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Loucura e poder: o que tem de concreto e de falácia na ambição de Trump?

Embalado pela reeleição, que representou a maior vitória republicana em 20 anos, Donald Trump volta a sentar na cadeira mais poderosa do mundo com arsenal de ameaças de invasões, deportações, vinganças, desobediências a acordos globais e a promessa de um mundo pior para todos

Crédito: PETER ZAY

Trump teve 5 milhões de votos a mais do que sua rival democrata Kamala Harris e tem apoio também do Congresso (Crédito: PETER ZAY)

Por Luiz Cesar Pimentel

Há exatos 180 anos os EUA não defendiam uma política de expansão territorial. Foi durante o comando do presidente James K.Polk, entre 1845 e 1849, que o país anexou o Texas, negociou o Oregon com o Reino Unido e anexou, na Guerra Mexicano-Americana, a Califórnia, Nevada, Utah, Arizona e partes do Colorado e Novo México. Desde então, 34 presidentes sentaram na cadeira na Casa Branca sem que o tema fosse levantado. Até Donald Trump voltar ao Salão Oval, neste 20 de janeiro, quando se saberá se é bravata ou ameaça concreta feita na sua campanha, onde prometeu, entre outras coisas, tomar a Groen­lândia, retomar o Canal do Panamá, incorporar o Canadá, além de deportar mais de um milhão de pessoas, parar guerras e rasgar a carta dos acordos climáticos globais.

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Trump é o segundo dos 47 presidentes na história norte-americana a voltar ao posto após ser derrotado em tentativa de reeleição. Quando perdeu, deixou claro que não aceita civilizadamente as derrotas – a consequência imediata foi a Invasão do Capitólio, no fatídico 6 de janeiro, ato que ele incitou e que, se não tivesse sido reeleito, provavelmente o condenaria a partir do relatório do procurador especial Jack Smith. Ele também não tem problema em mostrar sua face vingativa, já que afirmou que demitirá o autor do documento “em dois segundos”, entre as alegadas 100 ordens executivas que disse que assinará em seu primeiro dia em Washington.

Como seu Partido Republicano alcançou a maioria no Senado, o mandatário terá em seu retorno amplo apoio para propor a própria agenda política no Congresso. Junto à opinião pública, astutamente ele construiu uma rede de apoio digital que lhe garante o maior palco do mundo para o que mais sabe fazer: ameaçar sem se preocupar com as consequências.

● O homem mais rico do planeta, Elon Musk, dono da rede X (ex-Twitter), ocupa espaço central no novo mandato.

Mark Zuckerberg, que alcança mais de metade da população global somente com duas de suas propriedades — 2 bilhões de usuários no Instagram, mais 2,7 bilhões no Facebook — anunciou há duas semanas da posse que basicamente desligaria o controle de conteúdo de suas redes, em sinal de rendição estratégica.

Jeff Bezos, segundo homem mais rico do planeta e dono da Amazon, determinou ao Washington Post, jornal de sua propriedade, que não apoiasse Kamala Harris na disputa presidencial.

Ou seja, espaço político, dinheiro e mídia não faltarão ao presidente norte-americano.

O presidente norte-americano não esconde interesse em cruzar a fronteira com Canadá , retomar controle sobre o Canal do Panamá e ocupar a Groenlândia 

(GEOFF ROBINS)
(SERGIO PITAMITZ)
(ANTOINE LORGNIER)

“É a prática da realpolitik, que é a tomada de decisões conforme o calor do momento, segundo jogo de interesse e parece que a Meta do Zuckerberg migrou por esse caminho”, diz o cientista político da FESPSP e ESPM Paulo Niccoli.

“Esse estreitamento de laços também é um novo movimento no xadrez da política global, que hoje tem a informação como uma das mercadorias mais valiosas. Trump sabe que informação é poder. Estreitar laços, oferecendo recompensas aos grandes nomes dos oligopólios da comunicação digital, em nome da estrita liberdade de mercado e de expressão, é uma grande cartada que sob a desregulamentação dos conteúdos fortalecerá o lado extremista”, afirma o doutor em ética e filosofia política Douglas Barros.

Vale lembrar que Trump pretende banir o chinês TikTok nos EUA até que tenha controle local, o que abre uma janela de oportunidade para o fiel escudeiro Musk.

Este, aliás, já queimou a largada no cenário internacional a bordo de sua conta com 212,5 milhões de seguidores no X. Nos últimos dias, pediu a opinião desses sobre “a libertação do povo britânico da tirania do governo” trabalhista de centro-esquerda de Keir Starmer. Na Alemanha, abriu uma live para a liderança do partido AfD (Alternativa para a Alemanha), que é o preferencial de neonazistas locais e ao qual se refere como “uma centelha de esperança”.

Promessa ditatorial

Mesmo sem detalhar como pretende atingir seus objetivos, ele discursou ainda no palanque da vitória: “Irei governar com um lema simples: promessa feita, promessa mantida. Vamos cumprir nossas promessas”. E não baixou o tom desde então. Pelo contrário.

Jura que em seu primeiro dia teria como prioridades “fechar a fronteira” e “perfurar, perfurar, perfurar”, referindo-se tanto à retomada do muro na divisa mexicana quanto ao apoio à exploração de petróleo e combustíveis fósseis. “Depois disso, não serei um ditador”, completou.

Em relação às promessa mais extremas, que envolvem desafios às soberanias de outras nações, Trump dobrou a aposta recentemente, especialmente sobre a Groenlândia, a gelada ilha dinamarquesa, e o Canal do Panamá, construído pelos EUA em 1904 para ligar os oceanos Atlântico e Pacífico, e devolvido ao país que o abriga e batiza em 1977 pelo então presidente Jimmy Carter, que faleceu aos 100 anos no final de 2024.

Sobre os dois, a justificativa trumpista é de que ambos são necessários aos norte-americanos para “garantia da segurança nacional”. No momento em que falava com jornalistas em sua propriedade em Mar-a-Lago, na Flórida, seu filho, Donald Jr., estava justamente na Groenlândia em “viagem para conversar com as pessoas”, sem agenda oficial marcada.

“Depois da Segunda Guerra tivemos um processo de descolonização e o Imperialismo se enfraqueceu. Temos agora uma nova fase de Imperialismo Capitalista ligado às novas tecnologias e às questões climáticas. Como vários territórios agrícolas estão decadentes, Groenlândia e Canadá apresentam oportunidades, já que começam a deixar de ser cobertos por gelo. Há também a exploração de minérios, importantes para a quarta Revolução Industrial, como lítio e urânio. Por mais que aparente ser uma bravata, e de fato é, existe uma intenção por trás”, diz Niccoli.

“Trump reforça um lado ainda mais sombrio do Make American Great Again. Ao lançar mão de um imaginário nostálgico, que impõe a colonização e anexação de novos territórios como um horizonte possível, algo ainda vivo na memória estadunidense, ele dialoga com sua base eleitoral reforçando uma saída imaginária à crise econômica e social instalada no país neste momento”, completa Barros.

Sobre a ilha, ao saber das ameaças, a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, respondeu que “a Groenlândia não está à venda” e que “pertence aos groenlandeses”. O território gelado abriga uma instalação espacial dos EUA e fica na rota aérea mais curta entre a Europa e a América do Norte.

O interesse pela área também parte da riqueza em minerais valiosos para fabricação de baterias e dispositivos. No entanto, Trump jura que sua preocupação é essencialmente bélica, pois a ilha serviria de ponto estratégico para rastreamento de “navios chineses e russos, que estão por toda parte”. “Estou falando de proteger o mundo livre”, concluiu. Sobre o tópico, ele esqueceu que a Dinamarca é um dos membros fundadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a aliança militar criada em 1949, e que o avanço sobre um dos membros seria uma declaração de guerra aos seus 30 componentes adicionais aos dois diretamente envolvidos neste caso.

Feitas as contas, é mais plausível que ele insista na retomada do canal panamenho, sobre o qual diz que “está sendo operado pela China” e que “é vital para os Estados Unidos”.

Atualmente, dois portos na entrada do canal são administrados por empresa com sede em Hong Kong, chamada CK Hutchison Holdings, que não possui ligação com o governo chinês.

José Raúl Mulino, presidente panamenho, disse que não há “nenhuma interferência chinesa em seu território”. Não satisfeito, Trump sugere que o Golfo do México, que banha EUA, México e Cuba, seja rebatizado de Golfo da América, além de pedir o fim da energia eólica na região, pois “as turbinas estão enlouquecendo as baleias”.

Já sobre ignorar a fronteira mais extensa do mundo, que separa seu país do Canadá, o mais provável é que sua opinião de que “eles (canadenses) deveriam ser um estado (americano)” esteja mais para o terreno da sua contumaz fanfarronice, já que invadir e ocupar a segunda maior nação em dimensão territorial do mundo, com 41 milhões de habitantes, é significativamente diferente de afrontar uma nação como o Panamá, que tem população menor do que a metade da cidade de São Paulo, com 4,5 milhões de pessoas. Mesmo assim, disse estar cansado de gastar com proteção ao vizinho ao norte, além de criticar as importações de madeira, laticínios e carros canadenses.

100 decretos

Certo é que na segunda-feira (20), o mundo saberá quão sérias são as promessas de Trump. Ele garante que seguirá a meta centenária de assinatura de decretos logo no primeiro dia priorizando:
● o que chama de reforço de segurança na fronteira mexicana, finalização da construção de muro para separar os dois países,
● o investimento em combustíveis fósseis,
● acabar com a inflação,
● a política escolar de gênero
● e a revisão da política vacinal.

Sobre a deportação de imigrantes, o assunto é tratado sem qualquer critério humanista, mas como uma tabela de Excel a ser preenchida com a expulsão de pelo menos um milhão de pessoas. Mesmo desaconselhado por especialistas, que alertam sobre o desaceleramento econômico que causaria, além do enorme desafio logístico e legal, Trump não demonstra disposição de tirar o pé do acelerador.

Segundo seu apoiador e líder das negociações sobre segurança na fronteira dentro do Congresso, o senador James Lankford, um milhão de deportações é apenas o começo do processo que visam. “Esses são os casos mais fáceis. São pessoas que cruzaram recentemente, pessoas que estavam legalmente no país e cometeram crimes, pessoas que o tribunal ordenou a remoção – só nisso são mais de um milhão”, disse.

Trump diz que irá retomar a separação na fronteira com México no primeiro dia (Crédito:JOHN MOORE)

Outra política que o presidente pretende retomar de seu primeiro mandato é a reversão de centenas de leis de proteção ambiental e fazer valer a retirada do país do Acordo Climático de Paris, que protagonizou.

A justificativa atual é ajudar a indústria automobilística americana com seu mantra de “perfurar, perfurar, perfurar” (poços de petróleo) em detrimento de fontes limpas e renováveis. Ele sugere, ainda, explorar a região selvagem do Ártico atrás de mais óleo.

E se há algo que Trump endossa mais do que a política intervencionista bélica norte-americana é o acúmulo e economia de dinheiro. Sobre a guerra travada por russos e ucranianos, sua opinião foi crítica em relação aos bilhões de dólares que seu antecessor, Joe Biden, destinou para garantia de defesa da Ucrânia. Sem especificar um termo sequer, ele disse que acabará com o conflito “em 24 horas, por meio de um acordo negociado”.

Aborto e prisão

Um dos pontos que mais levantaram desacordos entre seus próprios apoiadores é a indisposição em sancionar a proibição do aborto. O direito constitucional à prática foi revogado durante o governo Biden pela maioria de juízes conservadores que Trump havia colocado em seu mandato. A sanção à proibição foi um dos temas concordantes entre ele e sua rival durante a campanha, Kamala Harris.

Uma posição devemos admitir: diferentemente de seu admirador confesso, o ex-presidente Jair Bolsonaro, Trump pode ser vingativo, mas se recusa a abandonar feridos pelo caminho. Ele garantiu que irá libertar condenados pela invasão do Capitólio, quando seus apoiadores tentaram impedir a posse de Joe Biden, em 2021. Seu discurso é de que muitos são “prisioneiros políticos, que estão erroneamente encarcerados”, apesar de admitir que “alguns deles perderam o controle” durante o ato.

Um dos ensinamentos que Trump aprendeu durante o primeiro mandato é que o povo vota com o bolso. Como durante parte da campanha o índice dos preços norte-americano ficou em patamar muito alto, ele prometeu “acabar com inflação”, novamente sem entrar em maiores detalhes sobre como faria isso, já que a influência presidencial nessa taxa é limitada.

Junto ao comprometimento com a baixa de preços, ele defende corte amplo nos impostos no país, a começar pela isenção de taxas sobre o rendimento de gorjetas, que são fatia de renda considerável de muitos trabalhadores. Além disso, quer abolir o devido sobre os pagamentos de seguridade social e reduzir o imposto corporativo.

Em relação às importações, propôs tarifas de pelo menos 10% sobre a maioria dos produtos estrangeiros chegando a 60% se a origem for chinesa.

Essa diferenciação comercial que propõe sobre a China mostra, no fundo, o que realmente incomoda o norte-americano e que ele disfarça (ou não) praticando bullying sobre nações e territórios menos poderosos.

● A China teve superávit comercial em 2024 de praticamente US$ 1 trilhão.

● O mais recente resultado divulgado pelos EUA foi de déficit em 2022 de quase o mesmo valor, US$ 950 bilhões (os chineses registraram US$ 830 bilhões azuis naquele ano).

● No final, é tudo sobre o dinheiro. Mesmo que disfarce em ameaças.

“O nacionalismo étnico de Trump desperta vários fantasmas do século 20. Ao apostar numa receita que causou sofrimentos indizíveis à humanidade, dirigindo o país mais bem armado do mundo, temo que o maior risco que ele oferece é arruinar o que resta de elemento democrático hoje”, conclui Barros. “Ele aposta numa recolonização nos moldes do século 19 e na tentativa de fortalecer Estado-Nação. Daí o apelo ao nacionalismo exacerbado e a construção do imigrante como vítima sacrificial, culpabilizando-o por supostamente ‘corroer o sonho americano’. Evidentemente, um perigo eminente cujo recado para o mundo é: fortaleçam suas fronteiras e preparem-se.”

CONQUISTAS A QUALQUER CUSTO
Conheça a biografia de Donald Trump

14/06/1946
Quarto dos cinco filhos de uma dona de casa e de proprietário de uma empresa de construção, Donald John Trump nasce no bairro novaiorquino do Queens. Hoje apenas ele e uma irmã, Elizabeth, estão vivos

Maio de 1968
Conclui o curso de Economia. Ao lado do pai, lidera a reforma de hotéis icônicos e inicia a construção da Trump Tower em Nova York, concluída em 2001. Expande negócios para indústria aérea, condomínios, campos de golfe, hotéis e cassinos em Atlantic City, Las Vegas, Chicago, Filipinas, Turquia e Índia, incluindo o Taj Mahal

Década de 1990
Endividado, divorcia-se da primeira esposa, Ivana. Trump casou-se três vezes, a segunda com Marla Maples e a terceira com a atual mulher, Melania. Tem cinco filhos. Começa a se recuperar no final da década

2003
Assume o reality show O Aprendiz na rede NBC. No programa, candidatos competem por vagas suas empresas. Projeto faz sucesso pelo mundo, inclusive no Brasil. Trump requer patente americana do bordão “Você está demitido!”, usado ao eliminar candidatos Junho de 2015 Anuncia candidatura à presidência dos EUA para 2016. Lema: Faça a América Grande Novamente (de Make America Great Again, o MAGA).

2016
Em meio à campanha, ex-mulher Ivana retira acusação, feita em 1993, de que Trump teria arrancado parte de seus cabelos. No mesmo ano, livro revela que Ivana o teria acusado de estupro

2016
Surge gravação em que Trump revela como aborda mulheres: “Começo a beijá-las … Nem espero. Quando você diz que é uma estrela, pode fazer qualquer coisa … agarrá-las pela b…”. (…)”vou para cima delas (casadas) com força”. Pelo menos 15 mulheres fizeram novas acusações após a revelação. No mesmo ano, diz que a comediante Rosie O’Donnell é uma “porca que comia como porca” e a atriz Nicollette Sheridan “uma mulher com peitos pequenos, muito difícil ser nota 10”. Faz insinuações sexistas grotescas contra a jornalista Megyn Kelly, da Fox News, que teria sido rígida no debate. “Ela tinha sangue nos olhos, vindos sei lá de onde”.

08/10/2016
Mesmo com quase três milhões de votos a menos, derrota Hillary Clinton e é eleito presidente. Toma posse em 20/01/2017

03/10/2020
É derrotado pelo democrata Joe Biden na tentativa de releição

06/01/2021
Convoca e incentiva partidários a invadir o Capitólio, sede do legislativo americano, em Washington, para forçar congressistas a rejeitar vitória de Biden. Quatro manifestantes e um policial morrem e vários invasores são presos. Trump é acusado de atentado à democracia

09/05/2023
Trump é condenado a pagar US$ 5 milhões (R$ 30,11 milhões) a Elizabeth Jean Carroll por fazer falsas insinuações sexuais e difamar a escritora americana. É a primeira vez que um presidente americano recebe pena por esses motivos

30/05/2024
Juiz de Nova York declara Trump culpado em 34 acusações de falsificação de documentos contábeis e ocultação de pagamento de US$ 130 mil (R$ 783 mil) para silenciar a atriz pornô Stormy (Tempestade) Daniels, que o acusava de violência sexual. Decisão o transforma no primeiro ex-presidente americano condenado criminalmente.

06/11/2024
Derrota a democrata Kamala Harris e conquista segundo mandato à presidência dos EUA.

08/01/2025
Revela intenção de ocupar a Groenlândia e o Canal do Panamá e fazer do Canadá o 51º estado americano — à força, se necessário

10/01/2025
Justiça americana publica sentença com “libertação incondicional” a Trump, livrando-o de prisão, liberdade condicional e multa pelas 34 condenações de maio de 2024

20 de janeiro de 2025
Data marcada para a posse do segundo mandato