‘O Auto da Compadecida 2’: amizade para se guardar
Os personagens criados por Ariano Suassuna e eternizados no cinema estão de volta mais de duas décadas depois no filme 'O Auto da Compadecida 2', dirigido por Flávia Lacerda e Guel Arraes, que promete repetir sucesso entre o público
Por Ludmila Azevedo
Em Taperoá, no sertão nordestino, a rotina, a seca severa e a fé do povo seguem firmes. É como se o tempo não tivesse passado. Um conhecido contador de histórias também está por ali e, quando o interlocutor parece duvidar de um fato meio mirabolante, o bordão não falha: “Não sei, só sei que foi assim”. Mais de duas décadas depois, O Auto da Compadecida ganha continuação, dirigida por Flávia Lacerda e Guel Arraes, que bebem na fonte literária de Ariano Suassuna para mostrar as aventuras de Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele), esses heróis tão brasileiros. A estreia em 25 de dezembro não acontece por acaso, uma vez que se conecta tanto com a magia natalina quanto com a aposta de ser mais um grande sucesso de bilheteria nacional.
“Foi um prazer reviver o Chicó porque ele é uma espécie de anjo da guarda, é o meu personagem mais popular. Existe um reencontro de João Grilo e Chicó na tela, e existe um reencontro de Matheus e Selton na vida, porque a gente é amigo e torce um pelo outro. Então, essa dupla é muito preservada. Isso é uma coisa fabulosa”, explica Selton Mello.
O longa-metragem é a arte desse e de outros encontros, mas não seria cinema (e a própria vida) se não houvesse o contrário. João Grilo já não mora em Taperoá. Sem notícias do melhor amigo por anos a fio, e até mesmo acreditando em sua morte, resta a Chicó transformar a saga da ressurreição – contada no primeiro filme, relembrada com ritmo e eficiência também para refrescar a memória do espectador – em história para os turistas.
Além do elenco original, a trama ganhou personagens divertidos, como Arlindo, um temido coronel, e sua filha deslumbrada e sedutora
Eis que João Grilo aparece sorrateiramente e até o tom cinza das primeiras cenas que flagram as casinhas daquela cidade tão fictícia quanto familiar se transforma. “O Auto da Compadecida 2 é mesmo a celebração da amizade dos dois, que é fortíssima. São amigos de sobrevivência. De sobreviver com alegria num mundo sempre injusto. Mas também é a celebração da amizade dos personagens com o público brasileiro, que acompanha essa história por tanto tempo. Virou o filme preferido de muita gente. Então, a gente nunca se afastou do filme”, revela Matheus Nachtergaele.
A possibilidade de reviver a história também acompanhava os diretores cinco anos atrás. Havia projetos paralelos e, depois, a pandemia da Covid no meio do caminho. Mas tudo engrenou a partir de 2022. Guel Arraes explica que o roteiro manteve-se fiel à literatura de Suassuna, que morreu em 2014. “O João Grilo chega a Taperoá numa outra condição, ele não é um pobre coitado, é um pobre coitado mitificado e a gente ampliou o tamanho dos golpes dele. Estão ali o poder político, a religião, a crítica social e todos os grandes temas do Ariano”.
Novos rumos
Dona Rosinha (Virginia Cavendish) também está de volta à cidade, só que no modo itinerante. As idas e vindas do amor marcam seu casamento com Chicó e ela agora é uma caminhoneira. “Isso é muito incomum, e eu acho uma mensagem maravilhosa. O Guel fala que a Rosinha é a (Simone de) Beauvoir do sertão. Porque na década de 1950, as mulheres estavam em casa cozinhando, tomando conta dos filhos e esperando o marido chegar”, conta a atriz.
Dentre os rostos novos no elenco estão a Compadecida (Taís Araújo), o “malandro carioca” Antônio do Amor (Luis Miranda), o comunicador e empresário Arlindo (Eduardo Sterblitch), o coronel Ernani (Humberto Martins) e sua filha Clarabela (Fabiula Nascimento) que veio da cidade grande. “Pescar atores que têm esse arco de potencialidade de dramaturgia, tanto da comédia quanto do drama, não é fácil, tinha que ser uma escolha muito precisa. São personagens meio arquetípicos: o coronel, a Clarabela, que é um personagem do Ariano, o Arlindo, que vem trazer o consumo, a modernidade vinda dos anos 1950. Eles se entregaram de corpo e alma”, resume Flávia Lacerda.
“É uma realização e uma celebração da obra. Eu estou muito emocionada em fazer parte porque o ‘Auto 1’ mudou a minha perspectiva de interpretação. Eu estava começando a minha carreira de atriz e aí eles me abriram um universo novo de atuação no cinema”, diz Fabiula Nascimento.
Humberto Martins também comemora as possibilidades abertas com seu personagem. “Desde a televisão, eu sempre quis fugir um pouco do estereótipo do galã, do mocinho. Com o vilão, o ator tem mais elementos para poder criar e ter o que a gente chama de tinta forte”, revela.
Com tintas fortes e coloridas, O Auto da Compadecida 2 surge num momento que, segundo Matheus Nachtergaele, não poderia ser melhor. “O filme é lindo e vai contar um pouco sobre como a gente está se sentindo no Brasil, como a gente quer cultivar a nossa melhor cultura, o nosso respeito pelo povo simples, o nosso amor pela nossa língua. Tem essa potência da literatura. Era o sonho do Ariano Suassuna: elevar a cultura popular, tingir com folhas de ouro aquilo que parece simples”. É onde mora uma legítima sofisticação.