Brasil

Ministro José Múcio sai em defesa dos militares e se distancia do governo

Em descompasso com o núcleo do governo, o ministro José Múcio comete o equívoco de apontar entraves ideológicos nos negócios da defesa com Israel e derrapa ao afirmar que os militares é que evitaram o golpe tentado por Bolsonaro

Crédito: Rafael Vieira

Múcio atua em linha com militares, confunde negócios com ideologia e faz uma avaliação à direita do governo (Crédito: Rafael Vieira)

Por Vasconcelo Quadros

Bombardeado pela ala esquerda do PT, que o quer fora desde os episódios de 8 de janeiro do ano passado, o ministro da Defesa, José Múcio deu mais um passo para se aproximar dos militares, mas se distanciou do governo. Em encontro com os pesos pesados da indústria, na semana passada, ele afirmou que a política e a ideologia, supostamente impostas pela ala progressista do núcleo de decisões do governo Lula3, atrapalham os negócios da Defesa com Israel. E ainda sugeriu que os mesmos que responsabilizam as Forças Armadas pela ditadura de 1964 deveriam reconhecer que foram os militares que evitaram que o ex-presidente Jair Bolsonaro desse o golpe.

O foco em acordos bélicos, alegando entraves ideológicos num momento em que Israel massacra os vizinhos, conforme disse à ISTOÉ o vice-líder do PT na Câmara, deputado Carlos Zarattini (SP), é resultado de uma confusão do ministro da Defesa que “vai mais pela cabeça militar do que por uma visão estratégica do País”.

Zarattini afirma que não é verdade que o governo tenha pendência ideológica com o Estado judeu. “É um problema diplomático com o governo de Israel que, além de estar fazendo um verdadeiro massacre em Gaza e no Líbano, declarou o Lula como persona non grata, o que é grave para o relacionamento entre países. Se a gente tem uma política de relações exteriores, o interesse militar tem de estar de acordo. O rumo é o governo que dá. Não podemos continuar dependentes de Israel, que hoje fornece a maior parte dos produtos eletrônicos de defesa. É um problema de soberania e não podemos fazer uma política estratégica apenas do ponto de vista comercial.”

Celso Amorim acha que as relações comerciais devem levar em conta o contexto político dos países em guerra (Crédito:etty Images South America / Getty Images via AFP))

Enquanto não houver um cessar-fogo, a ala com maior poder de decisão no governo considera que seria um disparate dar andamento a acordos comerciais bélicos com o governo israelense, que foi o que Múcio, em descompasso, tentou forçar. “Houve agora uma concorrência, uma licitação; venceram os judeus, o povo de Israel. Estamos com essa licitação pronta, mas, por conta da guerra, do Hamas, dos grupos políticos, por questões ideológicas, não podemos aprovar. O TCU não permitiu dar ao segundo colocado, e estamos aguardando que essas circunstâncias passem para que possamos nos defender”, disse o ministro em evento na Confederação Nacional da Indústria (CNI).

“Múcio vai mais pela cabeça militar do que por uma visão estratégica do País. Os militares não aderiram, mas nada fizeram contra o golpe.”
Carlos Zarattini, líder do PT na Câmara

Crise diplomática

Em abril, a empresa israelense Elbit Systems ganhou a licitação do Exército para a venda de 36 veículos blindados de combate obuseiros, um negócio estimado em quase R$ 1 bilhão, representando um momento tenso e complexo na política brasileira, especialmente em relação à defesa e às relações internacionais.

Um mês antes, o governo de Israel havia hostilizado Lula em claras represálias às críticas do presidente ao massacre dos povos vizinhos. Era o auge de uma crise diplomática.

Três meses antes, numa inédita descortesia diplomática para marcar posição, o próprio primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, quebraria o acordo entre o Mossad e a Polícia Federal, vazando, através de uma postagem no X, a prisão no Brasil de dois homens suspeitos de ligação com o Hezbollah, numa operação conjunta, mas que corria em sigilo.

“O Mossad agradece às autoridades brasileiras por seu papel na prisão da célula terrorista que pretendia lançar um ataque contra alvos da comunidade judaica no Brasil”, escreveu Netanyahu. No dia seguinte, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, rebateria, subindo o tom: “Nenhuma força estrangeira manda na PF. E nenhum representante de governo estrangeiro pode pretender antecipar resultado de investigação ainda em andamento”.

Freire Gomes e Batista Júnior esclareceram o plano de Bolsonaro, mas ouviram a trama criminosa sem agir (Crédito:Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)
(Roque de Sá)

Omissão e reação

Assessor para Assuntos Internacionais do governo, o ex-ministro Celso Amorim disse que não há questionamentos sobre a legalidade do negócio e nega que a ideologia interfira, mas frisa que o governo brasileiro não irá ignorar o contexto político de um país em guerra com os vizinhos. Zarattini reforça que a decisão será política.

A compra envolve dois blindados como amostras até 2025 e outros 34 em lotes anuais até 2034. A aquisição faz parte do projeto para ampliar a capacidade da infantaria, dentro de um programa que recebe investimentos do Exército desde 2017.

Ao afirmar que os militares evitaram o golpe, Múcio esqueceu que as Forças Armadas permitiram acampamentos em frente aos quartéis e que a aventura antidemocrática não tinha apoio dos EUA, ao contrário de 1964. Ainda assim, o ministro exagerou. “Foram as Forças Armadas que preservaram e seguraram a nossa democracia”, disse.

A PF só confirmou um ano depois, pelo depoimento dos comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Força Aérea Brasileira, tenente-brigadeiro Carlos Almeida Batista Júnior, que nos dois meses depois da eleição Bolsonaro tentou insistentemente obter apoio da cúpula militar para o golpe. Os dois ouviram exposição sobre uma minuta do decreto que anularia a eleição e autorizaria a prisão do ministro Alexandre de Moraes (STF).

Estiveram diante de crime que destruiria a democracia e, numa omissão que pode caracterizar prevaricação, deixaram de dar voz de prisão aos responsáveis, entre eles o então presidente. Ao tentar enaltecer o gesto “heróico”, segundo fontes do PT, o ministro revela resquícios do longo período da tutela militar que o governo quer enterrar.

“Não é que tenham evitado. Os militares só não aderiram. O que pesou foi a reação democrática. Os militares não fizeram nenhuma ação contra o golpe”, esclarece Zarattini.

As declarações de Múcio são graves, mas não incomodaram Lula, que após a polêmica, em vez de demitir o ministro, pôs panos quentes. “O ministro José Múcio me ligou apavorado porque achava que tinha falado alguma coisa que não deveria ter falado. Eu disse: ‘Mucio, não se preocupe, aquilo que a gente falou já está falado, já foi explorado, esqueça, toca o barco pra frente. Você não vai perder um centímetro de importância comigo por causa disso.”

É o “Lulinha paz e amor” remasterizado.