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Isolacionismo e negacionismo de Trump vão atrasar o Brasil? Analistas comentam

Crédito: Chip Somodevilla

"Recebi um mandato poderoso e sem precedente", disse Donald Trump, no discurso de vitória (Crédito: Chip Somodevilla)

Por Denise Mirás, Mirela Luiz e Eduardo Marini

RESUMO

● O jornal francês Le Monde resumiu o significado do resultado das eleições americanas: “Ele revela o fim de um ciclo, iniciado na Segunda Guerra, de uma superpotência aberta e engajada no mundo democrático”
● Os quatro anos do primeiro mandato de Trump (2017-2021) foram marcados por xenofobia, supremacia branca, negacionismos ambiental e de saúde, discurso racista, repulsa a imigrantes e minorias, notícias falsas e promessas ilusórias ao público interno.
● Agora, ele quer tudo de novo, “again”, em edição não revista, mas ampliada.

E ainda mais: novas taxações de produtos estrangeiros, aumento de juros internos, distanciamento ainda maior dos projetos internacionais de cooperação ambiental, ações para desvalorização de outras moedas frente ao dólar, ameaças ao México com mais tropas e um muro ainda mais robusto e opressor na fronteira, afrouxamento da política de defesa à países europeus, cada vez mais ameaçados pelo líder russo Vladimir Putin e outros venenos potenciais para o resto do mundo. Que certamente também ficará pior — e o Planalto, mais do que nunca, precisará saber como lidar com o radical ególatra que, uma vez mais, sequestra a racionalidade na maior superpotência mundial.

Eleitora festeja a vitória do republicano Trump (acima) sobre a democrata Kamala (Crédito:Evan Vucci)

“Trump representa um grande desafio para as relações internacionais. Será um problema e um retrocesso na questão do meio ambiente. Abandonou o Acordo de Paris, deverá reverter projetos de transição energética do governo Biden e certamente não dará apoio às discussões futuras na COP”, enumerou à Radio CBN o ex-ministro das Relações Exteriores e professor emérito da USP Celso Lafer. “No plano internacional, a defesa pública das democracias europeias e bálticas, frequentemente ameaçadas pelo líder russo Vladimir Putin, deixará de ser feita como ocorreu historicamente. Além de ser negacionista, tem desprezo pelo outro, com revelam suas posições e ações contra os imigrantes.”

“A democracia, como voz do povo, deve sempre ser respeitada. O mundo precisa de diálogo e trabalho conjunto.”
Presidente Lula, ao congratular Trump pela vitória

A parte do mundo regida pela sensatez foi unânime em condenar o novo período de obscuridade legitimado pelo eleitor americano. Com o título “A América Faz Uma Escolha Perigosa”, o jornal americano The New York Times, o maior do mundo, não mediu palavras em um editorial na quarta-feira, 6: “Nos próximos quatro anos, os americanos devem estar cientes da ameaça à nação e às suas leis que virá do seu 47º presidente e estar preparados para exercer seus direitos em defesa do país e das pessoas, leis, instituições e valores que o mantiveram forte”. A revista The Economist, outro pilar do jornalismo mundial, não poderia ter sido mais explícita: “Um segundo mandato de Trump traz riscos inaceitáveis. Se The Economist tivesse direito a voto, votaríamos em Kamala Harris”.

“O Brasil e a União Europeia estão mais preparados para o receituário de Trump de provocar o caos e atritos mesmo com parceiros.”
Flavia Loss, especialista em Relações Internacionais

A eleição de Trump foi percebida como a vitória do machismo, do racismo e da xenofobia de parte dos eleitores americanos, que não levaram em conta os bons índices econômicos do país nem tampouco os benefícios sociais conquistados na Era Biden.

Diante da alta de preços nos supermercados e do discurso de terror contra residentes ilegais, votaram com o bolso, a barriga e o medo. Em meio ao provável reposicionamento da geopolítica global, nos próximos anos o Brasil precisará, no mínimo, de planos estratégicos para se abrir a mais parcerias econômicas. E também se manter alerta até a eleição presidencial de 2026, para resguardar instituições e evitar tentativas de golpe contra o governo e a democracia engatilhadas por meio das redes sociais e a enxurrada de fake news. Não é pouco: tudo isso certamente será amplificado com a eleição do extremista de direita nos EUA.

“A vitória de Trump reforça políticas mais protecionistas e a tendência
de aumento da pressão inflacionária, o que poderá elevar taxas de juros nos EUA”
Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e professor da FGV

(David Becker)

Trump disse que recebeu um mandato “poderoso e sem precedentes”. Fato.
Venceu as eleições em quantidade de delegados e votos absolutos,
com a maior vantagem para um conservador em 20 anos,
conseguiu maioria na Câmara e no Senado,
e somou essas conquistas à influência que já exerce na Suprema Corte, com apoio de uma maioria de juízes reforçada por nomeações feitas por ele mesmo.

Ao final do dia, como gostam de dizer os americanos, sua vitória pode ser classificada de larga. A força do eleitor trumpista silencioso, orientado a não responder pesquisas desde a tentativa de golpe com a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, foi enfim revelada.

Trump com o presidente do UFC, Dana White, e o empresário Elon Musk durante a apuração (Crédito:Divulgação)

América primeiro

O presidente eleito está pronto para desconstruir instituições, aproveitando-se delas para corroer a democracia por dentro, agora com aval explícito da população. Pode colocar em prática suas bravatas e tratar pessoas como lixo de fato, fechando fronteiras e executando deportação em massa.

• Isso com apoio, como apontado em pesquisas, do meio rural, mas também de imigrantes hispânicos, negros em alguns estados e evangélicos por todo o país — o que também detecta a misoginia explícita entre o eleitorado vitorioso.

Trump reinará com o isolacionismo propalado por seu “America First (América Primeiro)” sem qualquer rédea quanto a taxação de produtos de outros países.

• Preservação do planeta diante de extremos climáticos acelerados? Passará longe, assim como de direitos reprodutivos ou ajuda humanitária em Gaza. Em sua marcha rumo ao retrocesso, está mais preocupado em acentuar o confronto com a China pela hegemonia mundial, acirrando as já instaladas guerras comercial e tecnológica.

Festa de Kamala (acima) foi adiada e as lembranças abandonadas (Crédito:Bastien Inzaurralde)

O presidente Lula, que revelou publicamente sua preferência por Kamala antes da votação final, apressou-se em reconhecer a vitória do republicano, parabenizando Trump e frisando que “a democracia, como voz do povo, deve sempre ser respeitada”. Mas destacou que “o mundo precisa de diálogo e trabalho conjunto”.

Flavia Loss, coordenadora de Pós-Graduação em Relações Internacionais da FESPSP, lembra que, à parte o resultado da eleição americana, a diplomacia e a burocracia pública continuarão a funcionar no nível de Estado, com diálogo e comércio, mesmo numa situação mais complicada entre presidentes. “As relações internacionais seguem fluindo a despeito de governos, como se nota no caso da Argentina de Javier Milei e do Brasil. Mas, como se dá por meio de conversas, se o diálogo e a interação em fóruns internacionais diminuem, aumenta a dificuldade de funcionamento da relação bilateral. Sozinha, a diplomacia não dá conta de tudo.”

O mundo, crê a professora, vem se planejando para o cenário de ódio caso Trump não separe a retórica da prática: “O Brasil e a União Europeia estão mais preparados para o receituário de provocar caos e atritos mesmo com parceiros”.

De imediato, um aspecto preocupante, no caso brasileiro, será a sobretaxa de produtos. Em 2018, apesar de ter do outro lado o “amigo” Jair Bolsonaro, Trump elevou taxas de importação do aço em 25% e do alúmínio em 10%, para “aparecer” diante do público interno (mas depois recuou).

Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, lembra que, no governo Bolsonaro, o Brasil teve “zero” de apoio comercial por parte do republicano. Pior: “Trocou uma Ferrari por um cacho de bananas, quando o presidente brasileiro aceitou abrir mão do apoio de Trump junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em favor do ingresso na Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE)”.

(Susan Walsh)

A Europa teme não apenas a política tarifária de Trump contra seus produtos, mas também a entrada de mais produtos da China. Isso porque depende muito de tecnologia, como o 5G, e de maquinário daquele país. Flavia Loss lembra ainda do fantasma dos EUA “largando a mão da Ucrânia”, o que assusta a União Europeia. Países “em cansaço de guerra” não conseguirão levar adiante a defesa contra a Rússia. “A Alemanha se adianta e prepara uma proposta de paz que eleve a Ucrânia a território neutro, como a Finlândia no pós-Segunda Guerra. Com a chegada de Trump, a finlandização, como se está nomeando, envolveria costuras com Índia, China e mesmo Brasil”, destaca a professora.

O próximo mandato de Trump será um reforço do primeiro, como diz Clarissa Forner, membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). “Se no primeiro estiveram em risco as instituições democráticas, no segundo esse risco ficará mais aprofundado, porque o poder presidencial nos EUA é relativamente grande. Ele já colocou a guarda nacional nas ruas contra manifestações populares e não blefa quando diz que vai usar o aparato de segurança contra adversários.”

Mesmo porque terá nas mãos o Congresso e a Suprema Corte, dispositivos constitucionais da democracia que podem agora legitimar o autoritarismo e o modus operandi do presidente eleito. “Ele questiona instituições e as usa contra a democracia, dando voz a pessoas que atuam pelas sombras e ainda fortalece o radicalismo pelo mundo.”

O professor Roberto Menezes destaca que assessores de Trump já anunciaram apoio à extrema-direita usando orçamento da Agência Americana de Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), que, na teoria, atua contra a pobreza e na garantia de direitos humanos, mas poderá ter ajuda direcionada a governos e movimentos radicais — como no caso da eleição brasileira para a Presidência em 2026.

Morde e assopra

Luciana Mello, professora na IBMR-RJ e consultora de Comércio Exterior, diz que “há questões fundamentais para ele e para nós, vistas por ângulos diferentes”. Trump, diz ela, está preocupado com sua economia, que influi muito nos interesses globais e brasileiros.

Um segundo ponto é a relação de “morde e assopra” com a China. Ao menos na teoria, não haveria um rompimento brusco e total com Pequim porque não podem simplesmente se livrar um do outro. “Entre os dois extremos tudo interessa ao Brasil, porque o fluxo de capital que circula pelo mundo é dos EUA e a China é importante mercado exportador e importador. O que o Trump pode fazer é infligir medo, ameaçando com supertarifas e componentes de coerção”, analisa.

De positivo, o que a eleição de Trump pode gerar é a ampliação de mercados para o Brasil, como o do Oriente Médio, observa o professor Rodrigo Amaral, da PUC-SP. E também acelerar o comércio com os chineses no campo da transição energética, como lembra Menezes, com mais investimentos em carros elétricos e nos setores eólico, solar e de hidrogênio verde.

A história bilateral das relações entre EUA e Brasil se mostra positiva e constante, aponta Amaral, mesmo em momentos de tensão ou divergências ideológicas, como à época da invasão do Iraque por George W. Bush, condenada por Lula. “Tem havido busca de consenso para não desfavorecer relações diplomáticas e comerciais”, observa. “Se hoje o Brasil tem mais poder de barganha, os EUA também não são mais os manda-chuvas totais do cenário, como nos anos 1930, quando só eles e a Alemanha eram ‘mercado’. Agora temos países com grande poder comercial, como China, mesmo não sendo o melhor modelo, ou Rússia, menos ainda, mas também Índia. Mudanças significativas não ocorrem a curto prazo.”

O que assusta, assinala o professor, é a democracia sendo corroída. “Para onde estamos indo quando um país visto como a maior democracia do mundo elege antidemocratas?”

Oportunidades

Luciano Santos, professor de Ciências Sociais do Uniarnaldo Centro Universitário, também chama atenção para as oportunidades do País no novo cenário. Para ele, a abordagem isolacionista de Trump poderá levar o Brasil a buscar novos parceiros comerciais, diversificando relações. “Monitorar mudanças nas políticas comerciais e regulamentares dos EUA, diversificar mercados e investir em tecnologias sustentáveis, para manter a competitividade, serão tarefas fundamentais”, diz.

● No primeiro mandato, Trump desmantelou regulamentações cruciais que visavam a proteger o meio ambiente. Agora, o Brasil poderá ver a flexibilização de normas ambientais. O desinteresse estratégico do republicano na pauta poderá criar um terreno fértil para o desmatamento na Amazônia, favorecendo a parcela do agronegócio indiferente aos prejuízos causados pela exploração desenfreada de recursos naturais. Se o governo brasileiro não se posicionar firmemente contra essa onda de desregulamentação, o País poderá se transformar em mero apêndice das ambições de Trump.

● Alguns setores, como o de tecnologia, podem até ser beneficiados. “A expectativa é de que Trump adote postura mais flexível em relação às regulamentações impostas durante o governo democrata, beneficiando empresas de tecnologia estrangeiras”, avalia Paulo Luives, especialista da Valor Investimentos.

● Além disso, a tendência de cortes de impostos promovida por Trump e outros governos republicanos pode proporcionar alívio adicional para as empresas americanas, incentivando investimentos e expansão. Mas tarifas continuarão a trazer problemas.

● “O Brasil terá dificuldades comerciais para colocar alguns produtos no mercado americano. É certo que teremos tarifas mais altas”, avalia Juliana Inhaz Kessler, coordenadora da graduação em Economia no Insper.

● Outro aspecto relevante é o contexto geopolítico: o novo eleito expressou suas posições sobre a resolução de conflitos, como no caso da Ucrânia, o que pode impactar as relações econômicas e comerciais.

Trump deverá tornar rigorosas as barreiras comerciais que afetam exportações de commodities como soja, carne e minério de ferro, interesses diretos do Brasil. E também favorecer regimes autocráticos na Europa e na América Latina, minando a já questionada liderança democrática do Brasil na região. Os frutos da relação próxima entre Trump e líderes populistas, como Jair Bolsonaro e Javier Milei, darão trabalho constante às instituições democráticas sul-americanas.

“Acho Trump ruim para muito além da economia, mas ele e Lula apoiam Putin”
Elena Landau, economista

Por fim, as pressões do Brasil e de outros países influentes para a manutenção de compromissos ambientais deverão ser mais fortes do que nunca, ainda que, ao fim das contas, resultem em pouco. O que resta ao País e ao mundo é não considerar a nova eleição de Trump apenas um obstáculo, mas também um chamado à ação. A hora é de agir — antes que a sombra do trumpismo se torne uma realidade insuportável.