A justiça versus Trump
Por Antonio Carlos Prado
O afã é característica de todo autocrata. Não o afã por um trabalho irretorquível e perfeito, mas, isso sim, o afã afobação, feito de açodamento para o quanto antes as suas propostas poderem vigorar. Com Donald Trump, quadragésimo sétimo presidente dos EUA, dá-se o mesmo fenômeno. Recém-empossado e ávido por demonstrar irrestrita autoridade, ele assinou nada menos que duzentos decretos em seus primeiros momentos nessa segunda passagem pela Casa Branca. O polímata Benjamin Franklin, considerado um dos “pais dos EUA”, assim traduzia a serenidade: “aconselha-te com o vinho, mas decida com a água”. Pode-se afirmar que esse segundo mandato de Donald Trump é vinho da pior qualidade dissolvido em água estragada, e não será o passeio que ele e a maioria dos conservadores nutriam com expectativas absolutistas. Em uma linguagem pouco elegante, mas, até fina demais, diante do grotesco linguajar do republicano, não é exagero dizer que Trump já obteve uma primeira resposta da realidade a quebrar-lhe a cara. Ele julga que as leis têm de obedecê-lo e não o contrário, assim como todos os ditadores ao sonharem que (e aqui lançamos mão de um inteligente elemento do nosso folclore) os “galos acordam mais cedo e cantam somente para eles”. O afã de Trump o levou a mexer e remexer em leis. Repita-se: quebrou-lhe a cara! Em seu desprezo e repulsa em relação a imigrantes, sejam eles legais ou ilegais, Trump desrespeitou a tradição norte-americana sobre cidadania e, mais que isso, deu a si o direito de tentar alterar a 14ª Emenda da Constituição do país — que é cláusula pétrea. Ela foi adotada em 1868 e trata-se de um dos mais vitais dispositivos, justamente por assegurar democrática isonomia. A 14ª Emenda abraça, dessa forma, o princípio do jus soli. Ou seja: uma pessoa poderá ter a sua nacionalidade definida tomando-se como base o local de nascimento. Exemplo: o filho de um imigrante, legal ou ilegal, nascido nos EUA, tem a plena liberdade de optar por ser um cidadão norte-americano. Esse é o ponto que coloca Trump em pânico porque dá aos filhos de imigrantes a cobertura de todas as garantias constitucionais: de repente, um negro é igual a um loiro de olhos claros? Trump e seus seguidores na criminosa e isolacionista filosofia da supremacia branca defendem tese oposta, intitulada jus sanguinis: a cidadania a uma criança deve ser concedida, obrigatoriamente, a partir da nacionalidade dos pais. Nada muito diferente da teoria da raça pura que Adolf Hitler defendeu certo dia e mergulhou o mundo na Segunda Guerra. Para Trump fazer a alteração que deseja é necessário revogar o irrevogável: a 14ª Emenda. Pouca gente no mundo notou, mas Donald Trump começou o seu mandato tentando dar um golpe constitucional. Como já dissemos duas vezes, e agora dizemos pela terceira, Donald Trump quebrou a cara ao imaginar que ninguém estaria atento a firulas jurídicas e constitucionais. É nesse ponto, no de impedir que imigrantes e filhos de imigrantes se tornem norte-americanos, que residem táticas e estratégias de sua bárbara política de supremacia branca. Bem sabedor de tudo isso é o juiz John Coughenour, da cidade de Seattle, no estado de Washington e uma das maiores da costa Oeste dos EUA. Atendendo ao pedido de estados democratas, ele bloqueou o decreto de Trump por alguns dias — siga bloqueado ou caia a decisão de Coughenour, caberão muitos recursos pela frente até que o ato do presidente possa, de fato, começar a vigorar. Aos procuradores que correram defender a esdrúxula e extravagante tese da Casa Branca, Coughenour simplesmente respondeu: “tenho dificuldades em entender como aceitam um ato que tanto fere a Constituição norte-americana”. E fere, igualmente, aquilo que é uma verdadeira e única oração a todos os democratas da nação: os versos da poeta Emma Lazarus (1849-1887), gravados aos pés do maior símbolo de acolhimento e pertencimento em todo o mundo: a Estátua da Liberdade. Dizem eles: “dai-me os vossos cansados, dai-me os vossos pobres, as vossas massas encurraladas ansiosas por respirar ares livres”.