De frente com Clarice Lispector, a entrevistadora
Reunidas em nova edição, entrevistas realizadas por Clarice Lispector trazem o olhar perspicaz que revela um lado pouco conhecido de grandes personalidades brasileiras
Por Felipe Machado
Clarice Lispector não gostava de dar entrevistas, mas era apaixonada pela arte de entrevistar. Conhecida por seus romances complexos e contos intrigantes, foi uma jornalista brilhante. Na verdade, tendo trabalhado para veículos de imprensa entre as décadas de 1940 e 1970, pode ser considerada uma das primeiras mulheres jornalistas do Brasil. Acumulou ao longo dos anos uma extensa coleção de textos, produzidos a partir de encontros com grandes nomes da cultura, política e sociedade civil. E sempre imprimindo seu estilo único de conversa: “A entrevista me dá mais prazer do que a crônica, porque não fico falando sozinha: ouço também”, afirmava.
A nova edição de Clarice Lispector Entrevista (Rocco) apresenta ao todo 118 entrevistas, 35 delas inéditas até agora. Foram originalmente produzidas para as revistas Manchete (1968-69) e Fatos & Fotos: Gente (1976-77), além do livro De Corpo Inteiro (1975). A obra oferece detalhes do seu modo de trabalho, que preferia tomar notas à mão, sem o uso de gravador. Com um olhar perspicaz, ela mostra lados pouco conhecidos dos entrevistados e oferece ao leitor pistas sobre seu próprio processo criativo — que revelam muito da sua marcante personalidade.
Chico Buarque
Ao ter adquirido uma maior maturidade, deslumbrou-se com as próprias capacidades, entrou numa roda-vida e ainda não pôs os pés no chão.
Que é que você acha: já se habituou ao sucesso?
Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito lentas, mas sou um vivo. Só que pôr os pés no chão, no sentido prático, me atrapalha um pouco. Tenho uma pessoa que me explica os contratos porque não consigo prestar atenção a certas coisas. O sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem em nada para mim. A gente tem a vaidade da gente, a gente se alegra, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento com que procuramos buscar e achar. Hoje, por exemplo, acordei com um sentimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.
Eu também me sinto perdida depois que acabo um trabalho mais sério.
Tenho uma inveja: o meu trabalho de música está exposto a um consumo rápido e eu praticamente não tenho o direito de ficar pensando numa ideia muito tempo.
Para você, qual é a coisa mais importante do mundo?
Trabalho e amor.
Tônia Carrero
O que você mais deseja no mundo, Tônia?
Paz. Não sei se desejo que o homem chegue à Lua ou não. Mas se homens partirem, desejaria que retornassem com sentimento de dever cumprido. Outra coisa que eu desejo muito é custar bastante a envelhecer. E também a ser útil no que faço. Você me parece hoje muito vaga.
Que é que você tem, Clarice?
Não só estou vaga como de inteligência um pouco lenta. É porque não dormi esta noite.
E o que você faz quando não dorme?
Dou a noite por encerrada, esquento café e tomo. Eu também tenho muita insônia. Aconselho você a fazer palavras cruzadas e a jogar paciência. E a não tomar café, como você faz.
Nelson Rodrigues
Você é de esquerda ou de direita?
Eu me recuso a ser de esquerda ou de direita. Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de coisas que li sobre as guerras. Verifiquei o óbvio ululante: de parte a parte são todos canalhas. Rigorosamente todos. Não quero ser um canalha da esquerda, nem da direita.
Você se referiu à solidão. Sente-se um homem só?
Do ponto de vista amoroso, encontrei Lúcia. Mas é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal. Mas, diante do resto do mundo, sou um homem maravilhosamente só. Uma vez fiquei gravemente doente. Recebi três visitas em três meses de agonia, uma por mês. Note-se que minha doença foi promovida pela imprensa. Aí sofri na carne e na alma essa verdade intolerável: o amigo não existe.
Elis Regina
Por que você canta, só porque tem a voz magnífica?
Há pessoas de ótima voz que não cantam nem no banheiro. Sei lá, Clarice, acho que comecei a cantar por uma absoluta e total necessidade de afirmação. Eu me achava um lixo completo, sabia que tinha uma voz boa, como sei, e então essa foi a maneira para a qual fugi do meu complexo de inferioridade. Foi o modo de me fazer notar.
O que você sente pouco antes de enfrentar o público: segurança ou inquietação?
Inquietação. Sou segura em relação ao que vou fazer, mas inquieta quanto à reação das pessoas que me ouvirão.
Se você não cantasse, seria uma pessoa triste?
Seria uma pessoa profundamente frustrada e estaria buscando alguma outra forma de afirmação. Mas não tenho a menor ideia qual seria, porque me encontrei tanto nessa coisa de cantar que nunca nem pensei nisso.
Lygia Fagundes Telles
Como nasce um conto seu? Ou um romance?
São perguntas que ouço com frequência. Procuro então simplificar essa matéria, que nada tem de simples. Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia de um enredo pode ainda se originar de um sonho.
Para mim a arte é uma busca. Você concorda?
Sim, e sua marca é a insatisfação. É preciso se aventurar. Desconfio da facilidade com que as palavras se oferecem.
Oscar Niemeyer
Qual seria a solução arquitetônica para as favelas cariocas?
Nenhum arquiteto consciente se propõe a resolver o problema das favelas. Sabe que a miséria decorre da injustiça social e que o êxodo do homem do campo rumo aos grandes centros tem sua origem na situação de exploração que há séculos o persegue. É possível apenas mudar as favelas de lugar. Para extingui-las, teríamos que ir fundo no problema que se baseia na discriminação social e, desculpe o lugar-comum, na exploração do homem pelo homem.