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Especialistas explicam como dormir melhor e por que o sono fortalece a saúde

Crédito: Gabriel Gonzales Encarnacion/Pexels

Entre as doenças relacionadas ao sono, três são típicas dos brasileiros: apneia obstrutiva, insônia crônica e síndrome das pernas inquietas (Crédito: Gabriel Gonzales Encarnacion/Pexels)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• A privação do adormecer é tão ruim que foi usada como forma de tortura durante séculos
• Três em cada quatro brasileiros possuem problemas para descansar
• Desesperadas, milhões de pessoas recorrem a remédios que, não raro, deflagram novos problemas de saúde
• Aprenda a enfrentar a falta de repouso quando ela se torna inimiga

Dormir é algo tão simples quanto fechar os olhos e entrar em estado de sono. Isso segundo o dicionário. Mas para 72% dos brasileiros, três em cada quatro pessoas, adormecer é, literalmente, o pior dos pesadelos. Seria uma situação apenas desgastante se a privação do repouso noturno não trouxesse tantas consequências negativas para a saúde mental e física de quem sofre com a condição.

O estado de consciência alterado, em que o sistema nervoso encontra-se menos ativo, mente e corpo mais relaxados e a consciência fica suspensa, começou a ser profundamente investigado a partir dos anos 1980, quando no primeiro laboratório dedicado à pesquisa do sono do mundo, da Universidade de Chicago, fundado em 1925, Allan Rechtschaffen descobriu que a privação do repouso pode levar um mamífero à morte — na pesquisa com ratos, em duas semanas de escassez de adormecimento os animais morreram.

Foi assim que a atividade que consome (em cenário ideal) um terço de nossas vidas ganhou status vital semelhante à água, ar e alimentos. Desde então, dormir se tornou um problema cada vez maior para o brasileiro.

Pesquisas na década de 1980 sugerem que um terço da população manifestava inconvenientes em relação ao repouso. Afinal, por que esse número triplicou? E, indo além, por que o sono é tão essencial para o bem-estar físico e mental, e até para a sobrevivência? É possível responder essas perguntas entendendo melhor o que significa dormir.

Ser humano evoluiu para viver o ciclo de dia e noite em ritmo circadiano (Crédito:Ian Hooton/Science Photo Library)

Quatro padrões de sono

1. Normal
É a rotina consistente de descanso, com horários regulares de dormir e acordar

2. Compensatório
Os períodos de repouso são menores durante a semana e compensados com sono prolongado nos finais de semana

3. Complementar
Trata-se do padrão normal complementado com cochilos diurnos

4. Insone
É a dificuldade para adormecer, em muitos casos agravada por problemas de manutenção do sono à noite

O Instituto do Sono, maior centro de tratamento de distúrbios dessa área no mundo, fica em São Paulo, capital ironicamente conhecida, por sua dinâmica, como cidade que não dorme. Com 77 leitos divididos em duas unidades, o complexo realiza média diária de cem polissonografias (exame de sono monitorado que identifica possíveis complicações) e avaliou mais de 400 mil pacientes desde a sua fundação, em 1992.

A demanda não para de crescer. Esse batalhão busca a mais natural das funções: fechar os olhos e dormir. Na teoria parece simples mas, na prática, os estudos mostram que repousar adequadamente é responsabilidade de alta complexidade do organismo.

“O cérebro é uma máquina perfeita, mas ele precisa de descanso. Se não, a máquina quebra.”
Marcos Gebara, presidente da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro

 

(Divulgação)

A evolução das espécies do planeta foi adequada aos ciclos de 24 horas de dia e noite. No caso dos seres humanos, o sono em uma etapa longa noturna foi a forma de sobrevivência mais eficiente para diminuir o risco de ataques dos predadores.

Nossa espécie desenvolveu padrões biológicos para viver o ciclo de dia e noite em ritmo circadiano, evitando que precisasse se adequar a condições opostas, como luz e escuridão, e repousasse de acordo com sinais ambientais.
Isso fez com que, ao escurecer, o organismo produzisse a melatonina, conhecida como hormônio do sono, junto a uma queda da temperatura corporal, em combinação que provoca sonolência.
Nesse momento, as células neuronais enviam sinalizações elétricas em ondas, como mensagens para o corpo e o cérebro.

Eletrodos monitoram o paciente: Instituto em São Paulo já realizou mais de 400 mil exames (Crédito:Martin Schutt)

Quando o corpo relaxa e finalmente dormimos, tem início uma prova de descanso em que o organismo precisa passar por quatro estágios de recuperação.
●O primeiro é o período mais leve de sono, que consome alguns minutos. Nele, as ondas cerebrais alfa, relativamente rápidas, diminuem de velocidade e passam à delta.
● No segundo quarto do sono, onde passamos idealmente mais de metade do período, a atividade cerebral diminui ainda mais, só que, mesmo assim, o cérebro promove explosões de manifestações que atuam sobre a retenção de memória e aprendizado.
● O estágio três é popularmente conhecido como sono profundo, quando as frequências cardíaca, respiratória e a pressão arterial diminuem e o corpo produz hormônio do crescimento, funções que servem para a sensação de despertar revigorado. Nesse ponto são gastos cerca de 20% do total do ciclo de descanso.
● O último quarto da vigília é o sono REM (de Rapid Eye Movement — Movimento Rápido dos Olhos) ou sono dos sonhos. Como o nome explica, os olhos se mexem com rapidez e é o trecho da noite em que ocorrem os sonhos mais vívidos. Os músculos esqueléticos paralisam para evitar que o corpo se movimente de acordo com o que passa na mente. No REM, que consome 25% do repouso, acontece a consolidação da memória, geralmente pela manhã.

(Divulgação)

“Para distúrbios ou problemas de sono, existem meios mais seguros do que remédios.
A abordagem medicamentosa deve sempre a última alternativa.”
Larissa Fonseca, psicóloga especializada em sono

Exército insone

Nessa competição noturna, três em cada quatro brasileiros, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), falham em um ou mais estágios e manifestam sintomas da privação de sono, associados a diversos problemas de saúde, de sonolência e déficit de atenção durante o dia até desenvolvimento ou agravamento de doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade, sem contar a precarização mental.

Estudo realizado pela fundação revelou novos dados em julho recente, condicionando a piora da qualidade de repouso no País a condições socioeconômicas, em que a maioria dos habitantes de áreas segregadas têm probabilidade de dormir menos (abaixo de seis horas, quando a recomendação mínima é de sete horas) por fatores como medo da violência, condições ambientais e infraestrutura urbana não adequada.

“Dormir mal afeta a saúde mental em todos os aspectos. Primeiro porque o sono é importantíssimo para a restauração das funções psíquicas. O cérebro é uma máquina perfeita, mas precisa de descanso para que suas funções sejam preservadas. Se não tiver, a máquina quebra. Durante o sono há a ‘limpeza’ do lixo tóxico no corpo por meio do sistema linfático. E existe a possibilidade de sonhar, uma maneira de manifestação simbólica dos conteúdos psíquicos. Durante o sonho a pessoa está, de alguma forma, elaborando determinados conflitos”, diz Marcos Gebara, presidente da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro. “A privação do sono é tão ruim que é usada como método de tortura.”

O quadro de escassez de descanso adequado se manifesta na busca por soluções emergenciais, o que explica o exponencial aumento de consumo dos remédios para dormir, sobretudo o Zolpidem. Levantamento da consultoria Timelens constatou que a recorrência ao “doutor Google” é alarmante.

No ano passado, as buscas por melatonina na plataforma chegaram a 17,5 milhões, enquanto o nome da droga ficou em dez milhões, aproximadamente.

Sobre remédios para dormir, cerca de 30 milhões de pessoas digitaram esse termo na ferramenta. Na prática, desde que o Zolpidem começou a se popularizar, em 2011, suas vendas cresceram 676% em 12 anos, indo de 1,7 milhão de caixas para mais de 20 milhões em 2023.

A droga indutora do sono foi lançada na década de 1990 para cobrir potencial risco de dependência e déficit cognitivo do consumo a longo prazo dos chamados benzodiazepínicos. Só que o efeito foi reverso, com relatos de casos de pacientes que ingeriram 300 comprimidos por dia.

Especialistas dizem que mais de 80% dos casos de insônia não possuem indicação de tratamento à base de remédios. Desde agosto, a Associação Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apertou o controle da venda da droga exigindo receita azul, mais difícil de ser prescrita, para a aquisição.

Com fazer uma boa higiene do sono

• Fique exposto à luz natural por pelo menos 20 minutos pela manhã

• Estabeleça um horário regular de sono

• Não faça refeições pesadas à noite

• Não fume jamais — mas, caso exista o vício, evite cigarro duas horas antes de ir para a cama

• Adote uma rotina relaxante antes do repouso para dormir. Mantenha o ambiente confortável em temperatura, nível de ruído e luminosidade

• Certifique-se de que o ambiente do quarto esteja fresco, escuro, silencioso e confortável

• Evite eletrônicos com telas uma hora antes de dormir

• Exercite-se regularmente, de preferência no início do dia

• Evite cafeína, café, energéticos, guaraná natural e açaí, de cinco a seis horas antes do horário de dormir

Último caso

“Remédios como Zolpidem são indicados em momentos pós-cirúrgicos, quando o paciente enfrenta dificuldades para dormir e o repouso contribui para a recuperação e regeneração celular. Nos casos de distúrbios de sono há outras alternativas, algumas inclusive mais seguras. O uso de melatonina, um hormônio natural que regula o ciclo sono-vigília, pode ser eficaz para restabelecer o ritmo circadiano. Além disso, alguns antidepressivos com efeito sedativo, como a Trazodona, são prescritos em doses baixas para melhorar o sono sem os riscos associados. A abordagem medicamentosa deve ser sempre a última alternativa”, diz a psicóloga Larissa Fonseca, especializada em sono.

Apesar de serem catalogadas mais de 70 doenças relacionadas ao sono, apenas três respondem por quase a totalidade dos casos no Brasil:
apneia obstrutiva,
insônia crônica,
e síndrome das pernas inquietas.

A primeira é caracterizada por episódios recorrentes de obstrução parcial ou total do fluxo aéreo, resultando em despertares recorrentes e quedas da saturação do oxigênio. Há total comprometimento do descanso. O Estudo Epidemiológico do Sono (Episono) estima que a apneia atinja um terço dos adultos paulistanos, o que dá a dimensão nacional da ocorrência. O distúrbio é geralmente associado à obesidade, idade avançada ou fatores anatômicos relacionados aos ossos da face.

A insônia crônica é diagnosticada quando os episódios acontecem três vezes por semana, pelo menos, por um período mínimo de três meses. A manifestação pode ser pela dificuldade de adormecer, despertar contínuo no meio da noite ou resistência a dormir após acordar antes do tempo.

A síndrome das pernas inquietas, cientificamente conhecida como doença de Willis-Ekbom, é uma disposição neurológica que gera necessidade de mover os membros inferiores para alívio do desconforto de formigamento ou queimação.

Cenário ideal

“Problemas de sono são comuns não somente nos brasileiros. Estamos vivendo uma epidemia de privação de sono com consequências importantes para a saúde, seja em termos de redução de atenção, queixas de memória, alterações de comportamento, maior irritabilidade e diminuição de rendimento no trabalho, estudos e relacionamentos sociais”, diz Fernando Gustavo Stelzer, neurologista e especialista em Medicina do Sono. “O tratamento mais indicado para insônia crônica é a terapia cognitivo-comportamental, realizada por psicólogos ou médicos especializados. Devemos mencionar que o estilo de vida da pessoa tem importante impacto na qualidade e quantidade de sono. Sedentarismo, exposição prolongada a telas — computadores, celulares ou tablets — ou a luz artificial e consumo de cafeína, álcool e cigarro afetam a qualidade”, afirma o neurologista.

Mesmo que a necessidade de sono seja diferente para cada um, especialistas estabelecem uma janela entre sete e nove horas como ideal para adultos.

• Para crianças, quanto mais novas maior necessidade de horas dormidas — vai de 12 a 16 horas para bebês até um ano, e diminui por faixa etária, gradativamente, até oito a dez horas em adolescentes.

Quando não são seguidas as recomendações mínimas, as noites mal dormidas:
afetam o sistema imunológico,
aumentam o risco de contração de doenças e infecções,
interferem no metabolismo, com propensão à obesidade,
elevam chance de desenvolvimento de problemas cardíacos, diabetes tipo 2 e pressão alta.

As chances de condução a quadros de depressão e interferência negativa em relacionamentos profissionais e familiares, inclusive com separações de quarto e até da vida em comum, por causa dos roncos estrondosos, leva a quadros de ansiedade. Importante destacar que nem todos que roncam têm apneia, mas todos com apneia roncam.

Um estudo da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, investigou a qualidade do repouso de profissionais da área da saúde durante um ano e constatou que o sono era de má qualidade para 74% dos 125 pesquisados. A grande maioria dos que dormiam mal apresentou reflexos físicos e emocionais, com média superior à da população em quadros de burnout e relatos de dores pelo corpo.

“Em um País como o nosso, onde o indivíduo vive estressado o tempo todo, com problemas de toda ordem, sociais, financeiros, segurança, transporte, más condições de trabalho e moradia, é difícil dormir direito. Quem leva três horas de deslocamento para chegar ao trabalho evidentemente não terá horas suficientes para dormir. O indivíduo tem que ter o mínimo de garantia de saúde, alimentação e sobrevivência para poder botar a cabeça no travesseiro à noite e descansar”, afirma o psiquiatra Marcos Gebara.

Estilo de vida

A alimentação é outro ponto que produz reflexos na hora do descanso. A revista Frontiers in Nutrition estudou como a dieta de frutas e vegetais interfere no adormecer. Foi analisado o consumo de mais de cinco mil adultos e constatado que aqueles que dormiam normalmente entre sete e nove horas tinham maior propensão de consumir os alimentos na média sugerida pela Organização Mundial da Saúde (OMS): cerca de 500 gramas de comida vegetal por dia.

Mesmo dentro desse grupo houve variações — quem priorizava a alimentação in natura tinha duração de descanso mais saudável do que os praticantes do vegetarianismo por enlatados. “A alimentação pode auxiliar no tratamento holístico da insônia e da qualidade do sono através do consumo adequado e regular de vitaminas do complexo B, minerais como o magnésio, aminoácidos como triptofano e, em alguns casos, a inclusão da melatonina, hormônio importante para o controle do ciclo. Esses nutrientes podem ser incluídos através de alimentos ou suplementos. O consumo de alguns chás cerca de duas horas antes de se deitar também pode promover um efeito calmante e ajudar na qualidade do sono. Maracujá, jasmin, melissa, lípia e erva doce são bons exemplos”, diz Priscila Gontijo, nutricionista e coordenadora Science Hub da Puravida.

Descanso ideal: evite telas pelo menos uma hora antes de tentar pegar no sono (Crédito:Garo / Phanie )

Uma curiosa pesquisa britânica, realizada pela marca de colchões SimbaSleep, reproduziu a diferença negativa estética que a escassez de descanso causa. A empresa contabilizou as reclamações e consequências de boas e más noites nos rostos de duas mil pessoas. Os dados – pele flácida, linhas finas, olheiras, semblante cansado, rugas e secura — alimentaram um programa de inteligência artificial, que criou imagens realistas das mesmas pessoas após descanso satisfatório e ruim.

“À noite, sua pele faz um trabalho importante: se renova, se repara e cria novas células”, diz executiva da SleepCharity, parceira na empreitada. “Interferir nesse ciclo regenerativo natural significa que seu corpo não tem tempo suficiente para reparar a pele durante a noite. O sono é como uma recarga: ajuda na regeneração e manutenção do equilíbrio dos hormônios”, completa. Os pesquisadores detectaram também que, sem a parte do sono REM, há menor produção de colágeno (necessário para a pele macia) e do hormônio somatotropina (que mantém a elasticidade da pele).

A importância do sono reparador

• Ele desempenha papel fundamental na consolidação da memória, aprendizado e desempenho cognitivo, por isso o ato de “dormir sobre um problema” aumenta a probabilidade de encontrar solução

• Dormir inadequadamente está ligado a ganho de peso e disfunção metabólica

• Bom sono já é considerado tão importante para a saúde quanto nutrição adequada e exercícios físicos. Ele incrementa o sistema imunológico

• Dormir com qualidade é fundamental para a estabilidade
emocional, incrementa o sistema imunológico, ajuda a regular as emoções e a controlar o estresse

“Dificilmente alguém consegue se sentir feliz com problemas de sono”, resume Priscila Gontijo.

“A privação prolongada afeta o humor, o equilíbrio emocional e até mesmo a capacidade de sentir prazer, devido ao impacto na regulação de neurotransmissores como serotonina e dopamina. O processo cognitivo pode falhar. Intervenções adequadas, como mudanças comportamentais, medicações apropriadas e suporte emocional, podem ajudar a pessoa a reencontrar o equilíbrio e melhorar a qualidade de vida. Para uma felicidade duradoura, é crucial resolver esses problemas — e também os emocionais. Há um efeito bidirecional: o sono afeta a saúde mental assim como a saúde mental é afetada pela ausência de sono. O descanso adequado é fundamental para o bem-estar geral”, conclui Larissa Fonseca.

Que a ciência descubra caminhos para evitar que o ato singelo de dormir continue a ser um pesadelo para tanta gente.