A tragédia do Sul continua: saiba como o RS vem tentando sair da crise
Meio ano após o maior desastre natural do Rio Grande do Sul, a população ainda enfrenta dificuldades. Conta das enchentes já beira os R$ 100 bilhões e o estado continua em reconstrução
Por Melina Guterres
Seis meses após as enchentes de maio de 2024, o Rio Grande do Sul ainda enfrenta os impactos da maior tragédia natural de sua história. O evento devastador, que deixou 183 mortos e 27 desaparecidos, transformou cidades e áreas rurais em cenários de destruição, desafiando milhares de famílias a reconstruírem suas vidas. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o prejuízo econômico causado pela crise pode chegar a R$ 97 bilhões, sendo R$ 58 bilhões apenas no RS. O impacto pode comprometer até 9,86% do PIB gaúcho e causar uma retração de 1% no PIB nacional. Além disso, cerca de 305 mil empregos formais estão em risco, tanto no estado quanto em outras regiões do país.
● Para mitigar os danos, o Governo Federal destinou R$ 100,4 bilhões em recursos, incluindo a suspensão de R$ 23 bilhões da dívida estadual.
● Foram transportadas 32 mil toneladas de doações e liberados R$ 1,9 bilhão para o Auxílio Reconstrução, que beneficiou 374 mil famílias com R$ 5.100 cada.
● Outras medidas incluem a ampliação do Bolsa Família para 619.741 novas famílias e o Auxílio Trabalhador, que destinou R$ 285 milhões a mais de 102 mil pessoas.
● No campo econômico, o apoio incluiu linhas de crédito como Pronampe (R$ 30 bilhões) e Peac (R$ 5 bilhões). Para o setor rural, foram disponibilizados R$ 210 milhões em seguros e incentivos para recuperação de propriedades afetadas.
No nível estadual, o governo do RS investiu R$ 2,4 bilhões em ações emergenciais e lançou o Plano Rio Grande, programa focado em reconstrução, adaptação e resiliência climática.
Na capital, Porto Alegre, onde 30% do território foi impactado, os investimentos ultrapassam R$ 854 milhões, beneficiando mais de 160 mil famílias.
Em áreas rurais, a Secretaria de Agricultura destinou R$ 50 milhões para restauração de estradas e vias essenciais para o escoamento da produção agropecuária. Um recurso adicional de R$ 107,7 milhões será disponibilizado para cidades em situação de emergência.
As enchentes atingiram mais de 206 mil propriedades rurais, resultando em prejuízos estimados em R$ 4 bilhões ao agronegócio gaúcho.
● Relatórios apontam que levará ao menos uma década para a recuperação completa do setor.
● Apesar dos esforços, a reconstrução está longe de ser concluída.
● As cicatrizes da tragédia permanecem visíveis, enquanto milhares de gaúchos enfrentam o desafio de retomar suas vidas e o estado busca reerguer sua economia diante de incertezas climáticas e econômicas.
Autoridades destacam tanto os esforços realizados quanto os desafios ainda presentes. Divergências quanto às formas de repasses dos recursos também são apontadas. O Governo Federal, segundo Paulo Pimenta, ministro da Secretaria de Comunicação, desenvolveu a maior ação de apoio a um estado já registrada no país. “Desde o primeiro momento, tivemos presença em todas as áreas. O Governo Federal já liberou mais de R$ 50 bilhões para infraestrutura, apoio às empresas e diretamente às pessoas. Ainda há muitos passos a serem percorridos, especialmente na revitalização e construção de diques e na habitação, com a meta de construir cerca de 30 mil residências no estado”, afirmou, ressaltando que a execução das obras cabe aos municípios e ao estado, que devem aplicar os recursos federais.
No governo estadual, o vice-governador Gabriel Souza ressaltou a importância de planejamento estratégico para enfrentar o futuro. “Avançamos na assistência emergencial e no início da reconstrução com o Plano Rio Grande. Já investimos R$ 2,4 bilhões, mas seguimos com desafios estruturais, como acelerar obras de contenção de cheias e redesenhar áreas de risco para evitar novas tragédias.”
Médio e longo prazos
O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, destacou as ações emergenciais já em andamento na capital, afirmando que o município está focado em dois pilares: a recuperação imediata e a implementação de obras definitivas. Também destacou a necessidade de apoio do estado e da União para acelerar o andamento dessas obras. “A nossa estratégia de governança aqui é convencer o estado do Rio Grande do Sul, que suspendeu o pagamento de uma dívida pesada por três anos, a utilizar parte desse dinheiro para investir em obras essenciais, como aquelas que estamos realizando na cidade”, afirmou.
Maneco Hassen, secretário de Apoio às Enchentes no RS, lembrou que “esta tragédia nos ensinou que o Brasil precisa estar melhor preparado para eventos como esse, que tendem a se repetir devido à falta de cuidado com o meio-ambiente”, disse, destacando a importância de protocolos e medidas preventivas.
Em Santa Maria, primeira cidade atingida pelas enchentes, o prefeito Jorge Pozzobom também ressaltou a necessidade de rapidez na liberação de recursos. “Precisamos de projetos prontos e recursos no fundo municipal da Defesa Civil para agir rapidamente”, afirmou.
Já Luís Henrique Kittel, prefeito de Agudo, destacou o trabalho intenso para superar os danos causados pelas chuvas. “Mobilizamos mais de R$ 6 milhões em investimentos, que têm sido fundamentais para a reconstrução das áreas afetadas.” Com a reconstrução ainda em curso, os próximos anos serão marcados por esforços contínuos para melhorar a infraestrutura e preparar o estado para enfrentar futuros eventos climáticos extremos.
Acolhimento
Funcionários de empresas de assistência técnica têm se tornado pilares emocionais para as famílias rurais atingidas pelas enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. Esse acolhimento, além do apoio técnico, é crucial para a recuperação de quem perdeu tudo.
A produtora de leite Clair Tuchtenaggen, de Agudo, expressou sua gratidão à bióloga Claudia Bernardini, da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), que tem trabalhado na região atendendo as famílias afetadas. “Você não sabe a força do teu abraço”, disse Clair, que, junto com seu marido, Semildo Gomes da Silva, presidente da Associação de Produtores Rurais de Agudo, e a filha Paloma, de 10 anos, viu sua vida ser devastada pelas águas. A família perdeu 16 animais, galpão, equipamentos e teve a casa invadida pela cheia. Agora, vivem na casa de amigos, enquanto tentam construir uma nova moradia e um galpão em um local mais seguro. “Trabalhamos mais de 16 horas por dia para garantir o sustento e pagar as dívidas”, conta Clair. A família ainda apela para que os juros dos financiamentos sejam reduzidos, já que “tem gente desistindo do campo”, segundo Semildo.
Outro casal, Gildson e Roselei Binder, que cultiva fumo em uma pequena propriedade, enfrentou situação similar. Casa e galpão foram destruídos, e eles agora vivem de favor. Apesar das dificuldades, o casal conseguiu receber o auxílio de reconstrução do governo federal, no valor de R$ 5 mil, e aguardam apoio da prefeitura para erguer uma nova casa em um local seguro. “A sorte é que já tínhamos vendido o fumo antes da cheia, se não, não sei o que seria de nós agora”, relata Roselei. A próxima safra, prejudicada pela situação, só deverá ser colhida no ano que vem.
Para o engenheiro agrônomo e Gerente Regional da Emater-RS, Guilherme Passamani, o impacto emocional nos agricultores é alarmante. “Eles enfrentam frustrações sucessivas, e as perdas de 2024 foram o ponto culminante. A saúde mental das famílias está em risco, pois muitos não perderam apenas bens materiais, mas também um patrimônio cultural e histórico”, afirmou. Passamani também ressaltou a importância do desassoreamento dos rios, apontando que até mesmo chuvas moderadas têm causado transbordamentos nas margens afetadas.
Claudia Bernardini, que atua no apoio direto às famílias, ressalta que o acolhimento emocional é fundamental neste momento. “Muitas pessoas estão traumatizadas, e nós acabamos sendo uma espécie de apoio psicológico também. Ainda há desinformação sobre os programas de auxílio, e muitos têm vergonha de pedir ajuda. São pessoas que sempre trabalharam, nunca precisaram recorrer a benefícios sociais”, explicou a bióloga.
A solidariedade entre vizinhos, voluntários e técnicos de campo continua sendo um alicerce para a recuperação das famílias no meio rural, enquanto tentam reconstruir suas vidas em meio à incerteza sobre o futuro.