Comportamento

“Anvisa dificulta brutalmente os estudos sobre psicodélicos”, diz neurocientista Eduardo Schenberg

Crédito: Andre Lessa

Pesquisador continua insistindo no Brasil (Crédito: Andre Lessa)

Por Luiz Cesar Pimentel

Eduardo Schenberg percorreu todo o caminho acadêmico para entender a mente e a estrutura psíquica dos seres humanos. Sobrinho-neto de um dos maiores físicos brasileiros, Mario Schenberg, ele se graduou em Biomedicina, é mestre em Psicofarmacologia, doutor em Neurociências e concluiu pós-doutorado no Imperial College de Londres, na Inglaterra. Mas foi durante uma sessão de ayahuasca, no Pico do Jaraguá, em São Paulo, que sua carreira foi determinada. Passou a se interessar pelas substâncias conhecidas como psicodélicos e seus possíveis efeitos. “Essa experiência foi muito impactante, mas não me adaptei bem ao contexto religioso.” Fundou em 2011 o Instituto Phaneros, dedicado à educação e pesquisa científica sobre as substâncias alucinógenas pelo viés de seus potenciais terapêuticos. Presidente da organização sem fins lucrativos que quer estudar o potencial da Psicoterapia Assistida por Psicodélicos (PAP), trava uma briga com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que, segundo ele, dificulta o trabalho científico e descobertas do potencial do LSD, psilocibina, DMT e mescalina, como atualmente acontece em outros países.

Qual é a situação atual do uso de psicodélicos no Brasil?
É bastante complexa e ambígua. As substâncias psicodélicas estão incluídas nas convenções internacionais de controle de drogas. Aqui, o uso religioso da ayahuasca é uma exceção e a gente tem zonas cinzentas. Nos Estados Unidos e Europa algumas igrejas obtiveram permissões excepcionais para praticarem a sua religião com ayahuasca e importarem da Amazônia brasileira, mas via de regra as substâncias psicodélicas são substâncias controladas. Então, não se pode fabricar, vender, distribuir nem utilizar. Por outro lado, a pesquisa científica sempre foi autorizada desde os tratados internacionais de 1961, 1971 e 1988.

Quais são os que possuem potencial terapêutico?
Na sua pergunta há um conceito polêmico sobre se existem drogas com potencial terapêutico e drogas sem nenhum. A classificação dos Estados Unidos é clara quanto a isso. Eles possuem uma categorização ordinal por categoria: 1, 2 ,3. A 1 é, digamos, das drogas mais perigosas e o governo diz que elas não têm potencial terapêutico e alto potencial para dependência química. A gente só saberá se a substância é tóxica ou não se puder estudá-la, e muitas dessas drogas foram incluídas nas listas antes de se fazerem estudos para avaliar o potencial terapêutico. Então é uma classificação sem embasamento científico. O melhor exemplo que temos é a maconha e hoje sabemos que ela possui imenso potencial terapêutico.

Entre os psicodélicos estudados, quais demonstraram-se promissores para transtornos de saúde mental?
É preciso entender a categoria dos psicodélicos. Nos anos 1950, estavam estudando LSD, que é o mais famoso de todos, e a mescalina, e queriam distinguir os dois das demais drogas. Perceberam que tinham efeitos muito diferentes da maconha, da cocaína, dos opiáceos. Essas drogas representavam uma nova categoria e era preciso um nome. A literatura científica usa psicodélico, que junta dois radicais gregos, significando ‘manifestar a mente’. Mas no grego alma e mente são uma coisa só. O psicodélico pode tanto manifestar o espírito quanto a alma, então cria-se esse elo curioso entre as substâncias e a religião ou a espiritualidade. Os psicodélicos clássicos são quatro: o LSD, a mescalina, a psilocibina, dos chamados cogumelos mágicos, e a DMT, que está presente em centenas de plantas. A comunidade científica ainda está estudando, mas essas quatro substâncias atuam junto dos neurônios e modificam a atuação do sistema nervoso e são usadas em rituais há milhares de anos.

Essas substâncias têm ação no cérebro já conhecida?
A gente está nesse processo, pois em neurociência é muito difícil afirmarmos que entendemos completamente como uma substância age, seja a cafeína, tabaco ou psicodélicos. A complexidade do sistema nervoso é algo extraordinário. Existem mais sinapses no nosso cérebro do que estrelas na Via Láctea, a gente tem 80 bilhões de neurônios. Lá atrás, quando o LSD era assunto de estudos psiquiátricos e científicos, foi descoberto que é quimicamente parecido com a serotonina, que é um dos principais neurotransmissores do organismo. Hoje, percebemos isso com técnicas de neuroimagem fascinantes, que não existiam quando essas substâncias foram proibidas. Por isso que digo que, quando foram proibidas, não tínhamos como saber dos potenciais terapêuticos – uma ciência que foi brutalmente interrompida.

O que foi descoberto?
Percebemos que com psicodélicos as pessoas, de olhos fechados, irão experienciar uma espécie de sonho acordado, com muitas imagens. E que também mexem muito com o pensamento, memória, afetos e emoção. Para muitos, uma única sessão psicodélica é uma experiência de vida muito impactante. A pessoa pode rir, chorar, ter experiências de encontrar paz eterna, divindade e amor por tudo e por todos e pode também, em casos raros, vivenciar experiências pavorosas, assombrosas, de coisas muito obscuras. Então ainda tem muito caminho de pesquisa para entender melhor tudo isso. Durante o meu pós-doutorado fizemos a primeira pesquisa de neuroimagem com LSD em seres humanos na história. Nos últimos 14 anos houve uma explosão de estudos científicos na área. As duas mais estudadas são o MDMA, para tratamento do transtorno de estresse pós-traumático junto com psicoterapia, e a psilocibina, para tratamento de transtornos depressivos.

A indústria farmacêutica para saúde mental não tem conhecimento do caminho exato de cada uma das drogas que vende e adequação ao paciente. Psicodélicos estão mais avançados do que ansiolíticos e antidepressivos?
Em meados dos anos 1950, quando começaram a estudar psicodélicos, a ideia de que moléculas químicas eram fundamentais para o funcionamento do sistema nervoso gerava controvérsia entre os cientistas – a maioria achava que o sistema nervoso era puramente elétrico e uma minoria argumentava que era aquilo que hoje está muito bem estabelecido: que ambas as atividades coexistem de forma extremamente complexa e sofisticada. Surgiram, então, os primeiros psicofármacos, sendo propostos como medicamentos psiquiátricos. Tivemos uma primeira onda com os benzodiazepínicos, alguns antipsicóticos e os antidepressivos tricíclicos, que hoje em dia praticamente não são mais utilizados. Nos anos 1980 e 90, os cientistas descobriram o potencial de algumas moléculas de agir no sistema serotonérgico da serotonina, e esses são os antidepressivos altamente prescritos. Esses medicamentos funcionam, mas há uma variedade enorme e uma dificuldade para que os profissionais possam ter embasamento científico preciso na hora de saber para cada paciente qual dessas dezenas de substâncias pode ser a com maior eficácia e menor risco.

Você acredita que a terapia psicodélica pode ocupar o espaço que a medicina tradicional não ocupa ou que ela pode figurar na primeira divisão sobre transtornos?
Acredito que ela tem o potencial de chegar na primeira divisão. A maior parte dos medicamentos prescritos hoje pelos psiquiatras, o paciente usa uma ou duas vezes por dia por determinado período. Esse é o padrão. Os estudos que estão sendo feitos com psicodélicos são diferentes – é um processo de psicoterapia intensivo durante alguns meses em que o paciente vai utilizar o medicamento, uma, duas ou no máximo três vezes, sempre sob supervisão de um psiquiatra e um psicólogo. Quando uma pessoa toma um antidepressivo, ela pode sentir poucos efeitos ou nenhum. Quando alguém toma uma dose adequada de psicodélico, tudo muda por um período de seis a doze horas, e o que acontece durante os efeitos da substância é muito importante. No contexto clínico-terapêutico, o que a maioria dos estudos demonstra é uma segurança e uma certa eficácia no tratamento de vários transtornos mentais. Além da depressão tem o estresse pós-traumático, estão sendo estudados para dependência química, alcoolismo, tabagismo, cocaína, opiáceos.

“Psicodélicos têm zero de toxicidade aguda, que é o que leva a uma fatalidade, como opiáceos e álcool. Foi o que matou o Jim Morrison, a Amy Winehouse” (Crédito:Leon Neal)

A descrição da sessão de psicodélicos é muito parecida com uma experiência mística e acaba relacionada à questão religiosa. É possível dissociá-la da religiosa para que seja mais aceita?
O efeito de drogas está sempre associado à sua forma de uso, ao seu contexto, aos propósitos e às crenças de quem os usa e aos objetivos. Os psicodélicos são muito curiosos e interessantes por serem ao mesmo tempo o sacramento para alguns e drogas altamente perigosas para outros, além de substâncias em estudos para se transformarem em medicamentos psiquiátricos para outro grupo. O que faz essas substâncias serem aceitas ou rejeitadas é um assunto muito complexo da antropologia, sociologia e história. Alguns grupos vão aceitá-los justamente por causa do uso religioso, que é o que a gente vê no Brasil. Nos Estados Unidos, é o oposto: o uso religioso não é autorizado. Lá, são muitas permissões para o estudo científico.

Por que isso?
O Brasil tem permitido o uso religioso da ayahuasca e tem paradoxalmente impedido a pesquisa científica. Temos sofrido imensamente nos últimos dois anos com a Anvisa, que dificulta de todas as formas possíveis os estudos científicos sobre essas substâncias. A situação é absolutamente inexplicável e me parece violar o direito à ciência, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais . Nós estamos em uma batalha há anos e ainda não temos autorização. Então, me parece escandaloso que a atitude da Anvisa seja uma atitude anticientífica.

Qual risco apontam, já que são desconhecidos casos de overdose ou dependência?
Esse é um ponto muito importante, psicodélicos e cannabis têm praticamente zero de toxicidade aguda, que é o que leva a uma fatalidade, como nos opiáceos e álcool. Assim como também não são substâncias que geram dependência química. Portanto é uma situação completamente sem lógica e prejudicial, já que a Anvisa classifica essas substâncias como muito perigosas sem evidência de tais perigos e impede as pesquisas que podem demonstrar o potencial terapêutico. É uma perseguição moral. Foi determinado socialmente que essas substâncias são indesejadas e que não se pode usar nem pesquisar.

Existe contraindicação para substâncias psicodélicas?
Em relação aos riscos, é claro que existem. Não há droga que não apresente risco. Até um cafezinho, quando usado de forma crônica, pode levar a transtornos de ansiedade. No Brasil, a educação a respeito continua a ser tabu, com setores conservadores, afirmando que as medidas de prevenção e redução de danos significam apologia e estimulam o uso de drogas.

Quais são seus próximos passos?
Seguimos batalhando na justiça pelo direito de fazer ciência no Brasil. Se continuar como está, terei de me juntar a outros que embarcaram na infame fuga de cérebros. Comecei como pesquisador associado do Centro Petrie-Flom na Faculdade de Direito da Universidade Harvard, e tenho projetos na Europa também.