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Acordo sobre barragem de Fundão: veneno ainda escorre de Mariana

Crédito:  Leo Correa/AP Photo

Indígenas Krenak remam em canoa no Rio Doce após o rompimento da barragem do Fundão (Crédito: Leo Correa/AP Photo)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• Atuação irresponsável a partir do maior acidente ambiental brasileiro deflagrou contaminação potencial de mais de 600 mil pessoas nos 650 km de trajeto de rio por onde os rejeitos passaram
• Acordo firmado entre a União, estados e empresas responsáveis extingue ação de indenização das vítimas

A 10 dias do nono aniversário da maior tragédia ambiental da história brasileira – o rompimento da barragem de Fundão, na mineira Mariana – as partes chegaram a um acordo celebrado como se a Justiça finalmente estivesse sendo feita, embora tardia. O acidente, que matou 19 pessoas, destruiu completamente duas cidades e devastou o meio-ambiente em escala incalculável, custou às responsáveis – Samarco, Vale e BHP — R$ 170 bilhões em parcelas anuais ao longo 20 anos, com foco em ações reparatórias e compensatórias para as comunidades afetadas, como pescadores, agricultores e indígenas. Só esqueceram das 600 mil pessoas afetadas diretamente pelas medidas tomadas logo após o desastre, principalmente na intoxicação da bacia do Rio Doce em todos os 650 quilômetros que os rejeitos percorreram da cidade mineira até o Oceano Atlântico em 17 dias, trajeto onde os efeitos repercutem nocivamente até hoje.

Após o anúncio do acordo, a Associação Nacional de Defesa dos Consumidores de Água e de Vítimas do Uso do Tanfloc protocolou petição junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a homologação do combinado entre União, estados de Minas Gerais, Espírito Santo e companhias envolvidas, que extingue a ação civil pública em que reivindicam indenização de R$ 177,2 bilhões.

Bento Rodrigues foi uma das localidades destruídas (Crédito:Christophe Simon)

O protagonista da ação coletiva para reparação das 600 mil vítimas atende pelo nome de Tanfloc.
Trata-se de um coagulante utilizado no tratamento de águas em geral e de resíduos industriais.
A mineradora em Mariana tinha como produto principal a confecção de pelotas de minério de ferro, quando o material bruto passa por diferentes processos até que seja transformado nas esferas ferrosas.
No processo, todo o rejeito que sobrava era depositado na barragem de Fundão, que virou uma imensa montanha da mesma dimensão que a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, com 2.6 milhões de metros quadrados, mas dez vezes seu volume, com 62 milhões de metros cúbicos de lixo tóxico misturado à lama.

Ao romper a barragem, em 5 de novembro de 2015, areia, ferro, resíduos de alumínio, manganês, cromo e mercúrio se incorporaram à bacia do rio Doce e contaminaram a água por onde o rio corria.

Em 12 das cidades no caminho entre a barragem rompida e a foz do Rio Doce, a Samarco optou por utilizar o produto nas estações de tratamento de água para que pudesse voltar ao consumo humano, apesar de até então o produto ter sido prioritariamente utilizado para fins industriais. E não economizaram nas doses.

Enquanto o site da fabricante do coagulante sugere a utilização máxima de 1,5 mg do produto a cada litro de água bruta tratada que for destinado ao consumo humano, a mineradora chegou a concentrar 60 mg por litro em algumas situações, 40 vezes mais do que o indicado.

Isso consta em relatório pericial elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Federal do Estado do Espírito Santo e Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (Facto), em 2018. Ou seja, três anos após o acidente.

Economia de risco

O comum em casos do tipo seria a aplicação de sulfato de alumínio. “A única conclusão lógica que o perito chegou sobre a utilização é que foi por razão financeira, já que a quantidade de Tanfloc necessária para o serviço representaria economia para as empresas sobre a opção do sulfato de alumínio. Ou seja, dolosamente contaminaram a água destinada ao consumo, submetendo a população a experimento social, como se fossem ratos de laboratório”, diz o advogado que representa as associações autoras da ação, Diego Carvalho.

No processo em que foi feito o laudo pericial, a Tanac, fabricante do produto, não reconhece utilização anterior para consumo humano. “Em levantamento com a Empresa Tanac, verificou-se empresas de abastecimento de água para as quais ela fornece o Tanfloc para uso nas Estações de Tratamento de Água. Em resposta à provocação, 01 de novembro de 2018, a Tanac diz ‘ informamos que até a presente data se desconhece fornecimento do floculante a empresas de abastecimento de água dentro da bacia do rio Doce’. Além disso, não informa que fornece para outras empresas localizadas fora da bacia do rio Doce.”

Com a conclusão do laudo pericial, o Ministério Público pediu à Justiça Federal de Belo Horizonte (MG) a suspensão da captação de água do rio, além de denunciar que a empresa ofereceu um produto nocivo à saúde para a limpeza de líquido destinado ao consumo da população.

“A conduta da Samarco não somente poluiu de maneira intensa e perene o Rio Doce, como agravou de forma altamente relevante outros impactos já existentes, perpetuando-os em quadro de incalculável perigo”, aponta a manifestação do MP.

Os peritos encontraram “resíduos de formaldeído, usado como uns dos reagentes químicos no processo de fabricação do floculante”. Conhecido como formol, “o produto pode causar perda de peso e neoplasias, sendo classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer como carcinogênico, tumorigênico e teratogênico”, segundo sentença na ação civil pública transitada em julgado sobre o laudo pericial, de outubro de 2023 . “É uma atrocidade o que fizeram. Colocaram e colocam a população em um risco de morte incalculável, ainda mais que não há como calcular as consequências disso”, afirma Carvalho.

Cerimônia do acordo que deixa 600 mil vítimas de fora no Palácio do Planalto (Crédito:Ricardo Stuckert)

No período apurado pelo laudo pericial, a dose máxima do produto “foi cumprida em 173 dias (56,5%). Durante o restante de 133 dias (43,5%) do uso de Tanfloc SG, a dosagem ficou maior que a DMU (Dosagem Máxima de Uso) e a maior dosagem foi de 60mg>L (6 vezes maior que a DMU)”, aponta o laudo, sendo que para os peritos o máximo recomendável seria de 10mg/l, quase sete vezes mais do que o fabricante sugere.

A ciência aponta que “ingestão de água com rastros de formaldeído é arriscada e pode provocar efeitos cancerígenos a longo prazo. Pesquisadores chamam esse efeito de ‘toxicidade crônica’, capaz de provocar tumores no corpo”.

Só que a perícia registrou balanço de incidência desproporcional da doença em curtíssimo prazo, como em comparativo que fez de dois municípios capixabas. “O único capítulo que apresenta aumento recente de morbidade na cidade de Colatina é o que apresenta um aumento da proporção de Internações Hospitalares a partir do segundo semestre de 2015 (2º semestre de 2015 = 5,4%; 1º semestre de 2016 = 5,9%; 2º semestre de 2016 = 9,3%; 1º semestre de 2017 = 13,0; 2º semestre de 2017 = 12,3; 1º semestre de 2018 = 13,2; 2º semestre de 2018 = 11,1)”, registra o laudo.

“Embora precoce afirmar que o aumento observado esteja relacionado à contaminação recente da água do município, tal dado deveria servir de alerta às autoridades de saúde no sentido de se elaborar, o mais rápido possível, um sistema de vigilância em saúde para detecção de possíveis impactos de médio e longo prazo, decorrentes das substâncias encontradas nas análises de amostras de água bruta e tratada. É importante salientar que tal incremento não foi observado nem em São Mateus nem no Espírito Santo como um todo.”

Indígena mostra água contaminada em protesto em corte britânica (Crédito:Peter Nicholls)

Sem limites

As empresas envolvidas na recuperação das águas chegaram ao ponto de lançar o produto diretamente no curso do Rio Doce, sem definição de parâmetros de dosagem, em canal que conduz às comunidades de Aracruz, no Espírito Santo.

Pela documentação anexada na perícia, foi uma espécie de teste de imensas proporções, já que foi verificado efeito desejado em 450 metros seguintes ao local de despejo. “É estarrecedor esse fato, pois o processo de decantação em qualquer lugar do mundo ocorre em tanques com a água parada, e neste caso, lançaram diretamente no canal do Rio, com a água em forte fluxo de movimento, e mesmo assim, ocorreu a decantação”, diz Carvalho.

Procurada por ISTOÉ para apresentar seu lado da história, a mineradora preferiu não se pronunciar: “A Samarco informa que os devidos esclarecimentos serão prestados pela empresa conforme andamento e legitimidade dos autos do processos”, respondeu em nota. A Tanac não retornou no prazo combinado sobre composição e protocolo de utilização do Tanfloc.

A história lembra o filme Erin Brocovich, que rendeu à atriz Julia Roberts um Oscar em 2001. Na trama, a protagonista, que é técnica jurídica, descobre que uma empresa contaminou a água de uma cidade desértica, investiga o crescimento de doenças no local e convence os moradores a ajuizarem ação que lhes rende U$ 333 milhões em reparação.

A diferença para o caso precipitado pela barragem do Fundão é que o pedido é cem vezes maior. O cálculo levou em conta o valor da indenização diária paga a cada uma das vítimas sobre o corte parcial ou total de fornecimento de água nos dias subsequentes ao rompimento da barragem, que foi de R$ 2 mil. Foi proposta a limitação a teto de 150 salários mínimos, que dá R$ 211.800, e um total de R$ 127,2 bilhões na multiplicação pelo número de afetados. “Nós pedimos também a condenação por danos morais e sociais coletivos de R$ 50 bilhões.”

A região do desastre é a maior província mineral do Brasil, conhecida como Quadrilátero Ferrífero.
É formada por 24 municípios, tendo como vértices Itabira, Mariana, Congonhas e Itaúnas.
A Samarco Mineração foi fundada em 1973.
Onze anos depois a anglo-australiana BHP Billiton Ltd incorporou parte dela, e em 2000, a então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) absorveu outra parte, cabendo o controle às três.

Barragem do Fundão tinha a mesma dimensão que a Lagoa Rodrigo de Freitas e dez vezes seu volume, com 62 milhões de metros cúbicos de lixo tóxico misturado à lama

A cobertura de lama causada pelo desastre impede o desenvolvimento de espécies vegetais em toda a área mais afetada, já que é pobre em matéria orgânica e torna os locais onde se depositou inférteis.
A toxicidade do material afeta também o pH da terra, causando a desestruturação química do solo. Estima-se que mais de 11 toneladas de peixes morreram devido à poluição causada.
A tragédia levou a uma revisão da legislação relacionada à segurança das barragens no Brasil. A Lei “Mar de Lama Nunca Mais” foi aprovada para estabelecer normas mais rigorosas para a operação e supervisão das barragens no País.

Cobrando em libras

Como uma das controladoras da Samarco é a anglo-australiana BHP, e dada a morosidade da Justiça brasileira no caso, foi aberta brecha para que esta fosse processada na Inglaterra pelo envolvimento no desastre.

A acão foi movida por coletivo de 700 mil pessoas, incluindo comunidades indígenas, quilombolas, empresas e municípios.

O valor total pedido começou em R$ 32 bilhões e alcançou R$ 230 bilhões no decorrer do processo, no qual não está sendo solicitada indenização pelo consumo de água contaminada com dosagens potencialmente nocivas de Tanfloc.

Quando o julgamento começou, em 21 de outubro, e com a previsão de cinco meses de duração, as empresas correram para costurar acordo no Brasil e evitar gasto ainda maior.

Mesmo com acordo firmado, para o qual estiveram presentes a ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o presidente Luís Inácio Lula da Silva, a briga segue nos bastidores.

Após o pedido de não efetivação do acordo, que seria utilizado para extinção da ação coletiva que busca reparação das 600 mil vítimas, a Samarco enviou, em 29 de outubro, solicitação de homologação do pacto nos seguintes termos: “Foram apresentadas manifestações por associações, potencialmente afetadas. (…) O ‘Capítulo I’ lista os litígios cujos autores são partes do Acordo de Repactuação, e prevê, portanto, a sua extinção imediata”.

Entre os atores políticos, a foto que simboliza que a “justiça havia sido feita” foi comemorada. A ministra lembrou durante o evento que a repercussão do rompimento da barragem será vivida em longo prazo. “Temos a clareza de que os efeitos causados pela tragédia em Mariana serão sentidos por gerações”, disse. Já o presidente Lula focou na resposta à sociedade: “Cada centavo que for utilizado é tido como investimento para recuperar os danos que uma empresa causou”.

Relatório pericial aponta que a mineradora chegou a concentrar produto para tratamento da água em proporção 40 vezes superior ao indicado

As associações autoras da ação ainda fazem um segundo questionamento, sobre suspeita de violação de sigilo e interferência das empresas no correr do processo, uma vez que os autos dessa ação tramitam sob segredo de justiça nível 2 e somente o Ministério Público teria conhecimento do seu conteúdo.

As associações demandaram que a Polícia Federal investigue quem revelou informações sigilosas aos réus, por quais razões e circunstâncias o fez, dado o possível comprometimento às liminares e medidas cautelares requeridas na ação em trâmite e que estão pendentes de apreciação.

Caso está agora com o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso (Crédito:Fotoarena)

Em apuração com fontes ligadas ao ministro Barroso, a reportagem soube que a petição entrou na fila para ser analisada antes da homologação do acordo. Caso o STF homologue, as vítimas pretendem ajuizar ação no Reino Unido.

“Diante das circunstâncias, esperamos que o STF rejeite a homologação nos moldes apresentados, que extinguem indevidamente uma ação sem a anuência das associações autoras e sem garantir indenização às vítimas do consumo de água dolosamente ‘envenenada’. Essa postura seria uma injustiça sem precedentes e uma vergonha no cenário internacional, forçando-nos a acionar tanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto a Justiça Inglesa”, diz Carvalho. “Solicitamos ao ministro Barroso que designe audiência de conciliação para tratar do caso, garantindo justa indenização, sem necessidade de terceirizar a busca por Justiça em jurisdições internacionais.”