidente Xiomara Castro de Zelaya afirmou que os países-membros da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) tratarão do tema em assembleia extraordinária urgente. A mandatária hondurenha disse que se o governo americano prosseguir com as hostilidades irá considerar o fechamento de bases militares dos EUA instaladas no país.

Não satisfeito com o bullying regional, Trump provocou revolta no Oriente Médio ao dizer que o Egito e a Jordânia deveriam receber palestinos de Gaza, descrevendo o local como “cenário de demolição”. E voltou a citar a cifra milionária de pessoas que espera ver realocada para os dois países, só que líderes palestinos, como o presidente Mahmoud Abbas, rechaçaram a ideia, assim como a população, por afirmarem estar alinhada à extrema-direita israelense, que almeja ver a máxima quantidade de palestinos em outros territórios. “Essa terra é nossa e propriedade de nossos ancestrais. Não a deixaremos, exceto como cadáveres”, disse um cidadão.

A Jordânia, que abriga quase 2,5 milhões de refugiados palestinos, também é contra a ideia, ainda mais em momento de cessar-fogo em Gaza depois de 15 meses de conflito.

“Resisti à tortura e resistirei a você (Trump)”
Gustavo Petro, presidente colombiano em resposta às ameaças de sanções econômicas a quem não cooperar

Aprovação local

Se no cenário internacional Trump é visto como pária na maioria dos lugares civilizados, nos EUA suas medidas contam com aprovação da população.
Pesquisa realizada pela Reuters/Ipsos sobre os primeiros dias do presidente mostra aprovação de 47% sobre suas ações, um percentual superior ao que teve na maior parte de seu primeiro mandato, entre 2017 e 2021.
● Mesmo que 58% não sejam favoráveis à anistia aos condenados na invasão do Capitólio, metade dos norte-americanos apoiam suas medidas em relação à imigração — 46% estão com Trump nas medidas tomadas e 58% acham que os Estados Unidos devem “reduzir drasticamente o número de migrantes autorizados a pedir asilo na fronteira”.
● Ele também assinou decretos para tentar restringir a cidadania de crianças nascidas em solo americano. Apenas um lado da situação é visto. Os 11 milhões de imigrantes ilegais, que são tidos e tratados como criminosos, não representam um quarto do total de cidadãos que não nasceram nos EUA mas que moram e fortalecem a economia local.
● A grande maioria, 77%, se encontra no país legalmente, sendo que 49% são cidadãos norte-americanos naturalizados, 24% são residentes permanentes legais, 4% são moradores temporários e os não autorizados somam 23%.

Como força de trabalho, os imigrantes desempenham papel decisivo na economia.
● Embora sejam 14% da população, representam 17% do total de trabalhadores ativos, sendo que em setores como agricultura somam quase 70% dos atuantes, e entre auxiliares de saúde, 28%.
● Entre empreendedores e no setor de inovação, aqueles que não nasceram nos EUA formam contingente de 23%, especialmente na tecnologia e engenharia.
● Os números representam cerca de US$ 600 bilhões (R$ 3,5 trilhões) sobre as receitas locais, estaduais e federais em impostos, com projeção de ganho nominal de US$ 9 trilhões para o PIB americano nos próximos 10 anos.

“O protecionismo prometido pelos EUA gerará reações que limitarão o comércio recíproco com vários países, abrindo espaço para novos acordos. Acredito que o melhor modo de se preparar para isso é aproveitar as oportunidades, incluindo a forte atuação no equilíbrio fiscal, fortes investimentos em infraestrutura e logística e melhorando as condições jurídicas e de competitividade da indústria brasileira”, diz Fabio Ongaro, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Câmara Italiana do Comércio de São Paulo. “Entendo que possa ter um eventual impacto econômico só se o número dos deportados na soma final for muito grande e interfira na oferta de trabalho nos Estados Unidos.”

(CHIP SOMODEVILLA)

“O que acontece é a maior vulnerabilidade de segurança nacional que já vi em meus 35 anos de carreira. Teremos a maior deportação que este país já viu. E não vou me desculpar por isso”
Tom Homan, agente conhecido como ‘czar da fronteira’

Na sanha xenófoba trumpista, o presidente ignora a própria herança, já que os documentos estadunidenses familiares não possuem passado muito grande. Seu avô paterno desembarcou nos EUA no final do século 19, aos 16 anos, como menor desacompanhado e sem saber falar inglês. Casou-se mais tarde com outra imigrante alemã, nascida na mesma cidade, na Baviera. Já a mãe do presidente era escocesa, chegou ao país em 1930 igualmente como imigrante, US$ 50 no bolso e o desejo de ficar. Se fosse hoje, ambos estariam na lista de expulsão. E se fosse pela regra de cidadania que quer impor, Trump não seria cidadão americano. Na distância planetária que separa Petro de Trump, haveria mais o que dizer — mas talvez seja melhor deixar para lá.