Leitura para o encantamento
Por Ludmila Azevedo
Um dos livros mais difíceis que li foi Quarto de Despejo. Em forma de diário, Carolina Maria de Jesus relata sua rotina sofrida na favela do Canindé, em São Paulo, entre 1955 e 1960. É duro imaginá-la voltando para casa, num dia em que não conseguiu recolher reciclados o suficiente, sem comida para os filhos. Ou, num cenário “menos pior”, ter
o mínimo apenas para as crianças.
Recentemente, o IBGE divulgou que a pobreza no Brasil caiu ao seu menor nível desde 2012. Penso em Carolina
e concordo com a reflexão fundante de sua obra: a pobreza não deveria existir. Nem a fome, nem a desigualdade e nem o racismo que atravessou a vida da autora. Ler escritoras e escritores não brancos (incluo os indígenas na lista) é mais do que adquirir repertório e informação, é abrir-se para o encantamento.
A favela de Carolina entra na lógica cantada pelos Racionais MC‘s. Mas ainda que a periferia seja a periferia, em qualquer lugar há diversas formas de ser narrada na literatura. Em Estela Sem Deus, Jeferson Tenório conta a história de uma jovem negra que precisa trocar Porto Alegre pelo Rio de Janeiro. O escritor é de uma sensibilidade extrema ao reforçar o sonho de sua protagonista que é estudar filosofia num contexto bem adverso.
Fora do âmbito urbano, Itamar Vieira Junior virou referência com Torto Arado. Ambientado no sertão da Bahia, o romance desvenda a história das irmãs Bibiana e Belonísia, que encontram na mala da avó uma faca e esse objeto vai ser determinante em seus destinos. Amor, trabalho, religiosidade e luta por um mundo melhor são abordados de maneira poética e envolvente.
E, ainda, na esteira de ler perdendo o fôlego, os ensaios de Ailton Krenak, como Ideias Para Adiar o Fim do Mundo e O Amanhã Não Está à Venda, são um farol nesses nossos tempos nos quais os homens já deveriam há muito ter desenvolvido uma relação de mais respeito à natureza, não devastando de forma irresponsável e indiscriminada seus recursos preciosos que, infelizmente, não são infinitos.
Na minha pilha de livros essenciais para cada ano, a produção literária de autores negros e indígenas ganha, cada vez, mais paridade. Como muita gente, cresci lendo predominantemente escritores brancos. No entanto, a leitura sempre deve ser ampliada. Há editoras totalmente dedicadas a autores independentes — procure pela Dandara e Malê nas feiras de livros ou visite seus sites. Já as grandes têm nos catálogo boas promessas, nomes consagrados e premiados. Todos com histórias para envolver desde os primeiros leitores aos vorazes que se interessam por biografias, ficção e não-ficção. Ir além da narrativa que sempre foi e segue apresentada como dominante nos transforma. É um ótimo caminho e sem volta.