Brasil

A guerra contra a fome: será que aliança do G20 vai vingar?

Presidente Lula rouba cena no G20 ao atrair apoio de 81 países, 26 organizações, nove bancos, 31 fundações e ONGs para viabilizar uma obsessão: a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Gestada na cúpula, saiu bem maior do que ela

Crédito: Ludovic Marin

Líderes do G20 deram apoio unânime à Aliança. Ao menos por enquanto (Crédito: Ludovic Marin)

Por Íris Marini

Três percentuais bastam para dimensionar o peso do G20, o grupo, a rigor, dos 21, com as 19 economias mais poderosas do planeta e as uniões Europeia e Africana: 87% do PIB global, 62% da população mundial e o controle de três a cada quatro dólares (75%) do comércio internacional. Apesar da pujança quase constrangedora em relação ao que sobra, as reuniões anuais desse clubão, com a presença de chefes de Estado e de governo desde 2008, possui caráter meramente político, e não deliberativo ou decisivo.

Quase sempre terminam em longas e adjetivadas cartas de intenções que, na maioria dos casos, derretem mais rapidamente do que o minimamente desejado, com almofadas diplomáticas reveladas em termos como “nos comprometemos” e afins. As pompas e as circunstâncias acabam sempre por funcionar como cortina de palco para uma avalanche de reuniões para acordos comerciais bilaterais, essas sim motivos verdadeiros da presença de tantos líderes poderosos.

Não foi diferente no cenário violentamente belo do Rio de Janeiro. O presidente Lula sempre soube disso. Tarimbado, roubou a cena ao conquistar a adesão de 81 países, 26 organizações internacionais, nove instituições financeiras e 31 fundações filantrópicas e organizações não-governamentais – a unanimidade, portanto – para viabilizar uma de suas obsessões: a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Gestada dentro do encontro ao sol da Cidade Maravilhosa, ela saiu dele bem maior do que ele.

● O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) anunciou financiamento de US$ 25 bilhões para a Aliança Global, o equivalente a R$ 145,7 bilhões.
● O Banco Mundial será um dos parceiros do projeto.
● O temor entre os signatários da Aliança está ligado à recusa do presidente eleito dos EUA, o republicano Donald Trump, de aderir aos compromissos firmados pelas nações, ainda que o democrata Joe Biden tenha assinado o documento.

“Desde a crise financeira global de 2008, houve a ascensão de movimentos nacionalistas em vários países, que rejeitam premissas da globalização mais aberta e liberal dos anos 1990-2000. Trump é um dos nomes de destaque desses movimentos, com um impacto maior por tomar controle da maior economia do mundo”, lembra Maurício Santoro, cientista político e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil. “Por seu histórico no primeiro mandato, deixará o Acordo de Paris. O mesmo vale para a reforma das instituições econômicas internacionais. Não há qualquer possibilidade de que Trump aceite mudanças para dar mais influência aos países em desenvolvimento.”

Chinês Xi Jinping estava mais interessado em viabilizar caminho do porto peruano ao Brasil (Crédito:Ricardo Stuckert/PR)

De acordo com o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Wellington Dias, serão instaladas bases da aliança em algumas cidades estratégicas no mundo para acompanhar as ações efetivas firmadas na Aliança.

A intenção é que haja uma espécie de escritório:
na capital dos Estados Unidos, Washington;
● na capital da Itália, Roma;
● na capital da Etiópia, Adis Abeba;
● e em Brasília.
● Possivelmente também haverá uma base na capital da Tailândia, Bangcoc, para garantir a presença da aliança também na Ásia.

O objetivo inicial da aliança, conforme relatado pelo ministro, é alcançar, até 2030:
500 milhões de pessoas com transferência de renda;
150 milhões de crianças com alimentação escolar;
200 milhões de mulheres e crianças de até seis anos, com saúde e acompanhamento da gestação e primeira infância;
● além de cem milhões de pessoas com emprego e empreendedorismo.

Carlos Rifan, internacionalista, conselheiro e fundador da Associação Nacional dos Profissionais de Relações Internacionais (Anapri), acredita que Donald Trump passará por um processo natural de adequação ao “mundo multipolar” fazendo com o que os Estados Unidos voltem a seguir as diretrizes globais da ONU quanto à erradicação da fome, da pobreza e as questões climáticas. Isso poderá beneficiar diretamente a Aliança.

“Todas as afirmativas citadas por ele vão contra as tendências de acordos comerciais internacionais, e a previsão é que fique cada vez mais isolado com o passar do tempo no cenário internacional. Mas os EUA não irão se isolar do dia para a noite, sobretudo por seu protagonismo internacional. Ele terá que adequar o discurso dele aos interesses do mundo multipolar”, argumenta.

O advogado especialista em Políticas Públicas e Mudanças Climáticas, Marcello Rodante, aponta que a fome e a mudança do clima estão entre os “maiores desafios globais” contemporâneos. “Embora as questões pareçam diferentes à primeira vista, estão profundamente conectadas em causas e impactos.”

Júlia Rossi, PhD em Geografia e coordenadora do GreenFaith Brasil, organização presente em dez países que atua fortalecendo o movimento global pela justiça climática com o público religioso, e que participou do G20 Social no Rio, afirma que “a fome e a crise climática são duas faces de uma mesma moeda: a desigualdade global”.

Daniela Lopes, assistente social, moradora e liderança do Complexo de favelas da Mangueirinha, em Duque de Caxias, é diretora do Fórum de Cozinhas Solidárias do estado do Rio de Janeiro e, como tal, participou no último dia 14 de uma Atividade Autogestionada do G20 Social debatendo astecnologias sociais de combate à fome, com mais de 200 pessoas e um GT sobre Soberania Alimentar no dia 15.

Atualmente, o Fórum de Cozinhas Solidárias conta com aproximadamente 400 unidades no Estado do Rio, ficando abaixo apenas da entidade de São Paulo. A iniciativa no Brasil, que surgiu na pandemia do Covid-19, momento em que a pobreza e a fome se agravaram, levou o Governo Federal a regulamentar em abril deste ano o agora Programa Cozinha Solidária, como relembrou Daniela.

Fora de foco

Lula sorriu para quase todos na recepção. A exceção ficou para o líder argentino Javier Milei, recebido com semblante carrancudo plenamente correspondido.

O presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, ficaram de fora da primeira foto oficial com todos os líderes do G20. Motivo? Estavam em reuniões bilaterais e não chegaram a tempo. Corrigiram a falha no retratão final de terça 20. As idas e vindas dos encontros bilaterais no Rio enfraqueceram a intenção do governo brasileiro de vincular o combate à fome aos impostos sobre empresas e cidadãos super-ricos, chamados delicada e diplomaticamente, na Carta do Rio, de “indivíduos com patrimônio líquido ultra-alto” (leia texto ao lado).

Trump ameaça abandonar o Acordo de Paris sobre controle da temperatura média do planeta e não quer saber dessa conversa de mais imposto para endinheirados. Antes, o contrário: promete diminuir as taxações atuais sobre a turma do andar de cima.

A Alemanha apoiou a Aliança, mas o chefe de governo, o chanceler Olaf Scholz, fez questão de deixar claro que não irá condicionar a questão à taxação extra dos bilionários do país. Como o documento final deixa claro que o mecanismo só poderá ser executado internamente, de acordo com leis nacionais, calcular o quanto cada país colocará na causa é tarefa impossível.

O chinês Xi Jinping não fez questão de esconder que estava por aqui para tentar incluir o Brasil na chamada Nova Rota Comercial da Seda.

Em setembro de 2004, Lula lançou uma ação global contra a fome em discurso na ONU. Foi elogiado de forma quase unânime por líderes e a mídia mundial. O tempo se encarregou de mostrar que, na ausência de contrapartida, a turma abraça causas bonitas com os holofotes acesos e se recolhe no momento sem glamour de coçar o bolso. Tomara que desta vez não seja assim.

Ricardo Stuckert/PR