Comportamento

“A gente não trabalha pensando em prêmio”, diz a tradutora Rosa Freire d’Aguiar

Crédito: Daniel Bianchini

Rosa Freire d’ Aguiar: a excelência em traduções e reportagens (Crédito: Daniel Bianchini)

Por Ludmila Azevedo

O nome de Rosa Freire d’Aguiar é frequentemente associado ao seu trabalho de excelência como tradutora. Entre os prêmios que recebeu por suas traduções estão o da União Latina de Tradução Científica e Técnica por O universo, os deuses, os homens, de Jean-Pierre Vernant; o Jabuti por A elegância do ouriço, de Muriel Barbery; e o Biblioteca Nacional por Bússola, de Mathias Enard. Ao lado de Mario Sérgio Conti, ela trabalha na tradução de À Procura do Tempo Perdido, do romancista francês Marcel Proust. Mas Rosa, nascida no Rio de Janeiro, tem uma carreira brilhante no jornalismo. Nos anos 1970 e 1980, foi correspondente em Paris das revistas Manchete e IstoÉ. A temporada inspirou o livro Sempre Paris: Crônica de uma cidade, seus escritores e artistas, grande vencedor do Prêmio Jabuti de 2024.

Sempre Paris venceu a categoria Crônicas e Livro do Ano 2024 pelo Prêmio Jabuti. Como recebeu os prêmios?
Foi uma surpresa imensa. Quer dizer, no da categoria Crônicas, embora eu ache que seja um livro mais jornalístico do que crônicas, eu já estava entre cinco finalistas. Então eu pensei: na pior das hipóteses, serei a quinta, né? Estava valendo. Aí foi engraçado porque eu estava lá, naquele auditório bonito do Niemeyer, do Ibirapuera, e chamaram o meu nome! Eu fiquei toda contente, fui lá, peguei o Jabutizinho que é de latão, meio verdinho. Saí para ir fazer uma foto oficial para a Câmara do Livro com a minha editora, a Camila Berto. Demos aquela volta imensa e, depois, voltamos para o nosso lugar e eu toda feliz com o meu Jabuti. Quando a gente chegou, estava a apresentadora anunciando o Livro do Ano. Eu confesso que eu nem sabia que existia o Livro do Ano. Apareceram na tela aquelas 15 capas dos livros que estavam concorrendo. Eu vi que o meu estava lá. Aí ela pegou o envelope e anunciou. Tem um clima assim de ‘the winner is’, sabe? Uma coisa meio Oscar e ela disse Sempre Paris. E eu: uau! Foi uma surpresa imensa, eu não imaginava. Mas é uma alegria porque é o livro mais votado. Pelo que entendi, os jurados de cada categoria votam num livro que é o Livro do Ano e eu fui que tive mais notas, que é uma alegria imensa saber que você teve gente que faz parte do júri de poesia, gostou do livro e votou nele. A gente não trabalha pensando em prêmio, eu particularmente não, mas na hora que vem você fica muito contente porque é uma espécie de reconhecimento.

O reconhecimento não é novidade para você, que é das nossas maiores tradutoras, premiada inclusive. Há uma diferença entre esses prêmios?
Claro que existe. Esses dois Jabutis são de um livro meu e, basicamente, é um livro de jornalista, um prêmio para jornalismo porque ele é jornalismo da primeira até a última página. É mais do que um livro que fiz, é um livro que vivi, não só aquelas entrevistas que estão ali. Mostra como eu fui para a França, como eu trabalhei e como eu recuperei algumas coberturas que eu tinha feito nos meus anos de jornalismo. Os outros (tradução) não. Eles são, na verdade, uma espécie de bom manejo de quem passa de uma língua para outra. Eu tenho um bom manejo, digamos, que foi premiado, mas não é uma criação… se bem que eu concordo com você, a tradução é também uma forma de recriação, mas tem o autor atrás. Na hora que você vai comprar o Balzac na livraria, você não está comprando um livro meu, você está comprando o Balzac. Neste livro, não, sou eu a menor dúvida.

“Celso, meu marido, foi convidado para assumir como ministro da Cultura. Era difícil continuar (no jornalismo)” (Crédito:Divulgação)

Em Sempre Paris, você apresenta a Rosa de vinte e poucos anos, que chega numa capital efervescente, deixando uma América Latina que vivia ditaduras. Une acontecimentos políticos, culturais. Suas entrevistas mostram também uma produção intelectual jornalística. Como foi a costura do livro?
Aconteceu naturalmente. Passei a pandemia na França e o confinamento lá foi muito duro, pelo menos o primeiro deles, antes da vacina. Eu estava até traduzindo em casa, era bastante trabalho, mas sempre sobrava tempo porque não saía. Nesse tempo que sobrou, encontrei uma caixa de papelão. Dei uma lida no material, que eram entrevistas que eu tinha feito 35-30 anos antes. Descartei algumas, mas em outras achei que certa atualidade. Tive que digitar porque era tudo pré-computador, máquina de escrever. Aí eu pedi para um sobrinho meu que morava em Portugal para me ajudar. A gente digitou tudo, eu refiz algumas aberturas para situar, até porque eu tinha feito essas conversas pelo menos 30 anos antes. Mandei para a editora, mas naquela “de boa, tem isso, se vocês se interessarem, muito bem”. Meu editor, Otávio Marques, me escreveu em caixa alta: “maravilha”.

E aí?
Fiquei maravilhada e ele sugeriu que eu tentasse fazer um texto relembrando aquela época (Rosa foi correspondente de IstoÉ na França). E você sabe que naquela época a revista demorava a chegar na França, mas chegava toda semana. Quando voltei para o Brasil no final de 2022, peguei os recortes que a minha mãe tinha guardado e que tinham esses detalhes. É engraçado, você cutuca a memória e vem tudo. Fechei o projeto e fluiu normalmente. Na verdade, a parte mais ativa da minha vida, mais dinâmica, foi o jornalismo. Quando Celso (Furtado), meu marido, foi convidado para assumir como ministro da Cultura (1982), fui para Brasília e era difícil de continuar. Aí comecei as traduções, comecei outra vida. Mas a gente que é jornalista nunca deixa de ser. Eu acho que o olhar jornalístico, sobretudo no exterior, é importante, é o olhar do correspondente brasileiro sobre o fato e, se você recorre a uma agência de notícias, é o olhar do jornalista daquele lugar, não o seu. A gente sabe o que está acontecendo aqui, o que repercute. Foi um bom momento do jornalismo no exterior. Nós chegamos a ser, em Paris, uns doze, tinha correspondentes dos grandes jornais e revistas.

É simbólico esse Jabuti de Livro do Ano num contexto em que o jornalismo, não digo apenas no Brasil, vem sofrendo ataques de contrainformação, as chamadas fake news, e a própria figura do jornalista vem sendo atacada em virtude dessa polarização política global. Ler o seu livro é se encontrar com aquele ideal da profissão.
Eu fico muito feliz porque eu acho que este é basicamente um livro de uma jornalista sobre jornalismo. Às vezes eu conto umas historinhas que ficam com uma cara de crônica, porque já passou muito tempo e tal, mas é basicamente um livro dos anos de jornalismo de uma geração e a gente era um grupo e era um clima muito bacana. A gente conversava muito. Por exemplo, iria chegar um ministro em Paris, eu não sabia que o Delfim iria estar lá e o Reali Júnior (correspondente de O Estado de S. Paulo) ligava para a gente. Tinha uma solidariedade, era mais do que uma amizade entre nós. Isso foi muito forte e eu acho que essa colaboração nunca fez mal a ninguém. Tem uma história engraçada, quando o Aiatolá Khomeini foi exilado na França e o Irã ainda estava no regime do Xá, que era o do Pahlavi, ele começou a dar entrevista a 40 quilômetros de Paris. Eu fui com o Pedro Cavalcanti, que era o correspondente da Veja. Ele não tinha carro e eu propus de irmos juntos. Ele fez as perguntas dele, eu fiz as minhas. Algumas eram meio parecidas. A gente se dividiu depois e cada um ficou com a sua entrevista. A gente se ajudava muito. Claro que quando tinha alguma matéria que era um furo, cada um fazia a sua.

Como o contato com grandes escritores ajudaria a moldar sua formação?
Nunca estudei Letras. A literatura era algo que vinha de família. Meus pais liam muitos livros e jornais. Faço uma referência sobre uma pessoa que me abriu o caminho para saber quem é um escritor, como ele cria, com uma entrevista que fiz no Brasil, antes de ir para a França, com o Érico Veríssimo. Era meu primeiro ano na revista Manchete e me mandaram para Porto Alegre. Fui toda contente com meu gravador, uma lista de perguntas, li as obras dele e tal. Chego lá e pego meu gravador grande, coloco em cima da mesa, o Érico olha o gravador e diz: gravador, não. Eu não gosto de gravador. Pensei: me ferrei e agora? Então, ele foi de uma simpatia imensa e propôs: olha, fiz o seguinte: você pode ir toda noite para a minha casa e eu vou respondendo o questionário e você vai tomando nota. Fui dez dias na casa do Érico, após o jantar, e a gente conversava muito. Eu escrevia, mas é claro que nunca era o mesmo. No final, no dia em que eu iria embora, a gente foi fazer umas fotos, estava chegando toda a família e o fotógrafo se fartou de fazer fotos. Foi quando o Érico me chamou e me deu um envelope com todas as respostas escritas à mão, foi outra emoção, tinha umas 30 páginas com a letrinha dele, ótima. Aí a gente foi comparar o que ele anotou e o que escrevi. Era basicamente o mesmo, só que elaborou melhor, evidentemente. Sempre colocava a questão política para os escritores que entrevistava, muito pela época (anos 1970). Quando reli as entrevistas, percebi que todas têm a coisa política por trás, o que é natural, porque era o momento em que a gente estava vivendo. Talvez eu tenha me interessado menos pelo lado literário das obras, dos autores que entrevistei, do que pela atuação deles no mundo, intelectualmente, como eles se comportavam, como eles escreviam. Continua a ser para mim um mistério, como o personagem é criado. É uma tribo curiosa essa dos escritores, dos romancistas. Eu sempre gostei muito de conversar com eles.

“A entrevista com Cortázar que está em Sempre Paris, por exemplo, é muito pouco literária, é muito mais política” (Crédito:Divulgação)

A tradução é uma maneira de conversar com eles, não?
Você tem toda a razão. Porque, no fundo, é um diálogo. Eu posso fazer uma espécie de pacto, eu chego e digo: “olha, eu vou ler bem a sua obra, eu vou ler livros sobre você, vou tentar entender bem o que você quer dizer, e eu prometo fazer o que eu achar melhor. Mas você também promete me ajudar, de certa forma”. Quando você começa a traduzir um autor, ele te remete a vários outros livros. Eu traduzi muito o Balzac, ele é a minha paixão. Eu gostaria muito de entrevistar o Balzac. O Proust, não sei, acho que não. Mas o Balzac deveria ser uma pessoa interessante. Aí eu comecei a ler por curiosidade, porque tinha aquela coisa da palavra precisa, ele fazia uns glossários. Havia uma história que ele contava sobre sua mãe, cuja costureira vivia na casa de sua família. Provavelmente, ele era garoto, mas ia anotando as palavras sobre corte e costura. Tem um livro dele, que é A Mulher de 30 Anos, que eu também traduzi, e ele parece um costureiro, ele sabe sobre todos os detalhes da costura. Não sei como, ele sabe tudo e por causa dele fui ler muitas obras do século 19 na França, mas coisas que não tinham nada a ver, como eram os transportes, que tipo de carruagem ou de coxa, enfim, vários tipos que tinha, as coisas da costura, na época era tudo feito à mão. Você começa a se interessar, e isso eu acho que é das grandes riquezas da tradução, como também a gente faz de jornalista. Você vai fazer uma entrevista e começa a ler coisas paralelas, até você situar a pessoa. A entrevista com Cortázar que está no livro, por exemplo, é muito pouco literária, é muito mais política. O que me interessa é ver como eles estão no mundo, como eles agem, como eles criam, isso é o que mais me interessa.

Você tem uma conta no Instagram que revela um número curioso.
Na pandemia, quando tinha um tempo sobrando e já não aguentava mais ficar trabalhando, um amigo também confinado sugeriu que eu criasse uma conta. Na hora de me apresentar, ele disse que eu havia traduzido mais ou menos 150 livros. É muita coisa. Um cálculo de quanto dava mais ou menos cada livro, aí calculei aqueles 50 mil.

Com quais projetos você está trabalhando atualmente?
O projeto do Marcel Proust continua (a tradução de À Procura do Tempo Perdido, com sete volumes). Era do Mário Sérgio Conti e eu entrei. Nós lançamos os volumes 1 e 2. Cada um faz e assina o seu. Ele traduziu o primeiro e eu o segundo. Ele está no terceiro e eu acabei o quarto. Na Companhia das Letras tem sempre muita coisa para traduzir. Neste momento estou tentando pôr ordem num livro sobre o Celso durante a Segunda Guerra Mundial. Ele foi para a guerra e na volta escreveu uns contos. Estou lendo esse material, que também tem correspondências. O Celso escrevia muitas cartas durante a guerra para os pais, para os irmãos e a mãe guardou essas cartas. Então, estou com este material aqui em casa. Em maio fará 80 anos do final da guerra. Então, a ideia seria mais ou menos lançar por aí.