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“A inelegibilidade de Bolsonaro é irreversível”, diz ministra do STF Cármen Lúcia

Crédito: STF; Agência Brasil/EBC

“Caminhamos para a pacificação nacional”, diz Cármen Lúcia (Crédito: STF; Agência Brasil/EBC )

Por Germano Oliveira

Mineira de Montes Claros (MG), a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Cármen Lúcia é um misto de juíza durona e mulher afável, culta e destemida. Formada em Direito pela PUC de Minas Gerais em 1977, já advogou, deu aulas e foi Procuradora-Geral do Estado de 2001 a 2002, durante o mandato do então governador Itamar Franco. Ela já presidiu o STF e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no período de 2016 a 2018. Autora de vários livros, é ativa intelectualmente e sempre que pode exprime suas opiniões sobre a descriminação às mulheres. Em entrevista à ISTOÉ, diz que a tentativa de golpe por militares ligados ao ex-presidente Bolsonaro foi “uma atuação indevida, grave política e juridicamente”, mas que “felizmente as instituições funcionaram” e os golpistas não tiveram sucesso. “A democracia ficou inabalada, como gostamos de falar aqui no tribunal”. A ministra entende que todos os que se envolveram no golpe precisam ser punidos exemplarmente de acordo com o processo penal. Apesar de tudo, ela acha possível a pacificação nacional.

As investigações da Polícia Federal, conforme a imprensa divulgou, com trechos de tudo, de áudios e de confissões, mostraram o plano de matar o presidente Lula, o vice Alckmin, o ministro Alexandre de Moraes, com todos os detalhes que a gente viu lá. A sra. acha que corremos o risco de uma ruptura da democracia e até a volta à ditadura, como no passado?
Acho que houve uma atuação indevida, grave política e juridicamente. Felizmente, todas as instituições funcionaram. O Poder Judiciário atuou, a estabilidade foi mantida e, como nós dissemos aqui no STF, a democracia ficou inabalada. Os riscos são os que a gente tem na vida quando alguém se contrapõe ao que está estabelecido. Mas a democracia ficou inabalada e as instituições funcionaram, atuaram nos limites que a Constituição estabelece e continuam atuando desse jeito até este momento.

Ainda no caso do golpe, alguns militares de bom senso, como os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, ficaram contra a intentona que estava sendo armada por bolsonaristas e, por isso, os golpistas não tiveram sucesso. A sra. acha que está na hora de os militares não se envolverem na política?
Acho que eles sabem disso. As instituições militares, que são sérias e necessárias para o País, a despeito de se ter um ou outro que atue em sentido contrário, sabem cumprir a Constituição e saberão cumprir daqui em diante.

Estivemos a um passo de um golpe no qual se falava em fechar o Congresso e o STF. A sra. julga que os envolvidos precisam ser punidos exemplarmente, até para evitar impunidades? Afinal, como a sra. mesmo diz, a impunidade é uma coisa que depois forma outras ações criminosas, certo?
Entendo que, em um Estado Democrático de Direito, todo mundo que atua contra o Direito tem que responder por isso. Todo mundo. E no caso da tentativa de golpe não é diferente.

Como uma das ministras mais técnicas da Corte, a sra. acredita que essas investigações podem levar à condenação dos envolvidos?
Todos os processos penais, e este é um deles, que terminem com a comprovação de que tenha havido atuação contrária ao Direito, levam necessariamente à aplicação da lei penal, que, no caso, é condenatória.

A sra. acha que o processo dessa trama golpista pode ser concluído ainda no ano que vem, até em função de se dar uma resposta para a sociedade?
Isso eu não sei responder. O relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes, conduz o processo e tudo é feito dentro do Direito. O Direito tem seu tempo e é preciso que se garanta todas as fases do processo.

Até porque, antes do julgamento, tem a denúncia do PGR, que deve acontecer em fevereiro, né?
Tem a denúncia do Ministério Público, a atuação das defesas, enfim. O tempo do Direito é o tempo que tem que se cumprir tudo o que se estabelece no Processo Penal.

Muita gente fala que esse julgamento não pode avançar em 2026 para não contaminar o processo eleitoral…
O tempo do Direito não é o tempo da política, mas a atuação do Supremo tem sido exemplar nesses casos todos. A gente tem atuado, todos os presidentes do STF trabalham no sentido de cada vez mais diminuir o tempo de todos os processos. Não é diferente neste.

Em função da polarização política, o País tem uma grande dificuldade da normalidade democrática. Por que não é possível a pacificação nacional?
Acho que é possível sim. Em grande parte já se amenizou o momento mais turbulento que grassava na sociedade de uma forma mais geral. Acho que as eleições de 2024, que foram muito tranquilas e aconteceram rigorosamente dentro do que se espera de um Estado Democrático de Direito, mostra bem a possibilidade de pacificação. Então, o que ainda existe são esses bolsões ou grupos que continuam com esses espasmos de rumores excessivos para além do que seria a mera crítica. Acho que é preciso a pacificação geral, caminhamos para ela.

A sra. falou da tranquilidade das eleições 2024, mas aindatem esse embate entre esquerda e direita, bolsonaristas versus petistas. Além disso, o grupo ligado ao ex-presidente defende a anistia. A sra. acha que ela deve prosperar?
Essa é uma questão que afeta outros espaços que não o Judiciário. Está no Congresso, basicamente. É nesse espaço que está se dando a discussão. Então, o que é anistia? É um instituto político-jurídico, que só se verifica se é viável ou não, se é possível ou não e em que casos é possível, depois que alguém realmente, de maneira objetiva, propuser esse instrumento. Como você disse, até agora são rumores.

Bolsonaro é considerado inelegível por decisão da Justiça Eleitoral. A sra. entende que esse processo de inelegibilidade é reversível, juridicamente falando?
Os processos que já transitaram em julgado, como é o caso do ex-presidente, já terminaram e têm as suas decisões com essa característica. Julga-se e depois do trânsito não há mais o que fazer sobre o assunto.

Ainda em função do acirramento político, agravado com a tentativa de golpe por parte dos aliados do ex-presidente Bolsonaro, cujos detalhes a imprensa divulgou, a sra acredita que a Justiça Eleitoral pode tomar atitudes mais enérgicas para amenizar esses atos durante a campanha de 2026?
A Justiça Eleitoral, como um ramo do Poder Judiciário, atua específica, rigorosa e objetivamente dentro da lei. Então, qualquer processo que chegue é julgado nesse sentido, nem com maior nem com menor rigor. A lei está aí para ser aplicada e o que nós juízas e juízes fazemos é exatamente isso: executamos a lei aos casos que são submetidos. Não há nenhum afastamento da Justiça Eleitoral, nunca houve, nem do Supremo Tribunal Federal, do Poder Judiciário em geral, e vai continuar do mesmo jeito. Acho que não há o que mudar na conduta do Poder Judiciário, que é encarregado pela Constituição de aplicar a lei.

“A urna eletrônica é auditável, segura, com processo transparente e que é modelo para o mundo todo” (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Durante os quatro anos de mandato, Bolsonaro passou o tempo todo dizendo que as urnas eletrônicas não eram confiáveis, que seriam fraudadas, e aquela lorota que a gente sabe que nunca fez sentido, já que o nosso sistema eleitoral é um dos mais seguros do mundo. Mas ele questionava isso e implantou um esquema de fake news muito forte para desqualificar as urnas. A senhora julga que as fake news precisam ser duramente combatidas?
É essencial. Todo tipo de mentira que pode contaminar a liberdade da eleitora e do eleitor tem que ser combatida. Fake news tem uma possibilidade de alastramento de uma informação falsa, de uma desinformação, de uma mentira que leva a pessoa a não votar livremente com os dados que ela precisa ter sobre os fatos verídicos. Como a gente lembra, sua excelência, o fato, precisa de ser respeitado. O fato é que há uma urna eletrônica, auditável, segura, com processo transparente, que é oferecida aos eleitores brasileiros e é modelo para o mundo todo. Toda fake news, toda possibilidade de contaminação e de viralização dessas mentiras comprometem a liberdade do eleitor. E não se pode permitir que elas prosperem. O que se pretende é exatamente que haja a regulação do setor para coibir, de alguma forma, essas mentiras.

Até porque a urna eletrônica é segura por não ter ligação nenhuma com a internet, certo?
Exatamente. Não tem ligação com a Internet, ninguém tem acesso, não há mão humana ali. O eleitor vota e o que ele decidiu estará na urna. Vai ser lido também eletronicamente, sem acesso de nenhum ser humano. Todo o caminho é auditável. Temos um processo que passa por nove etapas de auditabilidade e, portanto, esta segurança a eleitora e o eleitor brasileiro têm, muito à frente dos demais países.

“O relator do processo contra Bolsonaro, ministro Alexandre de Moraes, está conduzindo tudo dentro das garantias do Direito” (Crédito:Mateus Bonomi)

Como presidente do TSE, o que a sra. tem de projetos para que se aumente a participação da mulher na política?
Há uma participação ainda irrisória da mulher brasileira nos espaços políticos, os chamados cargos de poder e, portanto, essa é uma chaga que ainda temos na nossa sociedade. Nós mulheres somos quase 53% do eleitorado e a nossa representação é ínfima no Congresso Nacional, nas assembleias. Nestas Eleições de 2024, felizmente, tivemos um aumento, mas ainda muito menor do que a gente queria. Em 231 municípios vamos ter, pela primeira vez, uma prefeita, entre os 5.569 municípios. Há municípios onde não há nenhuma mulher nas prefeituras e nem nas Câmaras Municipais. O que significa dizer que nós estamos ainda muito longe. E você falava das campanhas de desinformação. A campanha de desinformação contra a mulher é mais agressiva, desmoralizante e sexista. Ela não ataca só a mulher que queira participar da política, mas também a família, o filho, a filha, o marido, os pais, o que significa realmente uma crueldade muito grande. Nós somos um País que tem ainda uma mulher sendo morta a cada seis horas, o que é uma verdadeira guerra contra as mulheres.