Editorial

A volta e às voltas com as instâncias

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Antonio Carlos Prado: "Não pode haver regra de execução penal para o Tribunal do Júri e regra de execução penal diferente para julgamentos de audiência por outros crimes, que não contra a vida" (Crédito: Istockphoto)

Por Antonio Carlos Prado

Foi constrangedor. Eu, que não tinha nada a ver com nada, não me senti bem. Encerrado um julgamento pelo Tribunal do Júri (chamado na informalidade de júri popular e no qual é soberano o conselho de sentença formado por sete cidadãos), o réu, condenado por homicídio, saiu do fórum lado a lado de familiares da vítima que ele matara. Tais parentes, que assistiram ao julgamento, demonstravam sentir-se constrangidos e, mais que isso, revoltados com a Justiça: ele já aguardara o julgamento em liberdade, e agora, condenado a vinte e um anos e oito meses de prisão, mantinha o direito de recorrer da sentença em liberdade? A impunidade do algoz aumentava a dor de todos, batia a sensação de impotência. Eu também me constrangi — eu, cabendo aqui a repetição, que estava no julgamento de curioso, que não guardava nenhuma motivação particular pelo caso. O Tribunal do Júri aloja-se juridicamente na primeira instância na consagrada escala de recursos, sejam eles de advogados que representam o réu, como é imprescindível ao funcionamento do devido processo legal e do Estado de Direito, sejam eles de integrantes do Ministério público, sem os quais também não há equilíbrio na balança da Justiça e inexiste possibilidade de isonomia, impessoalidade na acusação e manutenção da democracia. Talvez a leitora e o leitor estejam a se perguntar o que interessa, no âmbito do jornalismo, o fato de eu assistir a um júri de abelhudo. Entremos na resposta, que se compõe de uma infindável discussão. O Supremo Tribunal Federal acaba de estipular que réus condenados pelo Tribunal do Júri têm de começar a cumprir a pena imediatamente, assim que lida sentença, e não somente após se esgotarem todos os recursos, caso estes confirmem a culpa. Não há dúvida de que a determinação do STF se trata de largo passo contra a impunidade, mas também não há dúvida de que tenta mitigar a sua mudança de posição quando propôs que todos os criminosos, não importando quais crimes praticariam, teriam de começar a cumprir suas penas após decisão condenatória em segunda instância. Não deu certo tal propósito (a segunda instância é composta por tribunais estaduais), e não dará certo agora com o júri popular, até porque ele é de uma instância inferior – como já dito, é de primeira. E, acima de tudo, porque consta da Constituição Brasileira, brava e corajosamente defendida nesses últimos tempos pela Corte Suprema, que somente será considerado culpado quem receber sentença penal condenatória transitada em julgado (envolve tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça e o próprio STF). Foram condescendentes os constituintes que promulgaram a Carta em 1988, de tudo se prevenindo com o País saído de uma ditadura militar de vinte e um anos, mas, ainda assim, nessa condescendência pediram que os legisladores regulamentassem a questão. O problema é que jamais nossos deputados e senadores se abalaram a regulamentar a norma constitucional, perpetuando a insegurança jurídica. No passado, provocado em função de um habeas corpus, teve o STF de decidir, e o fez optando pela prisão após a segunda instância. Não se chegou a nenhuma conclusão e a questão foi devolvida ao Poder Legislativo para que a regulamentasse. Novamente o tempo está passando, e nada. O silêncio dos parlamentares sobre o assunto é, digamos, também constrangedor. Somente para se ter clareza (é ela, a clareza, a boa fé de quem escreve) do vaivém desse assunto, convém lembrar que a execução da pena a partir de condenação em segundo grau valeu até o início de 2009. Foi suspensa. Passou a valer de novo em 2016. Foi suspensa mais uma vez em 2019. Não pode haver regra de execução penal para o Tribunal do Júri e regra de execução penal diferente para julgamentos de audiência por outros crimes, que não contra a vida. Deveria ficar valendo a Constituição, ainda que nela haja frestas. E deveriam, ah se deveriam, os legisladores trabalharem em uma regulamentação geral. O Brasil cansou de infrutífera dialética, cansou de tese com antítese, mas sem síntese. O STF faz, parlamentares desfazem. Cansou sim, perguntem à família que eu vi sair do fórum.