Editorial

As comunidades e a democracia social

Crédito: Bruno Escolastico Sousa Silva

Antonio Carlos Prado: "Enquanto no conjunto demográfico os dezesseis milhões de moradores em comunidades correspondem à alta parcela da população do País, nas favelas os pardos e pretos são, respectivamente, 55,5% e 73%" (Crédito: Bruno Escolastico Sousa Silva)

Por Antonio Carlos Prado

Nenhuma mulher pisa mais nos astros distraída, por melhor passista que seja. Nem segue existindo romantismo ao ver-se o luar furar o teto de zinco do barracão. Os versos do clássico Chão de estrelas, de Orestes Barbosa, não são mais o segundo hino nacional. Cada composição em seu tempo, cada composição faz o seu tempo. O romantismo concebendo as favelas, por parte daqueles que não eram obrigados a morar nelas porque não viviam pobres demais, virou pó. Ainda bem. Melhor ainda é que nessas comunidades a vida vai melhorando. O IBGE divulgou, quase ao final de 2024, os últimos dados complementares, e alentadores, após a degradação da condição humana chegar ao máximo no governo de Jair Bolsonaro com pessoas disputando ossos em caminhões coletores de lixo. Tanto a pobreza quanto a extrema pobreza (categorias sociais nos livros, dor de fome igual no estômago) sofreram queda ao longo de 2023, na gestão de Lula como presidente, e despencaram aos menores patamares a contar de 2012. O IBGE reitera dois motivos prevalentes que levaram a essa melhoria: o aquecimento do mercado de trabalho e o pagamento do programa social Bolsa Família. Tudo isso pode ser traduzido de maneira mais palatável: oito milhões e setecentas mil pessoas deixaram a condição de pobreza. Trata-se de brasileiros para os quais o Estado e o establishment sempre deram as costas. Tome-se o Rio de Janeiro como exemplo, apesar de São Paulo possuir mais comunidades que as terras cariocas. Foi nela, na Cidade Maravilhosa, que no começo do século passado o prefeito Pereira Passos, teimando em transformá-la em Paris, empurrou para os morros os pobres e os pretos recém-libertos da escravatura. Por esse e por outros tantos motivos tinha razão o falecido Zé Kéti: “o morro não tem vez e o que ele fez já foi demais”. Dezesseis milhões de pessoas moram em comunidades e se constituem na forma humana da tradução de um tecido social pouco civilizatório. Hoje se tornou politicamente incorreto falar a palavra favela, nasceu outra terminologia, na verdade uma frase: “morador em comunidade”. Mas a carência e a vulnerabilidade desses locais são as mesmas – favela, vila, baixada, mocambo —, não importa, e muitas e muitas vezes, quando determinados policiais descem uma comunidade, sem dúvida deixaram corpo tombado e mãe chorando lá no alto. Jovem preto, de boné com a aba virada para trás e um gingado no andar é sempre visto como marginal. A polícia mata estrelas. Estrelas no chão. O racismo no Brasil é estrutural. É claro, então, que pardos e pretos sejam prevalentes nas favelas. Enquanto no conjunto demográfico os dezesseis milhões de moradores em comunidades correspondem à alta parcela da população do País, nas favelas os pardos e pretos são, respectivamente, 55,5% e 73%. São elas, as comunidades, historicamente as primeiras vítimas de desditas. E, não bastasse o já exposto, é forçoso lembrar que seus habitantes são explorados e criminosamente extorquidos por traficantes e milicianos que ditam as regras e estabeleceram uma espécie de pena de morte particular, em diversas ocasiões em mancomunação com autoridades. Em 2010, censo do próprio IBGE nos mostrava um Brasil com aproximadamente doze milhões de moradores nesses espaços que aniquilam a dignidade. Houve um aumento bem considerável. O grande compositor, cantor e músico Cazuza, que tão cedo partiu, dizia na cara do Brasil para o Brasil mostrar a sua cara. Pois é, a cara da terra é aterradora: havia em 2010 no País seis mil, trezentas e vinte e nove comunidades. Agora são doze mil trezentas e quarenta e oito. Zé Kéti, um dos melhores sambistas que o Brasil já teve, dizia que não queriam dar vez ao morro. Por qual motivo? Porque “quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”. Na verdade, a cantoria já começa a ser ouvida, ainda baixa, mas já é uma cantoria. Tão descrentes nos fizeram que a repetição da novidade só faz bem: a pobreza e a extrema pobreza retrocederam aqui em Pindorama e a democracia social se fortalecerá com o governo Lula em 2025.