Reflexões sobre o aborto
Por Antonio Carlos Prado
Dotado da capacidade de crítica e julgamento, características que o diferenciam dos animais (ou pelo menos deveriam diferenciá-lo), ao ser humano é difícil analisar qualquer questão com total, plena e absoluta isenção. Há, no entanto, temas que requerem não apenas neutralidade, mas também a complexa arte de pensar, por exemplo, para além de paixões ideológicas e petrificadas convicções religiosas. Dentre tais assuntos está o aborto. A CCJ da Câmara dos Deputados aprovou recentemente uma proposta radical de emenda à Constituição que propõe extinguir o aborto no Brasil, inclusive nos casos legalmente já previstos no Código Penal, desde 1940. Naquele ano estabeleceu-se que não comete crime a mulher que se submete à interrupção da gravidez nos casos de gestação que coloque em risco a sua própria vida ou na qual o feto seja decorrência de estupro. Cerca de meio século depois, se acrescentou que é igualmente legal o aborto de fetos anencefálicos.
A PEC agora votada, datada de 2012 e de autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, pretende derrubar essas três hipóteses e criminalizar o aborto por completo. Requer, para tanto, alteração no artigo 5º da Constituição que fixa os direitos fundamentais, deles constante a inviolabilidade do direito à vida. Cunha pretendia acrescentar na Carta o direito à vida “desde a concepção” – como almeja a maioria dos integrantes das bancadas religiosas. A proposta desengavetada venceu agora na CCJ por trinca e cinco votos favoráveis diante de quinze contrários.
Não levaram com conta alguns parlamentares, não pensaram eles, na dor psíquica e emocional da mulher que gesta um feto com anencefalia, o qual, inevitavelmente, só nascerá para morrer em seguida. Gestar a morte e não a vida é algo devastador. Comprar roupinhas para a criança?
Comprar-lhe chocalhos? Decorar-lhe um quarto? Nada disso será feito. Somente a compra de um pequenino caixão. É torturante levar a morte no ventre. Idêntico sentimento avassala a mulher grávida a partir da brutalidade de um estupro. Essa vítima pode amar todas as crianças do mundo, mas é pedir-lhe demais que ame um filho ou uma filha que lhe foram impostos em seu corpo por um marginal violador.
Está-se longe da isenção necessária. Vale lembrar, aqui, o primeiro projeto sobre aborto redigido no País, apresentado em 1949 ao Congresso, proibindo integralmente a interrupção da gravidez. A proposta, envelhecida em 75 anos, foi da lavra do deputado federal e monsenhor Arruda Câmara. Para ele, mesmo o aborto em caso de estupro “desrespeitava a moral do povo brasileiro”. Os seus pares o engavetaram imediatamente. Não há motivo, então, para a CCJ querer voltar à argumentação pretérita.