“A divisão é um bom problema para a direita”, diz cientista político Antonio Lavareda
Por Eduardo Marini
O cientista político, jornalista e pesquisador Antonio Lavareda é o nome a ser procurado quando a tarefa é entender variações no ambiente político brasileiro, reações da sociedade a esses movimentos e o que as pesquisas dizem sobre tudo isso. Doutor em Ciência Política, é presidente do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE). Nesta entrevista à ISTOÉ, ele radiografa o comportamento do eleitor nas últimas eleições, identifica tendências e dá dicas sobre os caminhos a serem seguidos pelos principais figurões políticos do País em 2026. “A divisão da base certamente não foi positiva para Bolsonaro, mas, ao contrário do que muitos pensam, é um bom problema para a direita, que cresce se fragmentando e se fragmenta crescendo. Hoje, ela é bem maior do que o ex-presidente”, resume.
As eleições municipais de domingo, 27, marcaram o fim da ‘era dos extremos’?
Elas tiveram uma marca interessante, não prevista por muitos. Em vez de um processo centrífugo, de se afastar rumo aos extremos, houve o contrário: uma força centrípeta, de aproximação com o centro. Muitos analistas afirmaram, até em livros, que a polarização calcificada no segundo turno de 2022 sobreviveria em 2024. Ao contrário, a moderação e o discurso mais equilibrado, sobretudo entre a centro-direita e a centro-esquerda, foram vitoriosas em larga escala. O primeiro turno da última eleição presidencial foi o mais polarizado da história. O ex-presidente Jair Bolsonaro e o atual, Luiz Inácio Lula da Silva, receberam juntos mais de 90% dos votos.
As lideranças presentes na campanha de Guilherme Boulos (PSOL) à prefeitura paulistana têm serviços inequívocos prestados ao País, mas são todas veteranas: Marina Silva, Marta Suplicy, Luiza Erundina… Por outro lado, renovações foram vistas do centro à extrema-direita, e também na centro-esquerda, sobretudo no PSB de João Campos e Tabata Amaral. Por que isso não ocorre no PT?
O aggiornamento (atualização, renovação, em italiano) está no mínimo dois anos atrasado. Isso para ser generoso. Fácil perceber isso analisando aspectos da eleição de 2022. No segundo turno, Lula só conseguiu vencer na base da pirâmide, de zero a dois salários. Já se revelava, ali, a falta de conexão com novos empreendedores, prestadores de serviços e profissionais ligados à internet, o segmento de dois a cinco mínimos na nova configuração das relações de trabalho. Um problema equivocadamente destacado como de origem recente. Lula perdeu eleitores também na nova faixa que teve acesso à formação superior, por ironia uma das políticas sociais mais incentivadas pelo presidente. Ganhou entre as mulheres, mas perdeu com larga margem entre os homens. Venceu apenas na Região Nordeste e entre os que tinham, no máximo, o fundamental completo. Então todos os problemas enumerados nesta eleição desgastam o PT desde, ao menos, 2022. A reflexão está no mínimo dois anos atrasada.
Os métodos de ação do partido estão defasados?
Em certa medida sim. Há problemas estruturais e conjunturais. O PT surgiu em 1980, num tecido social muito diferente do atual. Nasceu no chão das fábricas, sindicatos do ABC paulista, movimentos sociais e pastorais da Igreja. Tudo isso gerou extrema capilaridade e atraiu intelectuais de esquerda e ex-integrantes de organizações clandestinas e da resistência ao regime militar. Pois bem: esse cenário, se não desapareceu totalmente, erodiu em grande medida na nova realidade da desindustrialização, reformas trabalhistas e novos processos de comunicação. O partido não tem presença efetiva e competente nas redes sociais.
O senhor destaca ainda a dificuldade do partido em dialogar com a sociedade sobre envolvimento em casos de corrupção…
Outro ponto importante. A derrubada da Operação Lava Jato pela Justiça não significou o apagamento ou esquecimento dos problemas do PT relativos à operação na mente das pessoas. No inconsciente coletivo das classes baixa e média, a questão da corrupção ainda não desapareceu. Se você observar o histórico de São Paulo, por exemplo, verá que todas as mudanças políticas nas últimas seis ou sete décadas estiveram ligadas às reações da sociedade à corrupção. O PT se recusa a tratar de seu histórico nessa questão. Se comporta como se a situação tivesse sido totalmente resolvida para o partido com a decisão da Justiça em relação à operação. Os brasileiros percebem isso. Não veem esses esclarecimentos como preocupação do governo petista. Mais um dever de casa que o PT se recusa a fazer.
Gilberto Kassab, líder do Partido Social Democrático, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, e o deputado federal Baleia Rossi, presidente do MDB, saíram dessas eleições como grandes vencedores. Lula e Bolsonaro tiveram reveses. Quem perdeu mais?
Bolsonaro. Ele perdeu uma coisa importante para o líder político: o controle absoluto sobre a base. Até a eleição desse ano, sua voz de comando sobre a base era indiscutível. Vieram os conflitos e rebeliões no campo da direita em Curitiba, Goiânia e São Paulo, com Pablo Marçal, num movimento da extrema-direita em desafio à sua liderança. Bolsonaro desgastou-se tentando conter novos líderes em seu campo. Foi desafiado por Marçal e, mesmo contribuindo decisivamente para a passagem apertada de Ricardo Nunes ao segundo turno, com uma live de apoio de última hora, terminou por fortalecer Tarcísio como único patrono da reeleição do emedebista. Foi pessoalmente para Goiânia e perdeu para Ronaldo Caiado. Apostou forte em Curitiba e foi derrotado.
A fragmentação é ruim para a direita?
Não, ao contrário do que muitos pensam. Ao olhar ligeiro, fragmentação é vista como fragilidade, mas, no caso da direita, é, ao contrário, um bom problema. A direita cresce se fragmentando e se fragmenta crescendo. Hoje, mostra-se bem maior do que Bolsonaro, algo que não se pensava até bem pouco tempo. Uma trajetória parecida com a do movimento evangélico, que conquistou espaço e ampliou poder justamente após se fragmentar e crescer em número com a multiplicação das denominações. Para forças da centro à extrema-direita, sempre haverá um segundo turno para permitir a união das partes separadas no primeiro. A fragmentação não é bom problema para Bolsonaro, mas certamente é positiva para a direita.
Lula não esconde que gostaria de ter Gilberto Kassab e seu Partido Social Democrático (PSD) para chamar de parceiros numa aliança forte de centro-esquerda em 2026. Qual será a atitude de Kassab?
Ainda é cedo para dizer com precisão. Antes, Kassab vai sentir a temperatura de seus aliados na Câmara, Senado e candidatos a governos estaduais. As decisões, para ele e todos, começarão a ser tomadas a partir do Carnaval de 2026 — e, como dizia Marco Maciel, quem tem tempo não tem pressa. Em situação confortável, terá três alternativas. A primeira é lançar uma candidatura que considere competitiva. Ratinho Júnior? Talvez. A segunda é lançar um candidato não competitivo e ir cacifado para a foto da coligação do segundo turno, em condição de negociar. O caso da ministra do Planejamento Simone Tebet, candidata à presidência pelo MDB em 2022, é clássico. A terceira é aderir a Lula ou a outro candidato logo no primeiro turno. Isso geraria uma oportuna economia de fundo eleitoral para ser investida nos candidatos do partido.
Há boatos de que Tarcísio de Freitas estaria decidido a trocar o Republicanos pelo PL. Tentará a reeleição ou disputará a presidência em 2026?
A exemplo de Kassab, ele terá tempo — e vale a mesma máxima de Maciel. Vai ponderar se valerá a pena trocar uma reeleição aparentemente assegurada no estado mais rico do País, por um voo presidencial com todos os riscos envolvidos em um desafio a Lula, com perspectiva de desgaste com Bolsonaro. É fundamental destacar que as candidaturas presidenciais não são determinadas apenas pela vontade do pretendente, mas, sobretudo, impulsionadas pelas circunstâncias. Imagine que, no início de 2026, as forças políticas dos principais partidos de centro e direita, segmentos importantes do empresariado e parcela expressiva da opinião pública, revelada em pesquisas, mostrem desejo de que Tarcísio tente a presidência. Seria muito difícil para ele resistir a todas essas pressões poderosas e apelos de seus liderados, ainda que a preferência pessoal seja tentar a reeleição ao governo de São Paulo. Diria que, se 2026, numa situação hipotética, fosse agora, com o exato cenário atual de força de Tarcísio e apelos dos mesmos grupos, ele seria candidato à presidência.
Pablo Marçal será candidato à presidência em 2026?
Há possibilidade considerável de o Superior Tribunal Eleitoral retirar seus direitos políticos. Se isso não ocorrer, certamente que sim. Ele não esconde o desejo de realizar esse projeto. Dias atrás, apareceu ao lado de Tarcísio numa pesquisa, o que deve ter reforçado sua intenção. Disse que ficará na política pelos próximos 12 anos. Precisa combinar antes com o TSE, mas, se for candidato, a direita partirá fragmentada na largada.
No campo da centro-esquerda, o PSB entregou o dever de casa que o PT ainda não fez?
Houve renovação efetiva no partido, iniciada na eleição passada de João Campos para prefeito do Recife e reafirmada agora, na reeleição em primeiro turno com 78,11% dos votos válidos. Ele e Tabata Amaral simbolizam o novo até pela idade: ambos estão com 30 anos. Campos simboliza o novo ponto de vista da sua idade. Soube adentrar o terreno das redes sociais; é exímio praticante da esgrima da comunicação nessas ferramentas. Além disso, o PSB elegeu um bom número de vereadores no País, até mais do que o PT, entre eles muita gente jovem. Como o PDT declinou bastante, a tendência é que PSB e PT conduzam pelas mãos o destino da esquerda nos próximos ciclos eleitorais. O PSB está na frente nas respostas aos apelos da modernidade, e o PT, como disse, precisa fazer urgentemente sua atualização. Aliás, passou da hora.
Bolsonaro está inelegível até 2030 e, a depender da evolução de alguns processos, poderá ser preso. Até que ponto uma vitória do republicano Donald Trump nas eleições presidenciais americanas, na terça-feira 5, poderá dar fôlego a aliados na luta por uma anistia que o permitiria concorrer em 2026?
O esforço será muito ampliado em caso de vitória de Trump. É preciso saber qual seria a interpretação do Supremo Tribunal Federal caso uma anistia seja aprovada no Congresso, mas as forças de direita e sobretudo extrema-direita estarão automaticamente fortalecidas no Brasil e no mundo, que tornará plausível diversas iniciativas políticas em vários países, incluindo essa no Brasil. A revisão da inelegibilidade de Bolsonaro é hipótese implausível sem a eleição de Trump. Com ela, ganharia força já no dia seguinte.