Governo analógico: como Lula quer evitar mais derrotas e virar a guerra da comunicação
Por Vasconcelo Quadros
RESUMO
● Presidente reclamava de erros na comunicação do governo desde o final de 2024
● Mas o estopim da crise que o levou a trocar o ministro da pasta foi uma grande derrota para um deputado da direita
● Com acesso a modernas tecnologias digitais, desnudou-se os falhos e ultrapassados métodos de divulgação dos atos do Planalto
Lula deu o ponta pé inicial da fase mais decisiva de seu terceiro mandato mergulhado em dificuldades de comunicação que colocaram ladeira abaixo a imagem e a popularidade do governo. São dois os cenários.
● No mais crítico, a população sabe mais sobre os erros do que sobre os acertos da gestão de Lula 3, o que significa que se ele não conseguir se comunicar num mundo que prioriza o digital e as redes sociais, dificilmente sairá do atoleiro. Essa hipótese abriria uma longa avenida para um eventual retorno da direita ao poder.
● Por outro lado, o que é bom para Lula, é que as eleições presidenciais ainda estão distantes, o governo esboça reação para controlar a crise agravada pelo estrago provocado pelo medo da população de que as operações via Pix fossem taxadas, fragilidade amplamente explorada pela extrema direita.
Na primeira reunião ministerial do ano, na Granja do Torto, em Brasília, na segunda-feira, 20, um Lula realista deu carta branca para o marqueteiro Sidônio Palmeira, o novo ministro da Secretaria de Comunicação (Secom), agir e ajustar a linguagem e toda estratégia da comunicação dos próximos dois anos.
Para surpresa de interlocutores com os quais travou conversas paralelas à pauta do encontro, Lula comentou que ainda não sabe se será candidato à reeleição, decisão que condicionou a seu estado de saúde daqui a dois anos e, sabe-se lá por que razão, a Deus.
O presidente demonstra boa recuperação depois das cirurgias para corrigir o trauma na cabeça provocado pela queda no banheiro do Palácio da Alvorada, em novembro e, pelo menos até onde os médicos diagnosticaram, não há sinais de que possa ter sequelas. Mas é a primeira vez que admite a hipótese de não sair candidato, numa fala vista nos bastidores mais como um balão de ensaio para medir a temperatura política do que um problema de comunicação para seu marqueteiro.
O presidente sublinhou que caso não seja ele o candidato, quer eleger o sucessor para não entregar o país de volta ao “neonazismo” que, segundo diz, está em plena campanha: “2026 já começou. Não por nós, porque temos que trabalhar, capinar, tirar todos os carrapichos, mas pelos adversários”.
Lula sempre soube usar a comunicação para virar o jogo a seu favor. Fez assim quando, por muito pouco, não teve de enfrentar um impeachment em 2005, mas parece ter esquecido que o mundo está na era digital, enquanto seu governo atua no modo analógico.
Na semana passada, o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) estragou a estreia de Sidônio ao disparar pelas redes sociais um vídeo de conteúdo maldoso, em que não apresentava nenhuma evidência, mas levantava dúvidas sobre as intenções do governo com uma portaria editada pela Receita Federal para monitorar movimentações via Pix acima de R$ 5 mil para pessoas físicas e acima de R$ 15 mil para as pessoas jurídicas (empresas de um modo geral).
O vídeo foi visto por cerca de 300 milhões de pessoas, cerca de 80 milhões a mais do que a população brasileira, e forçou o governo a anular a portaria, vista como mais uma tentativa de controlar e taxar operações de pequenos empreendedores.
De um aplicativo que caiu nas graças do povo pela rapidez e ausência de taxas, o Pix se transformou numa espécie de cavalo de troia deixado por seu criador, o ex-presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, notório adversário de Lula e do PT, e chegou a ser abandonado por parte da população no começo do ano.
Eficiência
O Palácio do Planalto passou três dias tentando desmentir o vídeo, ameaçando com processo os autores da fake news, mas tudo o que conseguiu foi demonstrar que não está preparado para enfrentar a direita no terreno que ela mais domina: as redes sociais e a comunicação digital imediata, nas quais trafega à distância de anos-luz do modelo institucional.
Restou a Lula dar um puxão de orelha em seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, determinando que a partir de agora as portarias sejam submetidas à Casa Civil do Palácio do Planalto antes de serem publicadas.
Foi o segundo erro de Haddad. No final de novembro, ao anunciar o pacote de ajuste fiscal em meio à uma forte expectativa criada pelo próprio governo, o ministro misturou as medidas com a proposta de isenção de Imposto de Renda para salários de até R$ 5 mil, promessa de campanha de Lula, que acabou gerando confusão e ajudando o Congresso a desidratar o pacote de corte de gastos. Lula tem Haddad como uma espécie de protegido, mas é um político pragmático e não entraria em depressão se tiver de substituí-lo na reforma ministerial.
Lula já fez isso com assessores mais fortes e mais próximos, como o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, e acaba de defenestrar, sem dó, o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) exatamente porque a comunicação não estava funcionando.
A portaria sobre o Pix, sem que Fazenda e Receita avaliassem o impacto, foi um exemplo da falta de comunicação, mas acabou servindo como divisor na edição de medidas do gênero sobre as quais o presidente tomou as rédeas: “Daqui pra frente, nenhum ministro pode fazer uma portaria que crie confusão para nós sem que passe pela Presidência através da Casa Civil. Muitas vezes a gente pensa que não é nada, faz uma portaria qualquer e depois arrebenta e cai na Presidência da República”.
Na quarta-feira, 22, foi o ministro da Casa Civil, Rui Costa, quem derrapou. Ele disse em entrevista que o governo faria intervenções para baratear os alimentos. Diante da péssima repercussão no mercado, voltou atrás, disse que se equivocou e substituiu intervenção por medidas para estimular a produção e redução do alto custo dos alimentos, outro grande problema para o mandatário.
Especialistas e políticos da base governista ouvidos por ISTOÉ alertam que a conjuntura política indica que só mudanças radicais na comunicação podem evitar o que, agora, é considerado um princípio de incêndio se transforme num desastre para o governo.
Sociólogo e há 30 anos atuando como consultor de governos e Congresso, o publicitário Oliveiros Marques diz que a virada deve envolver todo o governo, mas especialmente o presidente. “O Lula é o maior comunicador da política, mas ficou ausente na comunicação do governo nos dois primeiros anos de mandato. Agora, o governo acordou. Lula terá mais diálogo com Sidônio e a articulação política estará mais próxima da comunicação”.
Até aqui, Lula agiu por conta própria, ora seguindo orientação da mulher, Janja, ora de seu fotógrafo, Ricardo Stuckert, que não têm a noção de conjunto da comunicação e nem agiram para evitar declarações polêmicas, como a que Lula deu nas comemorações de 8 de janeiro.
Fragilidades de Lula
Ele afirmou que os homens são mais apaixonados pelas amantes, numa tentativa de manifestar seu apreço pela democracia. Com um marqueteiro profissional palpitando, Lula não teria interrompido a entrevista coletiva de seus médicos para falar com jornalistas quando deixava o hospital depois da última internação e nem teria se exposto, mostrando fragilidade ao expor as marcas das cirurgias numa entrevista exclusiva ao Fantástico, da TV Globo.
Oliveiros Marques avalia que Lula enfrenta problemas que são resultados também da polarização, que produz um bloqueio na parte da população que não quer ouvir o governo e virou o grande desafio da comunicação. Ele avalia que o governo tem condições de superar a crise. “É como uma carroça de melancias: vai se ajeitar porque não é um governo ruim”.
A gestão de Lula 3 enfrenta obstáculos que ele mesmo criou em temas relevantes para a população.
Há quase um ano no cargo, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, patina em infindáveis discussões sobre a PEC da Segurança, que deve chegar ao Congresso tão desidratada que não causará grandes impactos nas questões de segurança mais importantes, como uma presença federal mais forte para reduzir a violência policial, as mortes de civis em supostos confrontos e a contaminação da máquina da segurança pelo crime organizado nas capitais mais importantes do país, como São Paulo e Rio de Janeiro.
O governo vem perdendo essa guerra para a bancada da bala, a que melhor representa, no pior sentido, a bizarrice do bolsonarismo.
Sidônio
Remanejado do mercado publicitário baiano, meca dos marqueteiros que serviram Lula nos dois governos anteriores – primeiro com Duda Mendonça e depois com João Santana -, ambos engolidos pelos esquemas de corrupção que marcaram os governos petistas, Sidônio Palmeira percebeu que a polarização Lula versus Bolsonaro é resiliente.
Ele decidiu adotar o confronto entre as duas visões da política como espinha dorsal da estratégia de comunicação para os próximos dois anos.
●Na reunião com o primeiro escalão do governo na segunda-feira, 20, o marqueteiro falou como quem tem carta branca e salvo conduto de Lula para agir em todos os 37 ministérios.
● Ele impôs a si mesmo um prazo de 90 dias para mostrar “a que veio”. Seu grande desafio será gerir interesses conflitantes na Esplanada dos Ministérios e mostrar os feitos do governo para pobres e ricos que não se informam mais pelos canais tradicionais.
● Independentemente de quem seja de esquerda, direita ou do centro no governo, o marqueteiro quer um alinhamento entre os ministérios nos feitos mais importantes que possam ser destacados por Lula.
● O novo ministro não tem como romper compromissos já firmados, alguns dos quais, durarão por um prazo de até seis meses, mas avisou que quer ver de perto os contratos de publicidade de todos os ministérios e autarquias cujas verbas de publicidade passem pelo crivo do governo.
Campanha sobre o Pix
Dentro da ideia de implantar um estilo de comunicação com “mais rua e menos palácio”, Sidônio quer centralizar as decisões do setor e dar capilaridade aos feitos do governo. Uma das primeiras ações será a campanha para reabilitar o Pix como ferramenta “segura e sem taxa” adotada e com a cara do governo Lula.
● O governo gastará algo em torno de R$ 50 milhões na campanha sobre o Pix.
● O confronto entre Lula e Bolsonaro vai abordar todas as áreas do governo, especialmente as que marcam diferença forte entre os dois, como a reforma tributária, os ajustes na economia, o fortalecimento de políticas sociais e a reorganização da máquina federal, propositalmente desmontada no governo anterior.
Nem temas conflituosos, que carregam cascas de banana, como a ainda insolúvel questão das emendas parlamentares, uma maldição que Lula herdou, ficarão de fora.
O governo quer mostrar que foi Bolsonaro quem, por apatia e despreparo, entregou aos congressistas o orçamento federal. O problema é que, ao contrário do que havia prometido na campanha, o presidente também virou refém do Congresso e, se conseguir romper a “parlamentarização do orçamento”, será com a ajuda do ministro Flávio Dino, do STF.
Além de suspender boa parte dos pagamentos, Dino também mandou a Polícia Federal investigar as suspeitas de corrupção na distribuição de recursos de emendas, um escândalo com potencial de atingir também o governo e os partidos da base.
Estrategista em marketing político e professor da PUC de Goiás, o publicitário Marcos Marinho diz que o governo Lula 3 não tem só problemas na comunicação. Ele acha que o primeiro erro é a tomada de decisões políticas que só após consumadas são repassadas para a comunicação resolver. Depois vem o despreparo para lidar com as redes sociais.
“A comunicação do governo não chega a nichos sociais, não faz parte do grupo do ZAP da família e nem do trabalho. Se continuar tentando ser institucional demais, não vai funcionar porque quem está nas redes não quer o institucional. Enfrentar Nikolas Ferreira e Bolsonaro pelo caminho tradicional significa que quando a mensagem estiver passando no Jornal Nacional, o WhatsApp já rodou tudo”.
“O Lula é o maior comunicador da política, mas ficou ausente nos dois primeiros anos de mandato”
Oliveiros Marques, publicitário
Marinho diz que a especialidade da direita é pegar fragmentos de verdade, misturar com conspirações e disseminar, contando com a predisposição de uma parcela da população para o negativo e a desconfiança sobre as ações do governo.
“A direita consegue mapear os temas que têm aderência à pauta popular, dar uma cara palatável, acessível e dispara isso com rapidez enorme. Faz isso desde 2018. Quando o governo reage, é tarde. Falta no governo pessoas que entendam da comunicação de rua”.
Em resumo: ou o governo muda radicalmente sua estratégia na guerra de comunicação contra a direita, ou será engolido por ela.
O modelo pernambucano
Na mudança que Lula promove em sua comunicação, trocou o ministro do setor, que está substituindo até mesmo pessoas indicadas por Janja. Agora, pede socorro ao prefeito de Recife, João Campos, que sabe melhor do que ele como se comunicar com o povo
Aos 31 anos de idade, reeleito no primeiro turno das eleições do ano passado com 78,11% dos votos válidos, o prefeito João Campos (PSB), está mais próximo do presidente Lula do que muitos petistas, mesmo os das novas gerações, que sonham alçar voos mais altos na política.
Bisneto do lendário Miguel Arraes e filho do ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos – cuja trajetória foi interrompida de forma trágica no auge da carreira política por um acidente aéreo em plena campanha presidencial em 2014 -, o prefeito foi chamado pelo presidente no meio da crise que terminou na anulação da portaria que controlaria as operações de Pix, para prestar uma espécie de consultoria de comunicação digital, o Calcanhar de Aquiles do governo federal na qual o jovem político se tornou o maior especialista no campo da esquerda.
Ele virou também uma grande ameaça para a extrema direita, que domina as redes sociais explorando a comunicação digital com competência para distorcer, mentir e manipular fatos, mas impondo sucessivas derrotas ao governo, que só agora decidiu reagir, trocando seu comando na comunicação e buscando ajuda de aliados.
Por conta do entendimento entre o presidente e o prefeito, o novo ministro da Secretaria de Comunicação (Secom), Sidônio Palmeira, “importou” do Recife a socióloga e publicitária Mariah Queiroz, que chefiou o grupo responsável pela atuação de Campos nas redes sociais e responderá agora pela Secretaria de Estratégias e Redes, substituindo Brunna Rosa, que havia sido indicada pela primeira dama, Janja da Silva, e deve ser realocada em outra área do governo federal. As duas se conheceram durante a campanha de 2022.
O marqueteiro Rafael Marroquim, que cuidou das campanhas do prefeito, também cedido, será um consultor informal do grupo formado por Sidônio Palmeira.
O domínio da tecnologia digital e conexão com a população, por si só, não explicam o sucesso de João Campos, que se tornou o prefeito de capital mais popular nas redes sociais, superando inclusive os veteranos Eduardo Paes, do Rio, e Ricardo Nunes, de São Paulo que, juntos, conseguem chegar a dois terço dos 28% dos seguidores que o pernambucano tem no Instagram, Facebook, X, TikTok e Youtube.
João Campos usa linguagem popular, descontraída e bem humorada. Ele aparece sempre em movimento e desenvolveu empatia recíproca com os recifenses, especialmente jovens que não eram atraídos pela política.
Seu diferencial em relação aos políticos tradicionais e a estratégia de direita é a mensagem transparente e honesta, sem inventar um personagem para ganhar votos como se fosse um produto de marketing. “Sou na rede o que sou na minha vida mesmo. Isso eu acho que é a grande diferença: não adianta ter um personagem”.
Engenheiro por formação, tem a capacidade de ouvir e de adaptar as obras públicas ao que a população quer. Numa entrevista que deu ao programa Roda Vida, da TV Cultura, logo depois de reeleito, arrancou gargalhadas ao falar de como mudou a construção de um campo de futebol Society que havia sido projetado pela Prefeitura em sofisticados padrões de engenharia, quando a população de um dos bairros mais antigos da cidade, em Santo Amaro, um local conhecido como Campo do Onze, queria algo mais simples e original. Num determinado dia, os moradores surpreenderam o prefeito com protesto contra a obra.
Campos relembra: “Entrou um assessor e disse: prefeito está tendo um protesto agora no Campo do Onze. Eu disse: protesto? A gente está fazendo uma obra esperada por muito tempo e está tendo protesto? Aí ele (o assessor) disse que ‘é porque o campo era troncho, que tinha um lado maior que o outro e não um retângulo perfeito. O campo era torto e a gente fez um projeto para deixar retangular, certinho, e a comunidade não quer, não’. O pernambucano contou que mandou parar a obra e despachou uma equipe de pesquisa para ouvir a população. “E não é que ganhou o campo troncho!”.
Os moradores ignoraram a engenharia e os estudos do terreno feitos por arquitetos e optaram pela originalidade do terreno, um retângulo com larguras diferentes, com uma das linhas torta, sem uma lasca da terra, ou seja, um campo troncho – como é a imagem de um corpo mutilado -, com o qual estavam acostumados. E assim foi feito. “Tem que combinar com o povo. É importante ter essa liga de combinar com as pessoas e a capacidade de ouvir”.
A parceria para ajudar a reverter o desgaste do governo Lula pelas dificuldades de comunicação com as redes pode evoluir para um entendimento político mais pra frente. O PSB é um aliado histórico de Lula e do PT e João Campos só terá idade para eventualmente concorrer à presidência da República nas eleições de 2030, quando o presidente, caso seja reeleito em 2026, sem condições de concorrer, teria de indicar um sucessor.
O prefeito e sua namorada, a deputada federal Tabata Amaral, ex-candidata à Prefeitura de São Paulo no ano passado, representam a grande aposta nacional do PSB. Tudo dependerá, no entanto, de como a esquerda vai enfrentar agora a direita com propostas e capacidade de comunicação pelas redes.