Epidemia do cigarro eletrônico: saída é regulamentar, dizem especialistas
Por Luiz Cesar Pimentel
RESUMO
● Especialistas em toxicologia e problemas relacionados ao fumo sugerem que o Brasil deve considerar a regulamentação de vapes
● A proposta é uma forma de obter controle sobre a epidemia que abrange 5 milhões de usuários no País
O uso de dispositivos eletrônicos para fumar, popularmente conhecido como vapes, se tornou epidêmico no Brasil nos últimos anos. De 2018 para cá, a quantidade estimada de consumidores do produto decuplicou, segundo estimativas de especialistas — de aproximadamente 500 mil para 5 milhões. Isso apesar da proibição do comércio desde 2009, que teve renovação proibitiva em abril deste ano pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Na ilegalidade, a venda dos dispositivos no País acontece pelo contrabando e com os produtos que não passam por qualquer método de segurança.
Diante desse cenário catastrófico, a opinião de sete dos principais toxicologistas e estudiosos de controle de tabaco do mundo, consultados por ISTOÉ durante o congresso de Ciência, Regulação e Saúde Pública de E-Cigarettes, no Royal College of Physicians, em Londres, é unânime: o caminho da regulamentação é a saída, digamos, menos pior diante do desastre anunciado com a tendência de crescimento de consumo, especialmente entre jovens.
Dentro dos 5 milhões de consumidores do produto no mercado brasileiro, a estimativa é que 70% desses são adolescentes ou jovens adultos, em faixa dos 13 aos 24 anos.
● Pesquisa recente apontou que ⅓ de garotos de 15 anos já experimentaram vape.
● Estudo mais alarmante testou os produtos comercializados livremente em qualquer esquina de cidade grande no País e chegou a encontrar 20 vezes mais nicotina nos dispositivos em relação ao cigarro convencional.
● Além de misturas de ingredientes sem qualquer critério para dar sabores ao aerossol.
● Diante da pergunta simples e direta sobre o que o Brasil deveria fazer diante da situação, cientistas que estudam efeitos dos cigarros eletrônicos foram categóricos.
“Legalizar e regulamentar é o primeiro passo”, disse Sharon Cox, líder do grupo de Pesquisa sobre tabaco e álcool do University College London (ULC).
“Para começar, não consigo entender um lugar onde álcool e tabaco são legais e cigarros eletrônicos não. Não vejo sentido”, completou Jamie Brown, professor de Ciência Comportamental e Saúde da ULC.
Na ilegalidade, a venda dos dispositivos vapes no Brasil ocorre por contrabando.
Os produtos não passam por qualquer método de segurança
As respostas são baseadas na intenção original dos dispositivos eletrônicos para fumar, que foram concebidos na China, em 2003, por um farmacêutico que havia perdido o pai por doença relacionada ao tabaco e buscava uma opção menos nociva e que pudesse fornecer uma alternativa para abandono progressivo do vício. Só que diante do que se vê publicamente no Brasil a realidade local é quase o oposto disso, com níveis exorbitantes de nicotina e flavorizantes desprovidos de critérios de saúde.
O principal mercado usado como exemplo pelos palestrantes presentes é a Nova Zelândia, onde corre um programa de substituição de produtos para fumar com combustão por aerossóis. Eles esperam chegar a um nível de consumo smokeless (sem fumaça) já entre 2025 e uma gradual redução de consumo até geração livre de dependência nos cinco anos seguintes.
“Se considerarmos a escala respiratória, o vape regulamentado é melhor do que o cigarro, mas obviamente o melhor é respirar ar puro. Então seguimos o programa nesse princípio”, diz Robert Beaglehole, professor emérito da University of Auckland e conselheiro do programa Ash, Action for Smokefree (Ação para ambientes livres de fumo).
Controle
A regulamentação consiste, além de legalização, registro e autorização dos produtos, em:
● proibição de venda para menores,
● regras de publicidade,
● e, principalmente, fiscalização e controle da composição e regras que deem segurança na utilização de substâncias por essência perigosas e nocivas.
Assim, há minimamente restrição de pontos de vendas, tributação de fabricantes e controle sanitário. “O que acontece é que os consumidores procurarão os produtos e haverá um mercado ilegal que fornecerá. O primeiro risco é que o consumidor seja prejudicado porque comprará algo sem qualquer segurança. E a outra coisa é que você tem consequências não intencionais, como fomento ao crime organizado por quem vende etc.”, diz o diretor de Pesquisa e Ciência do BAT (British American Tobacco), James Murphy, que já trabalhou na unidade brasileira da empresa em Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul.
O raciocínio de utilização de dispositivos eletrônicos como substitutos dos cigarros convencionais começa pela ausência do tabaco e de sua combustão nos vapes.
O produto aerossol é composto basicamente por:
● propilenoglicol, líquido incolor e inodoro que serve de base,
● glicerina vegetal, igualmente uma base só que mais viscosa para formação de sabor,
● nicotina, o alcalóide psicoativo altamente viciante dos produtos para fumar,
● e essências aromatizantes, que dão aroma e sabor.
Apesar da lógica de a queima do tabaco ser a principal responsável pelos problemas respiratórios ocasionados pelo fumo, além de preponderante na incidência de cânceres relacionados, o vape não é nada inofensivo, como visto acima. E no caso brasileiro, é potencialmente mais perigoso do que os produtos de combustão, já que não seguem qualquer critério.
“O motivo da defesa da regulamentação é somente esse, ter um produto que seja mais seguro à disposição, já que o usuário vai consumir o que estiver à venda. E pelo que você diz, o acesso a produto sem qualquer critério de segurança é livre no Brasil”, afirma Alan Boobis, professor emérito de Toxicologia do Imperial College London.
“Tudo neste mundo é tóxico, e nós usamos de tudo. Nenhum produto em qualquer lugar do mundo é registrado sem estudos pré-clínicos toxicológicos. A base de qualquer regulamentação é a toxicologia, que tem como marco determinar quais doses podem ser utilizadas de determinadas substâncias”, diz em concordância a toxicologista brasileira Ingrid Taricano, presente ao congresso.
Os vapes são proibidos no Brasil desde 2009 pela Anvisa. A decisão, desde então, é baseada em quatro pilares:
● dependência de nicotina,
● falta de evidências científicas,
● doenças associadas,
● e aumento do tabagismo entre os jovens.
Apesar do avanço dos estudos científicos, os três argumentos mantém aderência de boa parte da comunidade científica brasileira. Depois da manutenção da proibição dos cigarros eletrônicos em abril deste ano, muitos especialistas seguiram em defesa da decisão.
Segundo a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Margareth Dalcomo, o vape é “uma invenção diabólica que vai gerar uma legião de pacientes com doenças crônicas”.
O aumento do número de usuários motivou o presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Hisham Mohamad Hamida, a aprovar a decisão do colegiado da Anvisa.
70%
dos usuários de vapes no Brasil são adolescentes ou jovens adultos dos 13 aos 24 anos
20 vezes
mais nicotina do que os cigarros convencionais. É a média dos cigarros eletrônicos
O professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do assunto, Marcelo Morales, foi ao evento com a opinião contrária a “qualquer acesso à nicotina”. Durante o debate, ele optou pela ponderação sobre o que os dados científicos de seus colegas apontavam. “Eu tenho dúvidas sobre o tema e estou aqui aprendendo. Eles trazem muitos estudos e se dentro do prédio da Academia Britânica estão dizendo que é necessário regulamentar o setor, precisamos considerar isso”, disse à ISTOÉ.