Editorial

A fome como alvo global

Crédito: Mauro Pimentel

Carlos José Marques: "Lançar recursos em prol do auxílio a países carentes conta muito, mas o Brasil precisa ir com cuidado sob o risco de entregar mais do que pode" (Crédito: Mauro Pimentel)

Por Carlos José Marques

Lula marcou um tento significativo com a reunião do G20 que ocorreu no Rio de Janeiro dias atrás. Foi além do protagonismo que lhe era garantido como anfitrião do encontro. Arrematou um inédito acordo com mais de 80 países que assinaram o compromisso em prol do combate a fome, certamente a maior bandeira que sempre marcou suas gestões e história política. A aliança global para buscar saídas contra a insegurança alimentar e a pobreza é decerto tarefa inadiável, como ele próprio diz. As principais formas de ajuda previstas passam por perdões de dívidas – mais de US$ 1 bilhão somente na África –, projetos de cooperação em diversas áreas sociais e doação de alimentos. No caso brasileiro, o governo já fornece atualmente mais apoio internacional a nações pobres do que recebe das ricas. Uma desproporção perigosa. Na diplomacia externa nascem vitórias a partir de movimentos calculados dentro do tabuleiro dos entendimentos. Lançar recursos em prol do auxílio a países carentes conta muito, mas o Brasil precisa ir com cuidado sob o risco de entregar mais do que pode. O empenho e a habilidade do presidente em pessoa têm, porém, feito a diferença. Em 2022 o Brasil tinha 33,1 milhões de pessoas enfrentando algum tipo de insegurança alimentar e nutricional grave. No ano passado esse número desabou para 8,7 milhões de brasileiros. Em termos estatísticos passou de 15,5% da população para 4,1%. Ainda é uma percentagem abominável, mas Lula sinaliza trabalhar na direção certa e a nova aliança deve colaborar nesses esforços aqui e lá fora. Com a declaração dos líderes do G20 em sua carta de intenções, o demiurgo de Garanhuns galgou mais um tento no plano dos direitos humanos, onde se projeta com força. É bem verdade que o aparecimento de Donald Trump na cena, como futuro presidente dos EUA, pode frustrar muitos dos planos pretendidos e assinalados na conferência do G20, afinal os consensos sem o aval americano funcionam como letra morta e Trump não é Biden. De todo modo, nada arranha o feito alinhavado por Lula nesses dias de negociações de cúpula. O reconhecimento global está registrado. Trump, um antiglobalista, até busca sabotar iniciativas gestadas em discussões multilaterais. É refratário a acordos coletivos por defender atavicamente o seguinte princípio fascista: tudo aos EUA e o banimento de imigrantes ilegais. O confronto de projetos tão antagônicos deve marcar o próximo quadriênio que equivale ao mandato do republicano. Da parte brasileira, o governo se diz disposto a lutar por melhorias significativas nessa área e já angariou algum recurso para tal via com o interesse de estadistas presentes ao G20. A conferência serviu também para que muitos demonstrassem seus receios diante das seguidas guerras de ocupação – Ucrânia e Gaza – e devido aos “múltiplos desafios”, quase intransponíveis, que se surgem decorrentes desse quadro. “O mundo está pior”, apontou Lula, reconhecendo com certo realismo o clima sombrio que paira sobre o planeta — segundo ele, inclusive, pelo avanço inequívoco do terrorismo. “Estive na primeira reunião de líderes do G20, convocada em Washington no contexto da crise financeira de 2008. De lá para cá, constato, com tristeza, regredimos”. A união pelo combate a fome representa, na sua maneira de enxergar, uma espécie de vacina contra a intolerância que atualmente domina muitos países. Quem sabe, ele esteja certo.