Internacional

Guerra infinita: entenda por que 2025 não projeta um cenário de paz

Síria mostra que a moda entre as maiores potências globais virou a promoção de guerras por procuração, onde entram com financiamento de armas e suprimento e os países colocam seus soldados nos campos

Crédito: GETTY IMAGES

Estátua de Hafez al-Assad é derrubada na Universidade de Damasco (Crédito: GETTY IMAGES)

Por Luiz Cesar Pimentel

Quando o grupo de rebeldes tomou a capital da Síria, Damasco, no domingo (8), parte da população saiu em festa pelas ruas para comemorar o final de uma guerra civil que durava 13 anos e de uma ditadura dos Assad — primeiro com o pai, Hafez, depois com o filho, Bashar — de mais de meio século. O júbilo popular foi compreendido pelo mundo quando foram reveladas as formas como os opositores ao regime eram tratados. A prisão de Saydnaya, nos arredores da capital, que já foi qualificada como “matadouro humano” pela Anistia Internacional, abrigava 20 mil detentos esperando por uma morte mais digna do que tiveram os cadáveres encontrados em prensas ou carbonizados em suas instalações.

Mesmo diante de anos de horror, a certa timidez da celebração tinha motivo: o país passara às mãos de duas facções rebeldes com histórico não menos violento do que o do Partido Baath, do presidente deposto Bashar al-Assad — o grupo vitorioso HTS (Hayat Tahrir al-Sham) e seu comandante, Abu Mohammad al-Jolani, nasceram na Al-Qaeda, a organização de Osama bin Laden, responsável pelo mais infame 11 de setembro da história.

Só que desta vez, os EUA celebraram como vitória o sucesso da facção, enquanto o ditador sírio foi recolhido em abrigo pelo presidente russo, Vladimir Putin, em Moscou. A dança de cadeiras e a troca de camisas em escala ampliada do conflito são a tônica da nova ordem mundial, que soma até este dezembro 56 conflitos espalhados pelo globo, o maior número desde a Segunda Guerra Mundial. Só que no princípio do século 20, as nações usavam as próprias bandeiras nos fronts — agora, chegamos ao auge da era dos conflitos por procurações, onde países, principalmente no sempre turbulento Oriente Médio, são utilizados como peças em tabuleiro pela dominância geopolítica mundial.

Rastro de corpos
Em 2022, confrontos bélicos mataram mais de 230 mil

56 conflitos
acontecem pelo mundo neste 2024, recorde desde a Segunda Guerra

“As disputas hoje raramente são ‘regionais’, sobretudo em uma economia de mercado mundial como a que temos — além das nações e povos envolvidos, há sempre uma complexa rede de aliados políticos, mas também econômicos. Isso vai se refletir, economicamente, até em países que não estão diretamente envolvidos com o conflito, ou mesmo aqueles sem ligação alguma. “Atualmente todo conflito é, de certa maneira, global”, diz o doutor em Ciências Sociais Luís Mauro Sá Martino.

Guerrilheiro do grupo vitorioso em frente a retrato do presidente deposto (Crédito:OMAR HAJ KADOUR)

Recorrendo novamente à guerra civil síria, esta serve como bom exemplo de investimentos dos dois polos que brigam em territórios alheios. Até novembro, bancado pelo chamado “quarteto do caos” do Oriente, formado por Rússia, China, Irã e Coreia do Norte, nada apontava para saída eminente de Assad do poder. Bastou especialmente os russos baixarem a guarda para que rebeldes iniciassem ofensiva que em 11 dias resultou na tomada do país.

Em sua primeira entrevista a um meio de comunicação ocidental após a vitória, o canal Sky News, al-Jolani afirmou que “o mundo não tem nada a temer em relação ao regime que será implementado na Síria”. “O medo era da presença de Assad. O país está caminhando para o desenvolvimento, reconstrução e estabilidade. As pessoas estão exaustas da guerra”. Pelo histórico e pelos interessados no controle da região, é difícil acreditar que as coisas serão conduzidas desta forma.

Caça pousa em base aérea de Taiwan; nação se prepara para o pior com o cerco da China à ilha e recados de intenção de anexação do território (Crédito:ALEXANDER NEMENOV)

“Para derrubar um governo que tinha profundas alianças com o Irã, assim como um grande diálogo com a Rússia, a gente não pode esquecer que o tiro pode sair pela culatra, já que ainda há remanescentes do Estado Islâmico entre os rebeldes. É claro que os Estados Unidos avançam uma casa no Oriente Médio, que é a bola da vez na grande zona de disputa entre Estados Unidos e Rússia pelo petróleo”, afirma o cientista político da ESPM e FESPSP Paulo Niccoli. “Vale lembrar o que aconteceu na semana passada na Coreia do Sul, na tentativa de um presidente de decretar um estado de sítio e tentar fechar o congresso. Isso tudo mostra um cenário interessante de uma disputa global, tendo de um lado a Rússia, apoiada pela China, e do outro lado os Estados Unidos, tentando manter a sua hegemonia mundo afora.”

Acertos de contas

O primeiro ponto é que o levante bem-sucedido do HTS e do SNA (Exército Nacional Sírio) significa que eles terão algumas contas a acertar com quem deu apoio financeiro e militar na empreitada, em especial aos EUA e à Turquia.

● Para os turcos, a queda de Assad significa uma derrota àqueles que são considerados uma ameaça à soberania nacional turca: os curdos, que somam cerca de 30 milhões sem território próprio e que se espalham por cinco países –  Turquia, Síria, Irã, Iraque e Armênia.

Já os norte-americanos enxergam a chance de atuar no que fazem de melhor: exercer influência na nova configuração política que se forma na Síria e manter sob vigilância os grupos islâmicos mais radicais na região. Lembremos que atuam explicitamente dessa forma com seus principais aliados locais, os israelenses, para os quais oferecem apoio militar infindável.

Tanque israelense trafega em frente a área residencial destruída pela guerra na região palestina em Israel, que vitimou milhares desde 2023 (Crédito:Jack Guez)

● A Rússia, que mantinha bases militares na Síria e tinha Assad como um aliado estratégico, deve ampliar o suporte ao Irã e ao Hezbollah, no Líbano, já que ambos continuam em batalha com Israel.

A China está militarmente mais preocupada em investir para retomar Taiwan e montou um cerco naval sobre a ilha recentemente. Assim, seu interesse no corredor de guerras em que se transformou o Oriente Médio é de ordem econômica. Para tanto, fornece suporte logístico e tecnológico e pede em troca a preferência sobre investimentos e comércio.

O terceiro componente do quarteto, o Irã, tem personalidade bem mais guerreira e não abre mão da disputa com Israel na região com a ajuda financeira e militar a grupos anti-israelenses como Hamas e Hezbollah.

(Divulgação)

“Com a crise na Síria, os EUA avançam uma casa no Oriente Médio, que é a a bola da vez entre eles e a Rússia”
Paulo Niccoli, cientista político

A intensificação dos conflitos na região começou com a criação do Estado de Israel, em 1948, e ganhou perpetuação de caráter territorial, além da disputa com palestinos, com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kipur, em 1973. Esse enfoque alcançou especial exposição midiática quando, em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia ajudando a tornar aquele ano o mais letal em décadas, com a soma de 230 mil mortes causadas pelos confrontos.

As disputas se espalharam com força ao sul global, com batalhas letalmente significativas em Burkina Faso, na Somália, Nigéria e Sudão. Viajaram ao Sudeste Asiático, com a briga em Mianmar, mas o mitológico Deus por trás das guerras parece ter predileção médio-oriental. Em 7 de outubro de 2023, a ofensiva terrorista do Hamas contra Israel abriu o flanco mais violento de disputa entre palestinos e israelenses desde os anos 1970, na Faixa de Gaza. E no Iêmen, a guerra que começou em 2014, marca a disputa do governo apoiado pela Arábia Saudita e os rebeldes houthis, que têm recebido apoio iraniano — 300 mil morreram nestes 10 anos.

Ódio milenar

“Os atores políticos mundiais parecem seguir os mesmos para os próximos anos. No entanto, mais do que este ou aquele, há tendências políticas emergindo e se consolidando com muita força em vários países. É importante olhar para esses movimentos, e como eles se ramificam em diversas nações. Eles nos explicam sobre as dinâmicas políticas mundiais”, afirma Luís Mauro Martino.

A rivalidade sectária é, também, forte componente no efeito panela de pressão que caracteriza a região, em especial a divisão entre sunitas e xiitas – ambos seguem a Sharia (leis islâmicas), mas os primeiros são imensa maioria, arrebanhando quase 90% dos muçulmanos.

O Irã, predominantemente xiita, apoia grupos como o Hezbollah no Líbano e os houthis no Iêmen, enquanto a Arábia Saudita, sunita, é contrária a essa influência. Somados ao rancor atávico dos palestinos, de maioria sunita, e judeus israelenses, é possível estabelecer que esses são os alicerces do belicismo médio-oriental.

“Com o interesse do (presidente eleito dos EUA, Donald) Trump em acabar a Guerra da Ucrânia, há um indicativo de que esse leste europeu em guerra deve ser reduzido e, assim, o conflito deverá ser ainda mais direcionado ao Oriente Médio”, afirma Niccoli. “Também não podemos esquecer que o último ataque israelense ao Irã ainda não foi vingado, que tornaria o efeito cascata um dos cenários possíveis para 2025.”

Soldados russos envolvidos na guerra com a Ucrânia marcham em Moscou, em celebração de 79 anos da vitória sobre nazistas (Crédito:ALEXANDER NEMENOV)

Já aqueles que financiam boa parte dos conflitos têm uma atuação principal na superfície, sempre (ou quase) motivada por interesses econômicos. Uma das últimas barreiras rompidas foi com a fechada Coreia do Norte, quando esta enviou soldados aos milhares para ajudarem os russos na guerra contra a Ucrânia. No pacote, os russos receberam dos norte-coreanos e iranianos grande quantidade de drones para serem utilizados em combate, em troca de informações russas sobre bloqueio de ataques dos mesmos e de desabilitação de sistemas de GPS.

Se lembrarmos que estamos falando de alianças de caráter bélico entre potências possuidoras de armas nucleares — Rússia e China —, outra que provavelmente possui ogivas nucleares ilegais — Coréia do Norte — e uma quarta com anunciada capacidade de desenvolvimento de armas de igual letalidade em massa, como o Irã, o cenário futuro não traz à vista a promessa de paz. Não enquanto uma mão continuar lavando a outra de sangue, pelo menos.